O Globo
'Eleitorado decidirá que o sistema falhou e
começará a procurar um homem forte para votar', afirmou filósofo em 1997
Um grande analista é aquele que observa um fenômeno em sua gênese e consegue extrair dele todas as consequências e também as consequências das consequências, antecipando desdobramentos causais que podem levar anos para se materializar. Farejar algo que emergirá plenamente em algumas décadas é um dom valioso e raro. Aqui mesmo nesta coluna, noutra ocasião, lembrei o historiador cultural Christopher Lasch. No livro “A cultura do narcisismo”, dos anos 1970, ele antecipou traços da cultura contemporânea que atribuímos hoje à influência das redes sociais.
Poucas profecias foram tão precisas nos
detalhes como a feita numa conferência que o filósofo pragmatista Richard Rorty
proferiu na Universidade Harvard em 1997 (“Achieving our country” — Harvard
University Press, 1998). Nela, Rorty distinguiu duas correntes da esquerda: uma
reformista e progressista, voltada à ação política e à melhora gradual das
instituições; e outra cultural, mais crítica e teórica. Embora a esquerda
cultural tenha contribuído para reduzir estigmas e ampliar o reconhecimento das
minorias, a ausência de um horizonte reformista a empurrou para o pessimismo e
para a paralisia política. Na conferência, Rorty defende que a esquerda
recupere o patriotismo democrático e volte a unir intelectuais e trabalhadores
em torno de reformas concretas que combatam a desigualdade e a injustiça
social.
A certa altura, Rorty sugere que estamos
“caminhando para um período semelhante ao da República de Weimar [na Alemanha
do Entreguerras], em que movimentos populistas derrubarão governos
constitucionais”. Ele nota o seguinte:
— Membros de sindicatos e os trabalhadores
não organizados e não qualificados, mais cedo ou mais tarde, perceberão que seu
governo não tenta impedir a queda dos salários ou a exportação dos empregos.
Perceberão que os trabalhadores de colarinho branco dos subúrbios [ricos] —
eles próprios desesperadamente com medo de ser demitidos — não se deixarão
tributar para fornecer benefícios sociais a ninguém. Nesse momento, algo
quebrará. O eleitorado decidirá que o sistema falhou e começará a procurar um
homem forte para votar — alguém disposto a garantir que, uma vez eleito, os
burocratas presunçosos, os advogados astutos, os operadores de ações
supervalorizadas e os professores pós-modernos não estarão mais no comando.
E continua:
— Uma vez que tal líder forte assumir o cargo,
ninguém poderá prever o que acontecerá. Em 1932, a maioria das previsões sobre
o que aconteceria se Hindenburg nomeasse Hitler chanceler eram excessivamente
otimistas. Algo que muito provavelmente acontecerá é os ganhos obtidos nos
últimos 40 anos pelos americanos pretos e pardos e pelos homossexuais serem
aniquilados. O desprezo jocoso pelas mulheres voltará à moda. As palavras
“nigger” [termo ofensivo para se referir aos negros] e “kike” [termo ofensivo
para se referir aos judeus] serão ouvidas novamente no local de trabalho. Todo
o sadismo que a esquerda acadêmica tentou tornar inaceitável voltará com força
total. Todo o ressentimento que os americanos com baixo nível de escolaridade
sentem por seus modos serem ditados por graduados universitários encontrará uma
válvula de escape.
Rorty conclui:
— Mas essa renovação do sadismo não alterará
os efeitos do egoísmo. Pois, depois que meu homem forte imaginário assumir o
poder, ele rapidamente fará as pazes com os super-ricos internacionais, assim
como Hitler fez com os industriais alemães. Invocará a gloriosa memória da
Guerra do Golfo para provocar aventuras militares que gerarão prosperidade no
curto prazo. Será um desastre para o país e para o mundo. As pessoas se
perguntarão por que houve tão pouca resistência à sua inevitável ascensão. Onde
estava a esquerda americana, perguntarão? Por que apenas direitistas como
Buchanan falaram aos trabalhadores sobre as consequências da globalização? Por
que a esquerda não conseguiu canalizar a raiva crescente dos recém-despossuídos?
Trinta anos depois, as palavras de Rorty,
enunciadas como exercício especulativo, parecem um diagnóstico preciso do nosso
tempo. O avanço do populismo autoritário, resultado tanto do ressentimento da
classe trabalhadora quanto do isolamento social e cultural do progressismo,
parece cumprir, ponto a ponto, o roteiro que Rorty delineou. Retomar sua
advertência hoje é um convite à autocrítica política da esquerda — uma reflexão
sobre como a desconexão entre as identidades culturais e as condições materiais
dos trabalhadores contribuíram para a ascensão do populismo autoritário.

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