CartaCapital
Pedido de perdão pelos crimes da ditadura foi
histórico, mas novos passos terão de ser dados
Em um ato histórico, a presidente do Superior Tribunal Militar, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, pediu desculpas pelos crimes da ditadura. Diante de uma Catedral da Sé lotada, durante a cerimônia que marcou os 50 anos do assassinato de Vladimir Herzog, sua atitude pode ser considerada como um divisor de águas na história da instituição. O gesto acena para o futuro. Em seu discurso, a ministra deixou claro que não tolerará novos atentados contra a democracia. Em outras palavras, o STM não fechará os olhos para generais envolvidos em conspirações golpistas.
Pedidos formais de desculpas são fundamentais
nos processos de redemocratização. Eles simbolizam a transformação do Estado,
da condição de algoz em regimes autoritários a parceiro na busca por reparação.
Como escreveu a antropóloga Debora Diniz, “pedir perdão é marcar a lembrança,
reconhecer as vítimas e suas dores e anunciar, para o futuro, o compromisso do
‘nunca mais’. O perdão é simbólico, mas seu alcance é profundo”.
O pedido de perdão que ecoou na Catedral da
Sé não é – e não pode ser – o ponto final de um longo trajeto. Ele precisa ser
apenas o início de um processo que busque fechar, de forma definitiva, as
feridas deixadas pela ditadura. Para que seja completo, o gesto deve ser
acompanhado da responsabilização dos agentes do Estado pelos crimes que
cometeram. Punição não é revanche, é justiça. Torturadores e assassinos
precisam ser investigados, processados e sentenciados, sempre com a garantia do
devido processo legal. Além disso, o País ainda precisa incorporar, em sua
legislação, os crimes contra a humanidade e de desaparecimento forçado.
A Lei da Anistia já não pode servir de escudo
para os responsáveis por crimes contra a humanidade, e sua revisão tornou-se
urgente. Ao longo dos anos, diferentes órgãos das Nações Unidas têm advertido
sobre a incompatibilidade desse perdão com os compromissos internacionais
assumidos pelo Brasil. Em 2021, por exemplo, o relator especial da ONU para a
Justiça de Transição destacou que legislações desse tipo alimentam a chamada
“cultura da impunidade”. Na ocasião, a entidade exortou os Estados a rejeitar
qualquer obstáculo legal ou judicial à responsabilização – como imunidades,
anistias totais ou parciais, indultos ou limitações prescricionais.
No ano seguinte, um comitê da ONU recomendou
de novo ao Brasil a revogação da Lei da Anistia e solicitou ao Itamaraty
informações sobre as medidas adotadas para responsabilizar os agentes da
ditadura. No fim de 2024, relatores da organização reforçaram essa cobrança,
reafirmando a necessidade de pôr fim à impunidade.
A pressão internacional começou a surtir
efeito. No Supremo Tribunal Federal, surgem sinais de possível ruptura, com a
decisão do ministro Flávio Dino de considerar os desaparecimentos forçados como
“crimes continuados”, que, portanto, não estariam abrangidos pela Lei da
Anistia.
O pedido de perdão ainda precisa ser
acompanhado por uma mudança estrutural de como encaramos as violações diárias
aos direitos humanos no Brasil. Para promover uma real redemocratização, os
processos de seleção nas Forças Armadas e nas polícias devem considerar o
domínio dos candidatos sobre princípios teóricos e práticos relacionados à
proteção de garantias fundamentais. Além disso, é necessário atualizar os
currículos das academias militares e policiais, incorporando de maneira
consistente conteúdos sobre democracia, cidadania e respeito à dignidade
humana.
Uma educação pelos direitos humanos e a
garantia de que a história seja contada são passos fundamentais para construir
um novo consenso. Virar a página sem ler o que estava escrito em cada linha não
nos levará a superar o passado. Nos últimos anos, o Brasil descobriu que,
quando os fantasmas do autoritarismo não são exorcizados, eles voltam. Eles
sempre voltam.
Com abusos ocorrendo diariamente em prisões e
periferias, é urgente criar mecanismos de prevenção e combate à tortura nos
estados e na União, além de promover a desmilitarização das polícias militares
estaduais e eliminar os chamados “autos de resistência”. Para milhões de
brasileiros, principalmente os jovens negros, a democracia é ainda uma ficção.
Um sonho distante, abafado pela ausência de garantias, da violência policial,
por uma educação precária e por direitos sociais ignorados.
No último fim de semana, as novas bases para
a democracia ecoaram por uma catedral tomada por esperança. Como se uma marcha
em direção à reinvenção do futuro tivesse sido iniciada, desta vez por
palavras. Os próximos passos precisarão, agora, ser dados com convicção e
coragem. •
Publicado na edição n° 1386 de CartaCapital,
em 05 de novembro de 2025.

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