Folha de S. Paulo
Prisão reforçou certo desânimo de liderança
evangélica com ex-presidente
Com lábia de pastor, Tarcísio empolga
religiosos que um dia reverenciaram Bolsonaro
A cúpula evangélica do país continua a vestir
a camisa bolsonarista, mas já admite que esse tecido esgarçou. O sentimento foi
reforçado pela prisão de Jair
Bolsonaro (PL),
sucedida por momentos descritos como constrangedores por pastores, como o vídeo
em que ele fala da tentativa de abrir uma tornozeleira com ferro de
solda.
Os reveses judiciais, somados à sua derrota
em 2022 para Lula (PT), após uma campanha com alta voltagem messiânica, têm
desanimado boa parte dos líderes que lhe fizeram juras de amor no passado.
Aquele coro barulhento de púlpitos e lives hoje soa mais tímido, até omisso. A maioria dos pastores que faziam fila para ungir Bolsonaro já prefere o silêncio calculado.
Demonstrações públicas de afeto costumam vir
de políticos evangélicos, como a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), que
clamou pela "voz de um Brasil que ainda tem coragem".
Ou o deputado Marco Feliciano (PL-SP). Ele
diz que evangélicos nunca abandonarão seu capitão. "Não bastasse a injusta
prisão, para justificá-la, culparam a vigília de oração convocada por Flávio
Bolsonaro. Isso, para nós, é inadmissível."
A bancada evangélica divulgou
nota que é quase um exercício de caligrafia institucional: repete o
mantra do "devido processo legal", manifesta solidariedade à família,
fala em "elevada tensão" no Brasil —e para por aí. Não há qualquer
tentativa de transformar Bolsonaro em mártir espiritual, como já se viu em
outros tempos.
O texto parece escrito com luvas: evita
adjetivos inflamados, não cita valores cristãos e se escora em termos
jurídicos. A impressão é de que o bloco precisava se pronunciar, mas escolheu a
zona neutra, quase no limite do protocolar. O grupo é liderado por um
bolsonarista tido por pares como não radicalizado, Gilberto Nascimento (PSD-SP)
—que tem, por sinal, Silas
Malafaia como cabo eleitoral.
Há, claro, Malafaia, firme
e forte como porta-voz do bolsonarismo nas igrejas, quase como quem
prega no deserto. Seus vídeos inflamados contra o ministro do STF (Supremo
Tribunal Federal) Alexandre de Moraes, antes capazes de incendiar a opinião
pública evangélica, agora têm efeito reduzido.
Nenhum outro líder de envergadura nacional,
passadas mais de 72 horas após Moraes decretar a prisão preventiva de
Bolsonaro, fez uma defesa apaixonada do ex-presidente. A Folha conversou com três
deles, que subiam em palanques e púlpitos com Bolsonaro durante o último ciclo
eleitoral.
Eles falam em "consternação" pela
prisão daquele que tinham como presidente que mais se alinhou a seus valores.
Mas já deu. "Ele deixou de ser unanimidade", diz um desses pastores,
que prefere falar em anonimato. Menciona o "fator Malafaia", que
inibiria muitos líderes de expor mais abertamente certa prostração com o
bolsonarismo, com medo de serem atacados pelo pastor carioca.
O pastor, por sua vez, diz lamentar que a
maioria dos líderes não tenha "muita coragem, muita convicção e muito
argumento" para peitar Moraes. "Não é só pastor, não, minha filha. É
a sociedade inteira. Nunca tivemos um povo com medo de postar coisas nas redes
sociais como agora." A retração, segundo ele, é culpa de Moraes, a quem
acusa de perseguir quem tem opiniões que o desagradem.
Fato é que, fora Malafaia, não há
posicionamento mais combativo contra o destino judicial de Bolsonaro. De
Estevam Hernandes (da Marcha para Jesus) a Renê Terra Nova (influente no Norte
brasileiro), nem um pio.
Falas como a de César Augusto, à frente da igreja
Fonte da Vida, sintetizam a disposição de defender o ex-presidente a esta
altura do campeonato.
À Folha ele pede tratamento
"humanitário" com "um senhor de 70 anos" de saúde
fragilizada pelo atentado sofrido em 2018, diz. "Eu, como sacerdote,
continuo em oração. Peço que Deus intervenha trazendo justiça e paz a nossa
nação."
O tom se avizinha ao da nota emitida pela
Frente Parlamentar Evangélica. Algo, inclusive, que "destoa da forma como
Bolsonaro se apresenta", repara o cientista político Vinicius do Valle.
"Ele tinha isso de ser uma pessoa comum e ao mesmo tempo mostrar força:
‘Sou imbrochável, incomível, imorrível'."
A imagem do governante que emula tanto um
homem do povo, gente como a gente, quanto um super-homem aparece agora
comprometida. Parte do apelo de Bolsonaro com a base evangélica residia
justamente aí.
Ele tentou vestir a fantasia do líder viril
típico de certas leituras bíblicas —o guerreiro destemido, à imagem de um Davi
que enfrenta gigantes ou de um Josué que conquista territórios com respaldo
divino. Esse imaginário masculino foi mobilizado para vender a ideia de um
comandante ungido.
Sem perspectiva de retorno imediato ao jogo
institucional e com processos se acumulando, Bolsonaro deixa de ser ativo
eleitoral para virar risco reputacional.
A prisão não enterra o bolsonarismo entre
evangélicos, mas a "solução Tarcísio de Freitas", uma chapa
presidencial encabeçada pelo governador de São Paulo, encorpa a cada dia que
passa. Com lábia de pastor, o católico filho de missionária evangélica empolga
muitos desses pastores que um dia reverenciaram Bolsonaro como resposta dos
céus para o Palácio do Planalto.

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