domingo, 9 de novembro de 2025

Controvérsias e convergências, por Pedro S. Malan

O Estado de S. Paulo

Os arranjos institucionais e regras do jogo estabelecidos desde o imediato pós-guerra, que bem ou mal presidiram os últimos 80 anos, hoje são questionados com veemência

John Kenneth Galbraith escreveu em seu A Short History of Financial Euphoria, publicado em 1990: “Para fins práticos, deve-se presumir que a memória financeira dura, no máximo, cerca de 20 anos. Esse é, normalmente, o tempo necessário para que a lembrança de um desastre seja apagada e para que alguma variante da demência anterior surja novamente para capturar a mente financeira. É também o tempo geralmente exigido para que uma nova geração entre em cena, convencida – como suas predecessoras – de seu próprio gênio inovador”.

A ideia me vem à mente porque logo terão decorrido 20 anos desde a eclosão da grande crise de 2007-2009, a primeira desde 1929. Seu epicentro foi a principal economia do mundo desenvolvido. Tim Geithner, então presidente do Federal Reserve (Fed), o banco central dos EUA, escreveu em março de 2009 que “(uma) crise como esta não tem uma causa simples (...); como nação, nos endividamos em demasia e deixamos nosso sistema financeiro assumir níveis irresponsáveis de risco e alavancagem”.

Expressões semelhantes, de sofrida singeleza, podem ser encontradas em declarações à época de Ben Bernanke e Larry Summers, entre outros. Todos reconheceram posteriormente, os elementos fundamentais da excessiva complacência que levou à crise.

É valioso constatar, é o que se pode concluir, que não apenas aos países em desenvolvimento aplica-se a restrição da realidade. A expressão, que designa a capacidade de resposta da oferta aos estímulos da demanda, é de André Lara Resende, e foi usada em artigo a ser publicado na revista do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). No texto, o autor refere-se a uma observação de Paul Samuelson feita na década de 90, em entrevista para documentário sobre Keynes, na qual o Prêmio Nobel de Economia teria reconhecido que não existem limites objetivos para o déficit fiscal e para o crescimento da dívida pública – e acrescentado que a insistência na explicitação desta inexistência de limites pode promover a aceleração dos gastos, levar à erosão da credibilidade do governo e à expectativa de maior inflação futura. O mesmo Samuelson havia escrito em 1962, em suas famosas Wicksell Lectures: “Uma economia moderna pode em alguns momentos precisar de déficits fiscais e uma dívida pública crescente – e em outras épocas, precisar de superávits fiscais, obtidos por meio de redução de gastos e/ou aumento de tributação, para destinar recursos à necessidade de investimento, combater a inflação e reduzir a dívida pública”. É curiosa a continuação da frase: “Eu digo isso com toda seriedade, embora dificilmente um em cada cem formadores de opinião consiga ainda compreender o que quero dizer. Mas também aqui sou otimista de que a racionalidade prevalecerá sobre o hábito.”

Tanto o Samuelson de 1962 quanto o de 1990 estavam certos, e o que tinham a dizer tem muito a ver com o Brasil de hoje e com a restrição da realidade referida por Lara Resende. Afinal, como bem notou André: “O aumento dos gastos públicos não é necessariamente negativo, nem positivo: tudo depende da qualidade dos gastos. Investimentos bem planejados e avaliados são muito diferentes dos gastos correntes populistas, patrimonialistas ou corporativistas. Ainda assim, todos são estímulos à demanda e, ao menos no curto prazo, ao crescimento da renda. É o ensinamento de Keynes para evitar recessões – mas se usado apenas para estimular a demanda, sem respeitar as restrições da oferta, levará inevitavelmente à inflação e/ou a desequilíbrios (déficits) do balanço de pagamentos”.

Estamos, neste meio da terceira década do século 21, vivendo um momento histórico inusitado. Os arranjos institucionais e as regras do jogo estabelecidos desde o imediato pós-guerra, que bem ou mal presidiram os últimos 80 anos, são questionados com veemência. Paradoxalmente, pelo atual governo do país que liderou aquele processo, em escala global, de integração econômica, financeira, comercial, tecnológica e de investimentos. Um país cuja moeda tornou-se a principal moeda internacional. Não por imposição, mas porque os EUA representavam no imediato pós-guerra cerca de 48% da economia mundial e não havia outros países que pudessem aceitar a livre conversibilidade de suas moedas. Assim, o dólar assumiu naturalmente a posição de ativo internacional de reserva, posição que desempenhou ao longo dos últimos 80 anos. Sua participação relativa vem declinando, mas seguirá muito relevante. Curiosamente, esse declínio é em parte gerado pelo aumento de incertezas e imprevisibilidades provocadas por ações de iniciativa do próprio governo norte-americano. O debate continuará intenso ao longo dos próximos anos.

Afinal, como notou em seu Currencies and Crises (1992) Paul Krugman, também ele Prêmio Nobel de Economia: “Moeda Internacional é o campo mais antigo da economia. (...) É também um dos campos mais inovadores e em rápida mudança, porque a melhor análise nesta área é conduzida não por deferência à teoria estabelecida, mas pela necessidade de dar sentido a um mundo em constante evolução.” Passados mais de 30 anos, a frase retém surpreendente atualidade, relevância e urgência.

 

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