Correio Braziliense
El Salvador virou vitrine porque é pequeno,
porque os resultados na redução dos índices de criminalidade são espetaculares
à primeira vista e porque Bukele transformou sua política num produto global de
comunicação
Nayib Bukele é o novo ídolo da direita
radical brasileira. O presidente de El Salvador faz exatamente o que a oposição
defende para enfrentar o problema do tráfico de drogas e sua
“territorialização”: a ideia de que segurança pública se resolve pela suspensão
de garantias individuais e pela exibição da força repressiva do Estado. El
Salvador virou vitrine porque é pequeno (6,3 milhões de habitantes), porque os
resultados na redução dos índices de criminalidade são espetaculares à primeira
vista (era campeão mundial de homicídios) e porque Bukele transformou sua
política num produto global de comunicação.
Ao escolher o capitão ferrabrás da PM paulista Guilherme Muraro Derrite (PP-SP), que deixou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, para relatar o projeto de Novo Marco da Segurança Pública, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), sinalizou que a Câmara, sempre ela, também quer falar a linguagem da “mão pesada” e do encarceramento prolongado. O deputado Derrite, que já foi acusado de 16 homicídios, representará o “Consórcio da Paz” dos governadores que pretendem mudar a legislação penal, classificar o tráfico de drogas no Brasil como “terrorismo” e substituir a centralidade da União, sem levar em conta as consequências.
No Senado, Magno Malta (PL-ES) propôs
convidar Bukele para a CPI do Crime Organizado e até uma diligência oficial a
El Salvador, enquanto Flávio Bolsonaro (PL-RJ) pede ao presidente dos Estados
Unidos, Donald Trump, que também bombardeie navios suspeitos na Baía de
Guanabara; na Câmara, a oposição protocola pedido de missão para ver de perto o
presídio salvadorenho. A megaoperação nos “complexos” do Alemão e da Penha, com
seu recorde de mortes, alimentou o discurso dos que querem importar o “estado
de exceção” salvadorenho de Bukele para o Brasil.
Eduardo Bolsonaro (PL-SP), deputado federal
autoexilado nos Estados Unidos, já havia dado a senha: “Bukele conseguiu fazer
toda a política linha-dura que bota bandido na cadeia e a sociedade fica livre
para poder trabalhar, sonhar com o futuro. O Brasil tem que fazer a mesma
coisa”. Nikolas Ferreira (PL-MG), em maio deste ano, durante audiência pública
com o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, também defendeu a tese de que
seria preciso “bukelizar” o Brasil.
O problema da segurança pública é muito mais
complexo. Quando se olha para o que realmente derrubou criminalidade no longo
prazo nos EUA, estudos mostram que a legalização do aborto, em 1973, teve
efeito mais profundo e duradouro do que a famosa política de “tolerância zero”
de Nova York nos anos 1990. Segundo as pesquisas, menos nascimentos indesejados
em contextos de alta vulnerabilidade significam menos adolescentes entrando, 15
ou 20 anos depois, no ciclo que alimenta a criminalidade.
Estado de exceção
Políticas de saúde pública e de autonomia
reprodutiva, que no Brasil ainda são tratadas sob o prisma moral e religioso,
fizeram mais pelo combate à violência do que o policiamento ostensivo e os
confrontos em Nova York. Enquanto isso, o “bukelismo” tupiniquim simplifica o
problema. Derrite e a “bancada da bala” oferecem o conforto das soluções
simples para problemas complexos: mais penas, mais presídios, mais execuções em
confrontos e mais exceção.
Deixam de fora da equação educação básica,
que retenha jovens, política de saúde reprodutiva, que reduza gestações
indesejadas, urbanização das favelas e qualificação para o emprego. Bukele, em
El Salvador, prendeu mais de 60 mil pessoas, montou a maior prisão da América
Latina (40 mil encarcerados em celas com 80 vagas para 100 presos, com dois
banheiros) e prorrogou, mês a mês, um regime de exceção que suspende garantias
individuais. Imaginem um presídio desses em cada estado do Consórcio da Paz:
SP, RJ, MG, GO, SC, MT e DF.
“Bukelizar” é a palavra-chave que norteia a
relatoria manchada de sangue de Derrite. Na prática, pretende-se deslocar o
centro de gravidade da Constituição de 1988 para um modelo de segurança de
exceção permanente. A proposta tem apelo popular onde a criminalidade virou
patologia social. Entretanto, é uma “bomba-relógio”: custa caro, não ataca a
raiz do recrutamento das gangues e depende de um Executivo sem freios.
No Brasil, a Constituição de 1988 distribuiu
competências, consagrou o devido processo legal, colocou o Judiciário como
trava, exigiu ordem judicial para prisão fora do flagrante, criou espaço para
políticas sociais e de saúde. Mas os governos estaduais não dão conta do
problema da segurança pública sozinhos, precisam da União. O ex-ministro da
Defesa e da Segurança Pública Raul Jungmann não se cansa de dizer que sem a
implantação efetiva do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), com o governo
federal coordenando suas ações, será impossível derrotar facções criminosas
como o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital (PCC), que se
internacionalizaram.
O caminho fácil de Bukele, a segurança como
regime de exceção, concentra poder, enfraquece controles, naturaliza prisão sem
juiz e autoriza que a polícia decida quem é “gente de bem” e quem não tem
direito a direitos. Em carta aberta, os ex-ministros da Justiça Nelson Jobim,
Miguel Reale Jr., Aloysio Nunes, José Carlos Dias e Tarso Genro lembram o
óbvio: “O fato de ter antecedente criminal não expressa — num Estado
Democrático de Direito — licença para a eliminação sumária de quem quer que
seja”. A Constituição de 1988 foi feita para impedir isso.

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