domingo, 2 de novembro de 2025

O dia seguinte, por Bernardo Mello Franco

O Globo

'Poder público não pode se comportar como criminoso', diz Macaé Evaristo (Direitos Humanos)

A ministra Macaé Evaristo não se conforma com a festa das autoridades fluminenses após o banho de sangue nos Complexos da Penha e do Alemão. “Fico estarrecida com gestores que comemoram, alegres, uma operação que deixou 121 mortos. É um número absurdo, que não pode ser relativizado”, indigna-se.

Na quinta-feira, a titular dos Direitos Humanos visitou a Vila Cruzeiro, um dos palcos da matança. Conversou com líderes comunitários e moradores que perderam filhos, irmãos e sobrinhos. “Eram majoritariamente mulheres negras chorando. O clima era de muita dor e emoção”, conta.

No morro, ela criticou o governo do Rio e classificou a ação policial como “fracasso”, “tragédia” e “horror inominável”. “Uma operação bem articulada de combate ao crime organizado deve proteger os direitos humanos. Há algo muito errado quando uma ação completamente atabalhoada mata mais de cem pessoas”, reprova.

Para a ministra, as declarações do governador Cláudio Castro em defesa da chacina buscam a “legitimação das mortes”. “É preciso combater o crime organizado. Mas ele não não é comandado das favelas. De onde vêm as armas?”, questiona. “As operações de alta letalidade no Rio quase sempre acontecem perto das eleições. Já é quase uma receita de bolo”, emenda.

Até a tarde de sexta, a polícia havia identificado 99 mortos. Nenhum deles era citado na denúncia do Ministério Público que deu origem à ação. Macaé disse ter ouvido relatos de pessoas que tentaram se entregar e foram fuziladas. “A lei brasileira não prevê a pena de morte nem a execução sumária. O poder público não pode se comportar como criminoso”, sentencia.

Ela diz repudiar a tese de que defensores de direitos humanos não lamentam as mortes de policiais. “Tentam estabelecer uma falsa dicotomia entre quem defende o bandido e quem defende a polícia. Em geral, os trabalhadores das forças de segurança também são vítimas”, sustenta. “Um dos policiais que morreram tinha 40 dias de atividade. Não poderia ter sido mandado para a linha de tiro.”

No cargo há pouco mais de um ano, a ministra reconhece que está mais difícil empunhar a bandeira dos direitos humanos no país. “Há uma banalização da barbárie, das mortes violentas”, desabafa. “É preciso pensar a desumanização da população pobre, preta e da periferia. A gente costuma dizer que isso é fruto de 300 anos de escravização e negação de políticas públicas. Mas o Estado reitera o problema quando naturaliza a ação violenta nas favelas”, diz.

Na Vila Cruzeiro, a ministra ouviu apelos por investimentos em educação, cultura e qualificação profissional para disputar os jovens com o tráfico. “Os moradores querem paz, querem sair de casa sem ter que passar por alguém de fuzil na mão. Ninguém deseja ver o filho nesse caminho. A questão é: onde estão as alternativas?”, cobra.

Para Macaé, o ciclo de abandono das favelas já começou a se repetir. “Fizeram a incursão policial e não tinham nenhum plano para o dia seguinte. Ninguém pensou em como acolher as crianças que foram obrigadas a circular entre cadáveres. As escolas ainda não voltaram a funcionar. Fica todo mundo olhando pesquisa e falando em eleição, mas a comunidade precisa de socorro.”

 

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