sábado, 15 de novembro de 2025

Conquistar, perder e recuperar territórios, por Marco Aurélio Nogueira

Revista Será?

O controle sobre o território é a base do Estado moderno e da soberania nacional. Ao controlar um território, as nações controlam também as populações que nele habitam. Como garantia, organizam sistemáticos serviços de vigilância das fronteiras territoriais e de repressão aos rebeldes.

Nas melhores situações, tomam providências para prestar serviços essenciais (educação, saúde, cultura) e investir em melhorias na infraestrutura, com o que incentivam o desejo de pertencimento e a lealdade dos habitantes. Materializam, assim, a ideia de que quem manda em um território é quem o controla.

Os Estados valeram-se de vários argumentos para postular a posse de um território. A ancestralidade, a identidade étnica, a religião, a presença de uma população homogênea, o interesse econômico, a geopolítica. Mas foi sobretudo por meio de guerras, de conquistas violentas e disputas diplomáticas que limites territoriais se estabeleceram.

O território de um Estado pode estar sujeito à cobiça estrangeira, como mostra exaustivamente a história. Impérios coloniais controlaram territórios que ainda não possuíam uma estrutura político-administrativa centralizada e bem definida, na África e nas Américas. A Grã-Bretanha conquistou a Índia (1911) e países europeus repartiram a África entre si. Muitas das regiões invadidas converteram-se em economias agroexportadoras, permanecendo em estado de subdesenvolvimento, agravado pelo empobrecimento de suas populações, muitas vezes incentivadas a lutarem entre si.

Mas Estados também podem perder territórios por fatores internos. Guerras civis com propósitos separatistas sempre aconteceram. Houve vitórias, derrotas, violência, acordos e concessões, da Guerra Civil Americana (1861–1865) à Guerra Civil Espanhola (1936–1939), por exemplo.

O fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas desmontou toda a estrutura construída pelos russos depois da Segunda Guerra. Conflitos se estenderam pelos anos 1990 e 2000 e chegam aos dias atuais, com a guerra causada pela invasão russa da Ucrânia em 2022, ainda sem conclusão.

Hoje, no Brasil, o crime organizado disputa territórios. No Rio de Janeiro, 22% da população vive em favelas. Na região metropolitana, 1.702.073 de pessoas moram em “assentamentos subnormais”, como define o governo, o que corresponde a 14,4% da população da metrópole. Muitas dessas áreas são dominadas por facções criminosas. Em São Paulo, a população paulistana em favelas é enorme, superando até mesmo a carioca.

Quando um território é controlado por uma facção criminosa, as forças de segurança estatais ficam em dificuldade para agir. Alguns de seus integrantes podem formar milícias, igualmente pouco controláveis, outros podem ser corrompidos pelo crime. É o que acontece hoje em cidades brasileiras, como mostraram os acontecimentos ocorridos no final de outubro nos morros do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro.

O crime organizado apossa-se de um território mediante atividades que parecem copiar os piores procedimentos do imperialismo capitalista: instalação de operações financeiras rentáveis, oferta de serviços ilegais, Tv a cabo e internet, combustível, controle armado das fronteiras, submissão da população, exploração e corrupção da força de trabalho local. Formam verdadeiras “plataformas de prestação de serviços”, nas palavras do secretário de Segurança do RJ, Victor dos Santos.

São coisas que foram sendo plantadas lentamente, sem que o verdadeiro “dono da terra” se desse conta, se importasse ou conseguisse impedir. Com o dinheiro arrecadado por suas atividades, as facções foram cooptando e corrompendo setores das forças estatais encarregadas da segurança e da justiça. Infiltraram-se em toda a política – eleições, candidatos, suporte parlamentar, assessorias ao Executivo.

No caso de um território subnacional – uma região, um bairro, um morro, uma favela – ser apropriado por uma facção criminosa, o que se espera que o Estado faça? Que tente recuperá-lo, trazê-lo de volta ao seu controle, forçar a saída de seus ocupantes ilegais e devolver a área ocupado aos moradores. Preferencialmente, sem uso da violência. É a opção mais óbvia, e a mais complexa. Como fazer isso?

Especialistas e agentes de segurança falam em duas opções típicas: a retomada e a ocupação. A primeira implica em pegar de volta o território perdido e expulsar os invasores, se necessário à força e com uso da violência. A segunda prevê um caminho gradual, que impregne a área ocupada com serviços (saúde, educação, cultura), policiamento ostensivo, proteção patrimonial. Teoricamente, não há um oceano separando as duas opções. Se os serviços organizados aos poucos são inviabilizados por bloqueios ou ações armadas, pode-se imaginar que a resposta terá de encarar algum tipo de enfrentamento policial. Por outro lado, os propositores da retomada violenta podem aceitar que se organizem simultaneamente atividades comunitárias.

Na prática, porém, não funciona assim. As opções se cruzam com posicionamentos políticos, aspirações eleitorais, ideologias. A retomada violenta fica sendo a praia da “direita”, a ocupação passa a ser lema da “esquerda”. Assim polarizado, o problema não avança, o entendimento fica paralisado.

Há, evidentemente, saídas. Mas nada acontecerá no curto prazo. Boas leis podem ajudar, assim como melhor treinamento policial. Mas como fazer boas leis se os poderes de Estado continuarem a falar línguas diferentes? A cooperação é mais retórica do que efetiva. Polariza-se para definir se crime organizado é terrorismo ou se suas ações são terroristas, se as penas devem ou não ser aumentadas, o que fazer com policiais corruptos, se a atribuição é federal ou estadual, se deve ou não haver participação da Polícia Federal e do Ministério Público. É um emaranhado, técnico, político, jurídico, judicial, e ninguém aparece para desfazer.

Qualquer solução irá requerer múltiplos procedimentos. Como tem repetido o ex-ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, há duas gigantescas pedras no caminho. Uma é a ausência de uma força nacional de combate ao crime organizado e o descaso estatal sistemático com a segurança pública. Outra é o sistema prisional, que, superlotado e mal estruturado, funciona como verdadeira “escola do crime”. Isso para não falar na glamourização do crime e do bandido, que captura muitos jovens, na rápida expansão das facções, na sua internacionalização, sua profissionalização e seu funcionamento digital.

O desafio, portanto, é sanar essas deficiências e obter consensos entre as forças políticas, as ONGs e os movimentos sociais sobre as modalidades a serem seguidas para recuperar os territórios dominados, ou seja, devolvê-los às comunidades que neles habitam. Convenhamos, não é nada fácil.

 

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