O Novo Macartismo
O paralelo com o macartismo dos anos 1950 é estruturalmente preciso. Joseph
McCarthy perseguia supostos comunistas alegando defender a democracia
americana; o novo macartismo segue nessa mesma trilha, persegue democratas,
acadêmicos e jornalistas em nome de uma visão autoritária de poder
ultranacionalista. A diferença metodológica é crucial: enquanto McCarthy
operava através de comissões congressionais com alguma supervisão judicial, o
novo sistema utiliza poderes executivos expandidos e agências federais, criando
menos pontos de controle institucional, ou seja, é muito mais perigoso que o
original.
Os mecanismos específicos de coerção em 2025 são impressionantemente
abrangentes. Cinquenta e três universidades estão sob investigação federal por
violações de programas DEI - Diversidade, Equidade e Inclusão, com ameaças de
corte de 400 milhões de dólares em financiamento federal. Sistemas de
vigilância de redes sociais monitoram estudantes internacionais, buscando
identificar posições “pseudo-antissemitas". O uso de leis de emergência
contra opositores políticos se intensifica, incluindo tarifas políticas
punitivas como as de 50% contra o Brasil em fevereiro de 2025, uma escalada que
ecoa as sanções arbitrárias de regimes autoritários contra países que os
desafiam.
Esse padrão de perseguição ampla encontra paralelos inquietantes em outros
contextos. Bukele em El Salvador utilizou a guerra contra gangues para
justificar estado de emergência que já dura mais de dois anos, permitindo
prisões em massa e suspensão de direitos constitucionais. Embora inicialmente
popular devido à redução dramática da violência, o modelo salvadorenho
demonstra como crises reais podem ser instrumentalizadas para consolidação
autoritária. Trump aprende dessa experiência, usando múltiplas
"emergências" simultâneas - imigração, "wokismo",
"marxismo cultural", para justificar poderes extraordinários.
Apoiadores dessas medidas apresentam contra-argumentos que merecem consideração
séria. Grupos como a Foundation for Individual Rights in Education apresentam
dados mostrando que 79% dos estudantes conservadores relatam autocensura em
campus universitários, argumentando que as medidas restauram "equilíbrio
ideológico". Essa narrativa de opressão conservadora em universidades, embora
contestada por evidências mais amplas, ressoa com experiências genuínas de
estudantes e professores conservadores em certos ambientes acadêmicos. O
problema não é a inexistência desses fenômenos, mas sua instrumentalização para
justificar medidas autoritárias desproporcionais.
Militarização Silenciosa das Instituições
O Estado de direito enfraquece através de táticas que testam sistematicamente
os limites constitucionais. Esta estratégia, denominada de "legalismo
autocrático", mantém aparências de legalidade enquanto subverte a
substância democrática. O modelo é aplicado com precisão cirúrgica, cada medida
individual pode parecer defensável, mas o conjunto produz transformação
qualitativa e exponencial do regime.
O uso do chamado tarifaço contra o Brasil exemplifica essa dinâmica.
Tradicionalmente reservado para ameaças genuínas à segurança nacional, o International
Emergency Economic Powers Act - IEEPA é agora aplicado contra aliados
históricos por divergências políticas menores. Tentativas de influenciar
nomeações judiciais através de pressão política direta se intensificam,
enquanto a transformação do aparelho de Estado em instrumentos de perseguição
política interna e externa avança sistematicamente.
Particularmente reveladora é a coerção midiática via Comissão Federal de
Comunicações, que pressiona redes de TV através de aprovações de fusões
bilionárias. A suspensão do talk show de Jimmy Kimmel pela ABC em setembro de
2025, após críticas persistentes ao trumpismo, e o cancelamento de Stephen
Colbert na CBS demonstram como agências regulatórias são instrumentalizadas
para silenciar vozes dissidentes através de pressão econômica direta e
indireta. O padrão nem é mais sutil e, diante disso, redes de TV
"voluntariamente" silenciam críticos para proteger interesses
comerciais multibilionários sob análise governamental.
Essa tática ecoa métodos utilizados por Orbán na Hungria, onde oligarcas
aliados compraram ou estrangularam economicamente veículos de mídia
independentes. Bukele em El Salvador emprega variação similar, usando
auditorias fiscais seletivas e pressão publicitária estatal para disciplinar
jornais críticos. O modelo americano é mais sofisticado porque utiliza o
próprio mercado como mecanismo de censura, mantendo aparências de liberdade
empresarial.
Tribunais federais demonstram capacidade de resistência, com decisões
contrárias à administração em 67% dos casos contestados até março de 2025. O
sistema judiciário federal, com seus juízes vitalícios, representa o principal
obstáculo institucional ao autoritarismo. Mas essa resistência enfrenta pressão
crescente através de nomeações estratégicas e campanhas de deslegitimação. O
cenário futuro depende da velocidade dessa captura judicial, resistência
bem-sucedida pode frear a deriva autoritária, mas nomeações judiciais futuras
podem alterar irreversivelmente o equilíbrio de poder.
EUA como Catalisador da Extrema-Direita Global
A dimensão internacional representa talvez a transformação mais revolucionária
e subestimada. Os Estados Unidos abandonaram o papel de promotor da chamada
democracia liberal para se tornarem ativamente um catalisador global do
autoritarismo. Essa inversão histórica produz ondas sísmicas através de todo o
sistema internacional.
A interferência eleitoral americana agora rivaliza com práticas de regimes
autocráticos. O bilionário Elon Musk promove abertamente o AfD alemão (partido
de orientação neonazista) antes das eleições de março de 2025, enquanto a
Conferência "Make Europe Great Again" em Madrid coordena estratégias
entre Trump, Orbán, Meloni e o partido Vox espanhol. O vice-presidente JD Vance
critica "erosões democráticas" europeias na Conferência de Munique,
invertendo completamente a retórica tradicional americana sobre direitos
humanos e democracia, ou seja, estamos vendo uma verdadeira "Internacional
Fascista" em pleno funcionamento.
Institutos de pesquisa europeus registram aumento de 23% na aprovação de
partidos de extrema-direita após endossos americanos explícitos. O fenômeno
representa inversão completa da abordagem tradicional estadunidense, que
historicamente favorecia forças democráticas-liberais. Agora os Estados Unidos
exportam autoritarismo com a mesma eficácia que antes exportavam seu modelo de
democracia.
Essa coordenação internacional autoritária encontra paralelos históricos
inquietantes. Assim como regimes fascistas dos anos 1930 se inspiravam e
coordenavam mutuamente, a nova extrema-direita desenvolve solidariedade
transnacional baseada em valores compartilhados: nacionalismo étnico,
autoritarismo populista, racismo, misoginia, desprezo por instituições
multilaterais e democráticas e perseguição à diversidade sexual. Bukele
participa dessa rede através de relacionamento próximo com Javier Milei na
Argentina e apoio explícito a Trump, criando eixo autoritário que busca
contaminar as Américas.
Realistas da política externa apresentam interpretação alternativa,
argumentando que essa reorientação reflete declínio hegemônico natural dos EUA
e busca por novos aliados em mundo multipolar. Alguns analistas veem essa
mudança como adaptação estratégica, e não travessia ideológica. Essa
perspectiva tem mérito analítico, mas subestima o componente sistêmico e
genuíno da transformação trumpista e sua capacidade de inspirar movimentos
similares globalmente.
Autocensura como Arma: O Silenciamento da Sociedade
A chamada "erosão executiva" é considerada mais perigosa que golpes
dramáticos, porque produz desengajamento cívico através de intimidação
psicológica. A autocensura se torna arma mais eficaz que a censura direta, pois
cria aparência de liberdade enquanto produz conformidade real e cria seguidores
que replicam a ideologia dominante. Pesquisas quantitativas documentam esse
fenômeno com precisão alarmante. Nessas pesquisas, professores universitários
relatam modificar currículos por medo de represálias, enquanto jornalistas
admitem evitar temas considerados "sensíveis", e grandes corporações
de mídia autocensuram conteúdo crítico ao governo, criando um sistema interno
de coerção que mantém aparências de liberdade editorial.
O humor político emergiu paradoxalmente como forma mais eficaz de resistência
democrática. Comediantes tornaram-se mais efetivos que a oposição política
tradicional na denúncia de contradições do poder, precisamente porque o humor
fura bolhas ideológicas e expõe absurdos de forma acessível. Não
coincidentemente, esses enfrentaram pressões sistemáticas: o comediante Jimmy
Kimmel foi suspenso em setembro de 2025 após críticas persistentes ao
trumpismo, enquanto Stephen Colbert teve seu programa cancelado quando a CBS
decidiu resolver "questões pessoais" com Trump. O padrão revela como
o humor político, por sua capacidade de mobilizar através do riso, representa
ameaça particular ao autoritarismo.
Movimentos de resistência organizada mostram resiliência impressionante. A Federal
Employee Unions Coalition e Scholars at Risk organizaram redes de proteção
mútua, enquanto mais de 200 universidades criaram fundos legais para defesa de
professores. Esta mobilização sugere capacidade resiliente das instituições da
sociedade civil norte-americana, mas enfrenta os enormes recursos e organização
estatal crescentes.
Veredito Científico: Consenso sobre o Declínio
O consenso acadêmico sobre a natureza da transformação americana é
extraordinário em sua convergência. Estudo conduzido pelo Instituto V-Dem com
527 cientistas políticos americanos em janeiro de 2025 revela que 89%
classificam o regime atual como "autoritarismo competitivo" ou
"democracia defectiva". Steven Levitsky, da Universidade de Harvard e
autoridade mundial em transições autoritárias, é categórico: "Não estamos
mais vivendo em um regime democrático".
As métricas internacionais confirmam essa avaliação. A Freedom House rebaixou
os EUA de 83 para 71 pontos entre 2017 e 2025, enquanto o Polity IV reduziu a
classificação de +8 para +5 na escala democrática. O V-Dem Democracy Index
coloca os Estados Unidos em 29º lugar global, abaixo de países como Uruguai e
Costa Rica - uma humilhação histórica para o suposto e autonomeado "líder
do mundo livre".
A comparação internacional torna o declínio estadunidense ainda mais evidente.
Enquanto os Estados Unidos retrocedem, países como a própria Polônia
demonstraram capacidade de reverter deriva autoritária através de mobilização
eleitoral massiva em 2023. A diferença crucial é que a Polônia contava com
pressão externa da União Europeia, enquanto os Estados Unidos, como potência
hegemônica, não enfrentam constrangimentos externos equivalentes. Logicamente
que vozes dissidentes existem, mas são cada vez mais minoritárias. As
instituições dos EUA ainda mantêm alguma robustez capaz de reverter o declínio
democrático, embora a velocidade e sofisticação dos processos de captura
institucional abalem profundamente esse muro institucional ainda de pé.
Cenários Futuros: Entre Colapso e Consolidação
A análise prospectiva identifica três cenários principais, cada um com
probabilidades estimadas baseadas em modelos comparativos de transições
autoritárias. O primeiro e mais provável cenário aponta para consolidação
autoritária plena, esse cenário envolve captura completa do judiciário federal
através de nomeações estratégicas, federalização da segurança eleitoral para
eliminar controles estaduais e controle crescente da mídia através de pressão
econômica sistemática. O precedente histórico é a Hungria entre 2010 e 2018,
onde Viktor Orbán consolidou hegemonia através de métodos similares,
transformando uma democracia europeia em autocracia estável.
O segundo cenário prevê estabilização em modelo de autoritarismo competitivo.
Eleições continuam ocorrendo, mas com vantagens sistemáticas para incumbentes,
enquanto a oposição é tolerada, mas constrangida através de múltiplos
mecanismos legais e extralegais. Este modelo pode persistir por décadas, como
demonstram casos na Hungria, Rússia e Venezuela, criando aparência de
pluralismo político enquanto elimina possibilidade real de alternância.
O terceiro cenário envolve a restauração democrática através de mobilização
eleitoral massiva nas eleições subsequentes, resistência judicial bem-sucedida,
pressão internacional coordenada ou divisões na coalizão autoritária.
Precedentes sugerem possibilidade de reversão, mas requerem condições
específicas e um nível de mobilização interna e apoio externo que podem não se
materializar nos Estados Unidos de hoje.
Resistência e Resiliência
Diferentemente de muitos casos de transição autoritária, os Estados Unidos
mantêm recursos institucionais significativos para resistência. A estrutura
federal permite que estados democratas como Califórnia e Nova York utilizem
recursos econômicos e legais substanciais para resistir à centralização
federal. O federalismo americano, ironicamente criado para proteger o regime
escravocrata, pode agora proteger a democracia através de múltiplos centros de
poder que complicam a captura autoritária total pelo poder central.
O poder judicial federal, com seus juízes vitalícios nomeados em administrações
anteriores, mantém independência relativa que frustra sistematicamente
iniciativas autoritárias. Decisões contrárias à administração em casos de
comércio, imigração, meio ambiente e direitos civis demonstram capacidade de
resistência institucional que diferencia os Estados Unidos de muitos outros
casos de deriva autoritária.
A sociedade civil americana permanece robusta, com organizações expandindo
recursos e capacidade de litígio para níveis históricos. Financiamento privado
para defesa de direitos civis atingiu volumes sem precedentes, criando
infraestrutura de resistência que pode sustentar uma oposição prolongada. A
mídia independente, apesar da pressão crescente através de agências
regulatórias federais, mantém capacidade investigativa significativa. Meios
como o New York Times possuem recursos financeiros e reputação global que
complicam tentativas de silenciamento direto. Plataformas digitais
descentralizadas ainda dificultam controle total da informação, embora as
chamadas big techs estejam abertamente apoiando o governo de Donald Trump e
apoiando a crescente desestruturação democrática.
Lições do Autoritarismo Contemporâneo
A experiência húngara, nascida em 2010 e presente até hoje, oferece lições
cruciais sobre consolidação autoritária através de controle midiático
sistemático, reforma judiciária estratégica e instrumentalização de fundos
europeus para cooptação política. A lição central é que recursos externos,
incluindo ajuda internacional, podem ser capturados e pervertidos por regimes
autoritários para fortalecer seu próprio poder.
A Polônia, entre 2015 e 2023, demonstra dinâmica diferente, em que tentativas
de captura judicial foram bloqueadas por resistência sustentada da sociedade
civil e pressão da União Europeia, culminando em restauração parcial da
democracia em 2023. A lição crucial é que mobilização sustentada pode reverter
deriva autoritária, mas requer coordenação entre sociedade civil, oposição
política e pressão externa.
El Salvador sob Bukele desde 2019 exemplifica como popularidade genuína pode
ser instrumentalizada para consolidação autoritária. Bukele mantém aprovação
superior a 80% enquanto desmonta sistematicamente controles institucionais,
demonstrando que autoritarismo competitivo pode ser profundamente popular,
especialmente quando produz resultados tangíveis como redução da criminalidade.
O Fim da Era Liberal?
A transformação dos Estados Unidos transcende fronteiras nacionais com
implicações sísmicas para a ordem internacional. Como potência global desde
1945, estruturaram o sistema internacional liberal através de instituições
multilaterais, alianças econômicas e promoção dos seus valores internos. Sua
conversão aberta ao autoritarismo produz efeitos sistêmicos que redefinem a
própria natureza das relações internacionais.
O efeito dominó é mensurável e acelerado. Regimes autoritários globalmente
sentem-se legitimados e empoderados pela transformação americana, enquanto
índices de democracia global registram declínio acelerado desde 2017. A total
inversão do já limitado soft power americano agora favorece movimentos
autoritários ao invés dos regimes liberais-democráticos, representando uma
mudança histórica comparável ao fim da hegemonia do Império Britânico no século
XX.
Alianças tradicionais como NATO e OCDE enfrentam crise existencial sem
liderança democrática americana consistente. Instituições multilaterais perdem
capacidade de coordenação e enfrentamento, criando um vácuo complexo de
analisarmos no curto prazo, mas que surgirão como alternativas ao liberalismo
americano decadente. Paradoxalmente, a crise norte-americana pode catalisar
democratização em outras regiões. Europa, América Latina e Ásia podem assumir
liderança democrática global, desenvolvendo modelos alternativos de governança
liberal que não dependam de hegemonia americana. Essa transição, embora
potencialmente positiva a longo prazo, envolve um período de instabilidade e
incertezas significativas.
Entre Colapso e Renovação: O Veredito
O que testemunhamos nos Estados Unidos representa momento de inflexão histórica
cujo resultado permanece genuinamente indeterminado. As forças de erosão
democrática são poderosas, sistemáticas e seguem padrões reconhecíveis de
transição autoritária observados em múltiplos contextos contemporâneos.
Simultaneamente, recursos de resistência institucionais, sociais e federais
mantêm capacidade significativa de resposta que diferencia o caso americano de
muitas outras transições autoritárias.
A questão central não é se a democracia dos EUA enfrenta ameaça existencial - o
consenso acadêmico confirma inequivocamente que enfrenta - mas se possui
recursos suficientes para superá-la. A resposta determinará não apenas o futuro
deste país, mas o destino da própria ideia democrática no século XXI, pois a
falência da democracia liberal em seu berço histórico representaria golpe
devastador para essas aspirações de forma global.
Para o mundo, isso representa simultaneamente o fim de uma era e o início de
outra. Se a democracia liberal pode morrer onde nasceu e floresceu por mais de
dois séculos, que esperança resta para sua sobrevivência em contextos menos
favoráveis? Alternativamente, se pode ser renovada e fortalecida através desta
crise existencial, que lições oferece para democratização e resistência
autoritária mundial? Que tal uma nova democracia baseada verdadeiramente na
inclusão, igualdade, fraternidade, solidariedade, humanismo e
internacionalismo?
A história permanece aberta. O autoritarismo americano não é inevitável, assim
como seu modelo de democracia não é eterno. O que emerge desta crise dependerá
da capacidade de mobilização coletiva dos próximos anos críticos. Neste
sentido, o diagnóstico sombrio deste texto não constitui profecia fatalista,
mas alerta para ação urgente e sustentada em defesa das instituições
democráticas, ainda que imperfeitas, enquanto ainda é possível salvá-las. O
tempo está se esgotando, mas não se esgotou. A democracia norte-americana pode
morrer ou pode renascer ainda mais forte em novos parâmetros, quem sabe, mais
inclusiva e socialmente mais justa.
*Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

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