segunda-feira, 24 de novembro de 2025

A vida nas favelas que o Brasil insiste em não ver, por Preto Zezé

O Globo

O país gosta de apontar o criminoso como inimigo, mas ignora que ele é produto das próprias omissões

Desde “Falcão — meninos do tráfico” e das imagens da invasão do Alemão, muita coisa mudou e, ao mesmo tempo, nada mudou. A pesquisa Raio-X da Vida Real, feita pela Data Favela com quase 4 mil pessoas envolvidas no crime, revela dinâmicas que o país evita encarar. Não é só tráfico, é um Brasil que produz, abandona e depois pune seus próprios filhos.

Metade dos entrevistados tem até 26 anos. Na favela, a juventude é curta porque a oportunidade também é. Para muitos, o tráfico vira primeiro emprego e primeiro reconhecimento num país onde o Estado chega tarde com a escola e cedo com a viatura. Estamos formando uma geração que envelhecerá sem Previdência, renda ou proteção — uma bomba-relógio que nem entrou no Orçamento.

O crime se nacionalizou, mas a base continua sendo o cria: o jovem que conhece cada viela e morre primeiro. Nada disso é novidade. Está nas músicas de MV Bill — “Soldado do morro”, “Falcão, soldado morto”. O país apenas não quis ouvir.

Cai também o mito da família desestruturada. A pesquisa mostra que 52% têm filhos e metade vive em casal. São famílias reais, com afeto e rotina, vivendo sem direito. Falta proteção, não laço.

A economia do crime é de sobrevivência: mais de 60% ganham até dois salários mínimos. O tráfico funciona como empresa sem CNPJ, com hierarquia, metas, castigos e risco permanente. Em muitos lugares, ocupa o espaço que o Estado abandonou. Mandar a polícia largar o aço é fácil; difícil é fazer o Estado entrar sem farda — com escola, emprego, saúde, cultura. Sem isso, o caos retorna. Se o crime parar, parte das favelas entra em colapso, não por escolha, mas por falta de alternativa. A economia das bocas move outras economias: o baile, o salão, a tia da feira.

O Sabadão talvez seja o dado mais revelador. Trabalhadores formais que fazem bico na boca para completar renda. O Brasil precarizou tanto o trabalho que até o crime virou bico. Entender isso não é apologia; é compreender a motivação antes de condenar o mensageiro.

Mais da metade já foi presa, e 57% têm familiares encarcerados. O presídio virou instituição familiar e negócio milionário — caro, ineficaz e produtor de facções. A cadeia devolve o sujeito pior e mais treinado, mas governos seguem apostando em encarceramento como se fosse solução. O tráfico também se evangelizou: cultos e hinos ocupam o cotidiano. A fé vira alívio — “se ninguém me vê, Deus me vê” —, mas também vira força e justificativa para intolerância, especialmente contra religiões de matriz africana.

O Brasil gosta de apontar o criminoso como inimigo, mas ignora que ele é produto das próprias omissões. O crime é a febre; a doença é a desigualdade. Vencer isso exige reorganizar prioridades: educação integral, trabalho digno, tecnologia, cultura e presença real do Estado. Medellín mudou. Sem algo semelhante, só trocaremos os nomes dos mortos.

A pesquisa aponta ainda um pacto triplo: sociedade sem estigma, Estado com políticas reais e setor privado com inclusão produtiva — porque, onde há oportunidade, a violência recua. A guerra não é contra o crime. É contra os invisíveis — aqueles que só a polícia vê. Fingir que não vemos não vai nos salvar.

 

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