Revista Será?
O controle sobre o território é a base do
Estado moderno e da soberania nacional. Ao controlar um território, as nações
controlam também as populações que nele habitam. Como garantia, organizam
sistemáticos serviços de vigilância das fronteiras territoriais e de repressão
aos rebeldes.
Nas melhores situações, tomam providências
para prestar serviços essenciais (educação, saúde, cultura) e investir em
melhorias na infraestrutura, com o que incentivam o desejo de pertencimento e a
lealdade dos habitantes. Materializam, assim, a ideia de que quem manda em um
território é quem o controla.
Os Estados valeram-se de vários argumentos para postular a posse de um território. A ancestralidade, a identidade étnica, a religião, a presença de uma população homogênea, o interesse econômico, a geopolítica. Mas foi sobretudo por meio de guerras, de conquistas violentas e disputas diplomáticas que limites territoriais se estabeleceram.
O território de um Estado pode estar sujeito
à cobiça estrangeira, como mostra exaustivamente a história. Impérios coloniais
controlaram territórios que ainda não possuíam uma estrutura
político-administrativa centralizada e bem definida, na África e nas Américas.
A Grã-Bretanha conquistou a Índia (1911) e países europeus repartiram a África
entre si. Muitas das regiões invadidas converteram-se em economias
agroexportadoras, permanecendo em estado de subdesenvolvimento, agravado pelo
empobrecimento de suas populações, muitas vezes incentivadas a lutarem entre
si.
Mas Estados também podem perder territórios
por fatores internos. Guerras civis com propósitos separatistas sempre
aconteceram. Houve vitórias, derrotas, violência, acordos e concessões, da
Guerra Civil Americana (1861–1865) à Guerra Civil Espanhola (1936–1939), por
exemplo.
O fim da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas desmontou toda a estrutura construída pelos russos depois da Segunda
Guerra. Conflitos se estenderam pelos anos 1990 e 2000 e chegam aos dias
atuais, com a guerra causada pela invasão russa da Ucrânia em 2022, ainda sem
conclusão.
Hoje, no Brasil, o crime organizado disputa
territórios. No Rio de Janeiro, 22% da população vive em favelas. Na região
metropolitana, 1.702.073 de pessoas moram em “assentamentos subnormais”, como
define o governo, o que corresponde a 14,4% da população da metrópole. Muitas
dessas áreas são dominadas por facções criminosas. Em São Paulo, a população
paulistana em favelas é enorme, superando até mesmo a carioca.
Quando um território é controlado por uma
facção criminosa, as forças de segurança estatais ficam em dificuldade para
agir. Alguns de seus integrantes podem formar milícias, igualmente pouco
controláveis, outros podem ser corrompidos pelo crime. É o que acontece hoje em
cidades brasileiras, como mostraram os acontecimentos ocorridos no final de
outubro nos morros do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro.
O crime organizado apossa-se de um território
mediante atividades que parecem copiar os piores procedimentos do imperialismo
capitalista: instalação de operações financeiras rentáveis, oferta de serviços
ilegais, Tv a cabo e internet, combustível, controle armado das fronteiras,
submissão da população, exploração e corrupção da força de trabalho local.
Formam verdadeiras “plataformas de prestação de serviços”, nas palavras do
secretário de Segurança do RJ, Victor dos Santos.
São coisas que foram sendo plantadas
lentamente, sem que o verdadeiro “dono da terra” se desse conta, se importasse
ou conseguisse impedir. Com o dinheiro arrecadado por suas atividades, as
facções foram cooptando e corrompendo setores das forças estatais encarregadas
da segurança e da justiça. Infiltraram-se em toda a política – eleições, candidatos,
suporte parlamentar, assessorias ao Executivo.
No caso de um território subnacional – uma
região, um bairro, um morro, uma favela – ser apropriado por uma facção
criminosa, o que se espera que o Estado faça? Que tente recuperá-lo, trazê-lo
de volta ao seu controle, forçar a saída de seus ocupantes ilegais e devolver a
área ocupado aos moradores. Preferencialmente, sem uso da violência. É a opção
mais óbvia, e a mais complexa. Como fazer isso?
Especialistas e agentes de segurança falam em
duas opções típicas: a retomada e a ocupação. A primeira implica em pegar de
volta o território perdido e expulsar os invasores, se necessário à força e com
uso da violência. A segunda prevê um caminho gradual, que impregne a área
ocupada com serviços (saúde, educação, cultura), policiamento ostensivo,
proteção patrimonial. Teoricamente, não há um oceano separando as duas opções.
Se os serviços organizados aos poucos são inviabilizados por bloqueios ou ações
armadas, pode-se imaginar que a resposta terá de encarar algum tipo de
enfrentamento policial. Por outro lado, os propositores da retomada violenta
podem aceitar que se organizem simultaneamente atividades comunitárias.
Na prática, porém, não funciona assim. As
opções se cruzam com posicionamentos políticos, aspirações eleitorais,
ideologias. A retomada violenta fica sendo a praia da “direita”, a ocupação
passa a ser lema da “esquerda”. Assim polarizado, o problema não avança, o
entendimento fica paralisado.
Há, evidentemente, saídas. Mas nada
acontecerá no curto prazo. Boas leis podem ajudar, assim como melhor
treinamento policial. Mas como fazer boas leis se os poderes de Estado
continuarem a falar línguas diferentes? A cooperação é mais retórica do que
efetiva. Polariza-se para definir se crime organizado é terrorismo ou se suas
ações são terroristas, se as penas devem ou não ser aumentadas, o que fazer com
policiais corruptos, se a atribuição é federal ou estadual, se deve ou não
haver participação da Polícia Federal e do Ministério Público. É um emaranhado,
técnico, político, jurídico, judicial, e ninguém aparece para desfazer.
Qualquer solução irá requerer múltiplos
procedimentos. Como tem repetido o ex-ministro da Segurança Pública, Raul
Jungmann, há duas gigantescas pedras no caminho. Uma é a ausência de uma força
nacional de combate ao crime organizado e o descaso estatal sistemático com a
segurança pública. Outra é o sistema prisional, que, superlotado e mal
estruturado, funciona como verdadeira “escola do crime”. Isso para não falar na
glamourização do crime e do bandido, que captura muitos jovens, na rápida
expansão das facções, na sua internacionalização, sua profissionalização e seu
funcionamento digital.
O desafio, portanto, é sanar essas
deficiências e obter consensos entre as forças políticas, as ONGs e os
movimentos sociais sobre as modalidades a serem seguidas para recuperar os
territórios dominados, ou seja, devolvê-los às comunidades que neles habitam.
Convenhamos, não é nada fácil.

Nenhum comentário:
Postar um comentário