sábado, 22 de novembro de 2025

Linguagem e outras ‘crenças de luxo’, por Thaís Oyama

O Globo

Em vez de ostentar seu lugar no mundo com relógios e roupas finas, muitos passaram a usar pontos de vista, vocabulário

Foram poucas e tímidas as queixas sobre a sanção, pelo presidente Lula, da lei que baniu o uso da linguagem neutra na administração pública. A prática, criada para “incluir” pessoas que não se identificam com os gêneros masculino e feminino, chegou a ser adotada pela primeira-dama, Janja da Silva, e pelo ministro Alexandre Padilha. Sendo tempo de eleição, os temores de que protestos ruidosos fizessem a alegria da direita, na forma de viralizantes vídeos a inundar as redes sociais, podem ter abrandado as reações de defensores de termos como “elu” (“Elu saiu mais cedo”) e “delu” (“Eu gosto delu”). Outra leitura, mais benigna e menos provável, é que o silêncio dos grupos identitários revela a compreensão de que a ausência da linguagem neutra nos formulários do governo não fará falta alguma. E de que é um ato de sensatez reconhecer o despropósito de elevar a padrão oficial um dialeto que, se soa bem aos ouvidos de gente com curso superior e vida ganha, é grego demótico para a maioria dos brasileiros a quem o código pretensamente inclusivo acabaria por excluir.

Nesse contexto, a linguagem neutra é uma típica “crença de luxo”, expressão do psicólogo americano Rob Henderson para qualificar as ideias e opiniões que se prestam a elevar o status social e moral de quem as promove. Em vez de ostentar seu lugar no mundo pela posse de objetos como relógios e roupas finas, muitos passaram a usar pontos de vista, vocabulário e maneirismos associados a uma elite progressista formada por estudantes e profissionais vindos das classes média e alta, com influência na política e na cultura, diz Henderson. Adotar uma crença de luxo é como sinalizar virtude, só que à custa de prejuízo aos mais pobres.

Um exemplo sempre citado por ele é o movimento “defund the police”, disseminado nos Estados Unidos em 2020, quando, falando de suas universidades de elite e seus bairros seguros, manifestantes ligados aos democratas defenderam o corte de verbas da polícia. Para moradores de áreas violentas, significava uma tragédia anunciada. Foi algo parecido com o que ocorre hoje no Brasil quando residentes de prédios com porteiros chamam repressão policial de fascismo e atribuem o apoio dado a ela pelos que vivem na linha de tiro à ignorância, ao reacionarismo ou ao fato de não terem “entendido a pergunta da pesquisa”.

Henderson conhece bem os personagens das duas pontas dessa história. Formado em Yale e ph.D. pela Universidade de Cambridge, ele não conheceu o pai e viveu com a mãe até os 3 anos num trailer, antes de se mudar para um pardieiro em Los Angeles, de onde, por denúncias de maus-tratos, foi para orfanatos até ser adotado por uma família só um pouco menos pobre e disfuncional que a original. Salvaram-no o ingresso na carreira militar e as bolsas de estudos que obteve lá. A tese da crença de luxo, conta, nasceu do choque de, ao entrar em Yale, ver colegas falarem em privilégio branco e defenderem, além do fim da polícia, também a extinção da família. Henderson, filho de mãe coreana e pai mexicano, conviveu, na infância e na juventude, com brancos tão desgraçados quanto ele e diz que, mais que a miséria, a ausência de uma família estável foi o que mais profundamente afetou a sua vida.

Os exageros da linguagem neutra podem ter o mesmo fim que teve nos Estados Unidos a moda da declaração de pronomes. Quando até o octogenário, e pouco ambíguo do ponto de vista de gênero, Joe Biden passou a declarar que era “he/his”, os millennials se deram conta de que a prática virara coisa de tio do pavê. Da mesma forma, para Henderson, certas ideias que ele classifica como crenças de luxo — como a descriminalização das drogas e privilégio branco — poderão com o tempo se popularizar, sendo assim abandonadas pelas elites por não servirem mais para distingui-las das massas. Que, como se sabe, é um conjunto da população de que a esquerda — das universidades, da mídia e dos partidos — parece querer distância faz tempo.

 

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