O Globo
Política militarizada de mortes não vencerá
crime organizado
Depois de breve recolhimento, em que preferiu não aparecer na mesma foto dos governadores açodados por surfar a popularidade súbita do colega fluminense, Cláudio Castro, Tarcísio de Freitas, de São Paulo, foi às redes sociais pela política de confronto. Presidenciável do campo bolsonarista, de extrema direita, escreveu que “não se combate essa ameaça [a perda da soberania do Estado para o crime organizado] apenas asfixiando financeiramente ou com discursos”. Justo ele, à frente do estado alvo da mais bem-sucedida ação integrada de desarticulação financeira da facção criminosa que domina São Paulo, a Operação Carbono Oculto. Justo ele, que viu as operações policiais de sua gestão, na Baixada Santista, citadas como suspeitas de “execuções extrajudiciais” em relatório do governo de Donald Trump sobre violações de direitos humanos no Brasil. Justo ele, cobrado pelo aumento de casos de latrocínios e furtos — sem falar na execução, no intervalo de dez meses, de Vinícius Gritzbach, delator do PCC, e de Ruy Ferraz Fontes, ex-delegado-geral da Polícia Civil paulista.
No Brasil, o calendário eleitoreiro de 2026
foi antecipado, o que é péssimo para o debate urgente sobre enfrentamento ao
crime organizado e às outras formas de violência que desesperam brasileiras e
brasileiros no Rio de Janeiro, em São Paulo, Brasil afora. Numa pesquisa Atlas
depois do massacre nos complexos da Penha e do Alemão, sete em cada dez
moradores do Rio de Janeiro disseram ter testemunhado algum crime nos três
meses anteriores. Pela ordem: roubo de celular, roubo à mão armada, tráfico de
drogas, vandalismo e tiroteio. Na consulta nacional, 57% viram algum ilícito:
roubo de celular, tiroteio, roubo à mão armada, tráfico de drogas, roubo de
carro. É, sim, sobre os grupos armados do tráfico, mas não só.
A política de morte de indivíduos envolvidos
com o varejo de drogas e o domínio de territórios populares produz mortes,
inclusive de policiais — e votos. Mas, aplicada há décadas, não intimidou o
crime. Apenas no ano passado, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, 6.243 pessoas foram mortas no país em decorrência de intervenção
policial. Na Bahia, agentes de segurança mataram 1.556, mais que a soma de Rio
(703) e São Paulo (813) no mesmo período. PCC e Comando Vermelho, entre outras
organizações, seguem dominando porções cada vez maiores do território nacional,
matando, extorquindo, corrompendo, lucrando. Nesta semana, ação da polícia
baiana, com participação da PF, levou à prisão 38 integrantes do CV; um
suspeito morreu.
Ainda ontem, o Ipea apresentou edição
preliminar do Atlas da Violência 2025. O estudo crava a desconcentração da
violência letal, a interiorização do crime e o avanço das facções para cidades
médias e pequenas. As facções, diz a publicação, estão presentes em todas as
unidades da Federação. A Bahia é marcada por disputas territoriais intensas e
letais. Em Pernambuco, há 12 grupos criminosos em conflito. No Amazonas e no
Amapá, os confrontos entre PCC, CV e gangues regionais têm feito a violência
escalar em cidades médias e portuárias. Em São Paulo, reina a “pax
monopolista”, pacificação resultante do domínio absoluto do PCC. O Rio tem CV,
TCP e milícias.
A megaoperação que deixou 121 mortos no Rio
não varreu o crime no Alemão nem na Penha. O principal alvo da centena de
mandados de prisão, alcunha Doca, segue foragido. As comunidades continuam
oprimidas pelos fuzis e pela exploração de serviços que o Estado e a iniciativa
privada deveriam oferecer. As primeiras pesquisas de opinião pós-matança, como
definiu o presidente da República, revelaram uma população, ao mesmo tempo,
vingada e insegura. Segundo a Quaest, dois terços dos fluminenses aprovaram a
ação da polícia de Castro — entre os homens, a proporção (79%) foi maior que
entre as mulheres (51%). Para 73% deles, houve sucesso; para 44% delas,
fracasso. Cabe lembrar: elas votam.
Mais da metade (52%) dos entrevistados disse
não se sentir mais segura desde o 28 de Outubro. Se não resolveu a situação no
RJ, o massacre catapultou discussões há muito necessárias. Sem a lente embaçada
pelo cálculo eleitoral de 2026, dá para ver um esboço de consenso. A
construção, em verdade, começara antes, nas disputas municipais de 2024, quando
o combate à violência foi cobrado também dos candidatos a prefeito. Basta ver a
proliferação de câmeras para registro de ocorrências e reconhecimento facial
pelas capitais brasileiras, bem como a multiplicação das guardas municipais
armadas. Estas fazem parte da PEC da Segurança, recém-desengavetada no
Congresso Nacional.
Nas manifestações do governo de esquerda e
dos governadores da direita está claro que, sozinhos, os estados não darão
conta do crime organizado. As facções não apenas nacionalizaram-se; atuam
também fora do país. Tomaram atividades econômicas dentro e fora das
comunidades e dos bairros dominados. Ligaram-se a empresas de serviços
financeiros para promover intrincadas operações de lavagem de dinheiro. Se não
serão vencidas com investigações sobre o caminho do dinheiro, com a
participação da PF, da Receita, do Coaf, tampouco serão com a política
militarizada de mortes às centenas nas favelas. Afinal, já não foram.

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