quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Combate às facções como terrorismo: um projeto de poder autoritário, por Luiz Carlos Azedo

Correio Braziliense

Derrite deixou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo para levar ao Congresso a mesma política de “tolerância zero” que, na prática, enxuga gelo contra o PCC em São Paulo

O romance Investigação sobre a Vítima (Companhia das Letras), de Joaquim Nogueira, é um clássico do realismo policial brasileiro. Ex-delegado, o autor não escreve de fora do universo policial — ele o recria com o olhar noir de quem conhece o cheiro das celas, o peso do inquérito e as sombras das delegacias. O resultado é um retrato sem concessões da violência e da corrupção que atravessam o aparelho de segurança e a própria sociedade paulista.

“Você ainda acredita em justiça, Venício?”, perguntou o escrivão, acendendo o cigarro com o crachá pendurado no pescoço.

“Acredito”.

“Então é pior do que eu pensava. Aqui ninguém investiga ninguém. A gente arquiva. O resto é conversa pra boi dormir”.

Venício o encarou em silêncio.

“Teu amigo morreu porque quis ser certo demais. O sistema não gosta de gente que não pede o troco”.

Esse diálogo, seco e contundente, sintetiza o confronto entre integridade individual e cinismo institucionalizado. A corrupção não aparece como desvio pontual, mas como linguagem de funcionamento. É uma engrenagem invisível que move a delegacia, a política e até as relações pessoais. O investigador Venício, movido por uma obstinada noção de justiça, apura o assassinato de um amigo policial e, ao fazê-lo, desce aos porões da cidade. O romance subverte a lógica do gênero: não gira em torno do “quem matou?”, mas do “quem era a vítima?”. O que a morte revela sobre o mundo ao redor? O mal não está apenas nas ruas — está dentro da própria corporação.

Assim como Abusado, de Caco Barcellos, que expôs a sociologia viva do tráfico e a corrupção policial no Rio, Nogueira mostra porque a polícia paulista não deu conta do PCC. Abusado antecipa o processo de territorialização do crime — o domínio armado sobre comunidades onde o Estado nunca se fez presente. Nessas áreas, a autoridade é exercida por quem oferece proteção, gás, transporte ou a paz imposta pelas armas. Nogueira revela uma polícia que teme — ou se recusa — a investigar o crime organizado.

O assassinato do ex-delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo Ruy Ferraz Fontes, executado numa emboscada na Praia Grande após cumprir expediente como secretário municipal, ilustra essa fragilidade. A verdade é que governos de São Paulo e do Rio de Janeiro, como em outros estados, não conseguiram enfrentar o crime organizado, em parte pela infiltração no sistema de segurança e pela intimidação dos próprios policiais.

O crime organizado no Brasil não se restringe aos traficantes — e tampouco será resolvido com execuções sumárias ou com a retórica que tenta enquadrar suas facções como organizações terroristas. Essa abordagem, travestida de combate à criminalidade, abre espaço para um regime de exceção, em nome da segurança pública. A proposta de novo Marco da Segurança Pública, relatada pelo deputado Guilherme Derrite (Republicanos-SP), partiu dessa lógica autoritária.

Muitas críticas

O texto confrontou a Constituição de 1988, ao propor um modelo que restringe a atuação federal e subordina a Polícia Federal à autorização dos governadores. Seria um retrocesso institucional que fere o princípio da cooperação federativa. Por isso, foi duramente criticado por magistrados, membros do Ministério Público, a PF e a Receita Federal, órgãos que hoje protagonizam o combate real às organizações criminosas, justamente por fazerem o que os estados muitas vezes não conseguem: investigar.

Derrite deixou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo para levar ao Congresso a mesma política de “tolerância zero” que, na prática, enxuga gelo contra o PCC em São Paulo. O que deu certo, a Operação Carbono, foi fruto de muitas investigações e cooperação entre entes federados e seus órgãos de combate ao crime organizado.

Como relator do chamado PL Antifacções (5.582/2025), Derrite apresentou um projeto novo, canhestro, elaborado à revelia do debate técnico. Sua experiência de policial militar é a antítese do que precisa ser feito. Na verdade, seu objetivo era limitar a atuação do governo federal nas investigações, criando uma estrutura paralela — o chamado “Consórcio da Paz” — que dividiria competências entre União e estados. Na prática, isso significaria a dualidade de poderes e a blindagem de políticos locais e federais investigados pela PF e pela Receita.

Sob o pretexto de “combater as facções”, o projeto reduzia a autonomia investigativa da União e transformava a segurança em arena de poder regional. Ora, está mais do que comprovado que os governos estaduais, sozinhos, não têm condições de enfrentar o PCC e o Comando Vermelho, que hoje se expandiram nacional e internacionalmente.

A transformação das facções em entidades terroristas não é apenas erro conceitual: é risco democrático. Sob esse rótulo, amplia-se o poder coercitivo do Estado e legitima-se a supressão de direitos e garantias fundamentais. A guerra ao crime pode, assim, converter-se em guerra contra a cidadania, com licença para exceções, abusos e arbitrariedades.

Em Investigação sobre a Vítima, Venício simboliza a resistência solitária de quem ainda acredita na lei, mesmo cercado pela lama. Fora da ficção, o Brasil precisa do mesmo: uma segurança pública baseada em investigação, não em exceção; em legalidade, não em vingança.

 

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