Correio Braziliense
Narrativa de que o Congresso
apenas “moderniza o país” esconde a captura legislativa por interesses que
rejeitam o consenso científico sobre a necessidade de licenciamento rigoroso
O Congresso Nacional derrubou, ontem, grande
parte dos vetos presidenciais à Lei Geral do Licenciamento Ambiental, chamada
por ambientalistas de “PL da Devastação”. Na Câmara, o placar foi de 295 votos
pela derrubada e 167 pela manutenção dos vetos. No Senado, 52 votos a 15. Com
isso, o Palácio do Planalto, cientistas, entidades da sociedade civil e
ambientalistas sofreram a maior derrota da história na legislação ambiental,
considerada, até então, referência para o mundo.
Entre os trechos que devem ser retomados, está a autorização para que atividades e empreendimentos considerados de baixo e pequeno porte — ou com baixo e pequeno potencial poluidor — obtenham licenças por um processo de adesão e compromisso (LAC), mais simples do que o procedimento regular. Ou seja, uma porta aberta para o vale-tudo ambiental, sobretudo na Mata Atlântica, no Cerrado e na Amazônia.
A derrubada dos vetos presidenciais à Lei
Geral do Licenciamento Ambiental explicita a força de uma coalizão de
predadores ambientais que opera dentro do Congresso Nacional. Não foi apenas
uma derrota governamental, mas a consagração de uma agenda que combina
negacionismo climático, captura institucional pelo agronegócio e desmonte
calculado das salvaguardas socioambientais do país.
O conceito de negacionismo, sistematizado
aqui no Brasil pelo Instituto Butantan, define uma recusa deliberada de fatos
científicos e evidências históricas. Vivemos dramaticamente as suas
consequências, por exemplo, na saúde pública, durante a pandemia e, ainda hoje,
pela recusa à vacinação contra todo e qualquer tipo de doença. No campo
climático, trata-se da rejeição do consenso consolidado de que o aquecimento
global é causado por ações humanas. Esse negacionismo é minoritário, mas
persistente: cerca de 97% dos cientistas concordam sobre a origem antrópica das
mudanças climáticas.
Pesquisas mostram que entre 5% e 8% das
populações de países anglófonos contestam esse consenso, mas esse número no
Brasil chega a 15%, segundo o Datafolha. Essa minoria é muito poderosa e se
articula a setores econômicos que veem a proteção ambiental como entrave.
Ontem, o Congresso materializou essa convergência entre negacionistas e
predadores: grupos organizados que buscam erodir, de forma sistemática, os
instrumentos de proteção ambiental para ampliar margens de lucro e acelerar
obras sem estudos de impacto.
O veto derrubado mais danoso é o que não
permitia o uso do sistema de Licença por Adesão e Compromisso (LAC) para
atividades de médio potencial poluidor. Essa é a face mais perigosa, pois
dispensa estudos de impacto ambiental e exige apenas um relatório simplificado,
cuja análise pelos órgãos ambientais passa a ser facultativa. Isso favorece
atividades com alto potencial de dano, como barragens de rejeito, que agora
podem escapar do escrutínio técnico que teria evitado tragédias como Mariana e
Brumadinho.
Guerra ambiental
Quando parlamentares predadores dizem que
isso “destrava o desenvolvimento”, rejeitam o acúmulo de conhecimento
científico sobre riscos geotécnicos e impactos acumulados. Outro retrocesso
estrutural é a regionalização dos critérios de licenciamento, também restaurada
com a derrubada dos vetos. Ao delegar a estados e municípios o poder de definir
o que é “alto” ou “baixo” impacto, o Congresso promove uma corrida entre entes
federativos, pressionados a flexibilizar normas para atrair empreendimento,
numa verdadeira guerra ambiental.
Ambientalistas alertam que isso incentiva o
chamado “turismo do impacto”: empreendedores migram para localidades com
legislações permissivas, resultando em destruição ambiental desordenada. A
União, cuja competência constitucional inclui editar normas gerais de proteção,
fica esvaziada. A situação é grave no caso da Mata Atlântica, bioma
reduzido a menos de 12% da cobertura original.
O veto que mantinha a proteção federal contra
supressão irregular de vegetação foi derrubado, permitindo que avaliações
fragmentadas substituam o controle centralizado e técnico da União. Essa
mudança abre espaço para um novo ciclo de desmatamento, difícil de reverter e
ainda mais difícil de monitorar.
Ainda mais simbólica é a derrubada do veto
sobre povos indígenas e quilombolas. O Congresso decidiu que apenas
territórios já homologados devem ser consultados, quando a maior parte das
terras indígenas ainda não concluiu seu processo administrativo. Na prática,
autoriza empreendimentos destrutivos em áreas tradicionais sem ouvir quem vive
ali.
A votação também confirmou a crise política
entre o Planalto e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, articulador das
forças que defenderam as flexibilizações. Sua narrativa de que o Congresso
apenas “moderniza o país” esconde a captura legislativa por interesses que
rejeitam o consenso científico sobre a necessidade de licenciamento rigoroso.
Essa coalizão atuou com disciplina: bancada do agronegócio, parlamentares de
regiões de fronteira agrícola, grupos empresariais e operadores políticos
descontentes com o governo.
Enquanto o país discursava na COP30, em Belém,
sobre transição energética, economia verde e preservação, o Congresso preparava
esse ataque frontal ao Conama, à política nacional de meio ambiente e aos
direitos socioambientais. Fragmentos de biomas ameaçados, áreas urbanas
sujeitas a enchentes e deslizamentos, reservas hídricas em risco, territórios
indígenas pressionados, licenciamento enfraquecido formam uma tempestade
perfeita. Ao derrubar os vetos, o Congresso normalizou a lógica do vale-tudo
ambiental.

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