Correio Braziliense
Derrite deixou a Secretaria
de Segurança Pública de São Paulo para levar ao Congresso a mesma política de
“tolerância zero” que, na prática, enxuga gelo contra o PCC em São Paulo
O romance Investigação sobre a Vítima
(Companhia das Letras), de Joaquim Nogueira, é um clássico do realismo policial
brasileiro. Ex-delegado, o autor não escreve de fora do universo policial — ele
o recria com o olhar noir de quem conhece o cheiro das celas, o peso do
inquérito e as sombras das delegacias. O resultado é um retrato sem concessões
da violência e da corrupção que atravessam o aparelho de segurança e a própria sociedade
paulista.
“Você ainda acredita em justiça, Venício?”,
perguntou o escrivão, acendendo o cigarro com o crachá pendurado no pescoço.
“Acredito”.
“Então é pior do que eu pensava. Aqui ninguém
investiga ninguém. A gente arquiva. O resto é conversa pra boi dormir”.
Venício o encarou em silêncio.
“Teu amigo morreu porque quis ser certo demais. O sistema não gosta de gente que não pede o troco”.
Esse diálogo, seco e contundente, sintetiza o
confronto entre integridade individual e cinismo institucionalizado. A
corrupção não aparece como desvio pontual, mas como linguagem de funcionamento.
É uma engrenagem invisível que move a delegacia, a política e até as relações
pessoais. O investigador Venício, movido por uma obstinada noção de justiça,
apura o assassinato de um amigo policial e, ao fazê-lo, desce aos porões da
cidade. O romance subverte a lógica do gênero: não gira em torno do “quem
matou?”, mas do “quem era a vítima?”. O que a morte revela sobre o mundo ao
redor? O mal não está apenas nas ruas — está dentro da própria corporação.
Assim como Abusado, de Caco Barcellos, que
expôs a sociologia viva do tráfico e a corrupção policial no Rio, Nogueira
mostra porque a polícia paulista não deu conta do PCC. Abusado antecipa o
processo de territorialização do crime — o domínio armado sobre comunidades
onde o Estado nunca se fez presente. Nessas áreas, a autoridade é exercida por
quem oferece proteção, gás, transporte ou a paz imposta pelas armas. Nogueira
revela uma polícia que teme — ou se recusa — a investigar o crime organizado.
O assassinato do ex-delegado-geral da Polícia
Civil de São Paulo Ruy Ferraz Fontes, executado numa emboscada na Praia Grande
após cumprir expediente como secretário municipal, ilustra essa fragilidade. A
verdade é que governos de São Paulo e do Rio de Janeiro, como em outros
estados, não conseguiram enfrentar o crime organizado, em parte pela
infiltração no sistema de segurança e pela intimidação dos próprios policiais.
O crime organizado no Brasil não se restringe
aos traficantes — e tampouco será resolvido com execuções sumárias ou com a
retórica que tenta enquadrar suas facções como organizações terroristas. Essa
abordagem, travestida de combate à criminalidade, abre espaço para um regime de
exceção, em nome da segurança pública. A proposta de novo Marco da Segurança
Pública, relatada pelo deputado Guilherme Derrite (Republicanos-SP), partiu
dessa lógica autoritária.
Muitas críticas
O texto confrontou a Constituição de 1988, ao
propor um modelo que restringe a atuação federal e subordina a Polícia Federal
à autorização dos governadores. Seria um retrocesso institucional que fere o
princípio da cooperação federativa. Por isso, foi duramente criticado por
magistrados, membros do Ministério Público, a PF e a Receita Federal, órgãos
que hoje protagonizam o combate real às organizações criminosas, justamente por
fazerem o que os estados muitas vezes não conseguem: investigar.
Derrite deixou a Secretaria de Segurança
Pública de São Paulo para levar ao Congresso a mesma política de “tolerância
zero” que, na prática, enxuga gelo contra o PCC em São Paulo. O que deu certo,
a Operação Carbono, foi fruto de muitas investigações e cooperação entre entes
federados e seus órgãos de combate ao crime organizado.
Como relator do chamado PL Antifacções
(5.582/2025), Derrite apresentou um projeto novo, canhestro, elaborado à
revelia do debate técnico. Sua experiência de policial militar é a antítese do
que precisa ser feito. Na verdade, seu objetivo era limitar a atuação do
governo federal nas investigações, criando uma estrutura paralela — o chamado
“Consórcio da Paz” — que dividiria competências entre União e estados. Na
prática, isso significaria a dualidade de poderes e a blindagem de políticos
locais e federais investigados pela PF e pela Receita.
Sob o pretexto de “combater as facções”, o
projeto reduzia a autonomia investigativa da União e transformava a segurança
em arena de poder regional. Ora, está mais do que comprovado que os governos
estaduais, sozinhos, não têm condições de enfrentar o PCC e o Comando Vermelho,
que hoje se expandiram nacional e internacionalmente.
A transformação das facções em entidades
terroristas não é apenas erro conceitual: é risco democrático. Sob esse rótulo,
amplia-se o poder coercitivo do Estado e legitima-se a supressão de direitos e
garantias fundamentais. A guerra ao crime pode, assim, converter-se em guerra
contra a cidadania, com licença para exceções, abusos e arbitrariedades.
Em Investigação sobre a Vítima, Venício
simboliza a resistência solitária de quem ainda acredita na lei, mesmo cercado
pela lama. Fora da ficção, o Brasil precisa do mesmo: uma segurança pública
baseada em investigação, não em exceção; em legalidade, não em vingança.

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