O Estado de S. Paulo
Promotor jurado de morte pelo PCC analisou
durante dois dias o substitutivo apresentado por Derrite e pede que votação
seja adiada para que possíveis falhas sejam discutidas e corrigidas
O promotor Lincoln Gakiya está jurado de morte pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). No último mês, a polícia descobriu mais um plano da facção para assassiná-lo. É difícil pensar em uma voz com mais legitimidade do que o promotor para analisar as mudanças que o deputado federal Guilherme Derrite (PP-SP) pretende fazer no projeto antifacção do governo federal. Ele estudou o texto no fim de semana e contou suas conclusões à coluna.
Acima das paixões políticas, Gakiya sabe o
custo que mudanças legais podem trazer para a vida dos brasileiros e para a sua
própria. Deve, portanto, ser ouvido por todos aqueles que têm honestidade de
propósitos e não colocam os interesses eleitorais acima da necessidade de se
aperfeiçoar a legislação para combater o crime organizado que pulou do estágio
das organizações criminosas comuns para atingir aquele das organizações de tipo
mafioso.
O alerta que Gakiya endereça aos parlamentares é preocupante. Ele teme que, se o substitutivo for aprovado como está, a Polícia Federal e o Ministério Público possam ser excluídos do combate ao crime organizado. Tudo por causa da redação do artigo 11 do substitutivo de Derrite, entregue menos de 24 horas depois de ele ser nomeado relator do projeto. O deputado disse à coluna que pretende ouvir os promotores e ainda pode modificar o texto.
Se o projeto do deputado Danilo Forte (União-CE), que classificava o crime organizado como terrorismo, excluía as polícias estaduais e os promotores do combate ao crime organizado, Derrite tentou consertar esse problema, mas pode ter criado outro. É o que explica Gakiya:
“O ponto principal é que o relatório do Derrite optou por fazer uma modificação na Lei Antiterrorismo, a lei 13.260/16. Ao contrário do projeto do Executivo, que previa uma alteração na Lei de Organizações Criminosas, a lei 12.850, criando condutas que tipificariam a organização criminosa qualificada.” Aqui está a origem de toda a confusão que pode atingir o combate ao crime organizado no Brasil.
É que terrorismo é crime federal. Ao
equiparar as facções com o terrorismo, criava-se uma bagunça judicial, com a
mudança de competência de milhares de processos, abrindo espaço para
contestações e, portanto, para impunidade nos casos em andamento. Pior: a PF
não tem estrutura para cuidar de todos os casos. O que fez Derrite para evitar
isso? Explicitou que a competência dos Estados para punir esses crimes seria
mantida. Mas o problema seria como ele fez isso, deixando a investigação
expressamente a cargo das Polícias Civis estaduais.
É aqui que moraria a nova ameaça ao combate
ao crime organizado, que poderia impedir no futuro, segundo a preocupação de
Gakiya, que operações como a Zargun (que flagrou o deputado
TH, no Rio), a Fim da Linha (transporte público
em São Paulo), Salus Et Dignitas (cracolândia,
em São Paulo) e Carbono Oculto sejam realizadas.
Tudo dependeria de como a Justiça vai interpretar a lei. Gakiya explica:
“No caso também do artigo 11, do substitutivo
do relator Derrite, se você verificar toda a apuração e a competência para
julgamento de atos terroristas previstos na lei antiterrorismo, são da Polícia
Federal e da Justiça Federal. Ok? E aí no parágrafo seguinte, Derrite já
ressalva que nesse novo tipo penal, que ele incluiu no artigo 2º da lei
antiterror – as organizações criminosas equiparadas ao terrorismo –, a
investigação caberá às Polícias Civis."
Gakiya faz o alerta: “O texto não mencionou o
Ministério Público. Então, ele coloca: ‘A investigação criminal caberá às polícias
civis e a competência para processamento e julgamento será da Justiça Estadual,
respeitando os critérios de competência previstos na legislação’. É, pelo
texto, a exclusão da PF para atuar em investigação de qualquer caso de facção
criminosa previsto nessa lei”. O promotor teme que, assim, o artigo seja
interpretado.
E prossegue: “Como eu disse, todas as facções
criminosas, pelo menos as que eu conheço, utilizam violência ou grave ameaça
para intimidar, coagir ou constranger a população ou agentes públicos, com o
propósito de impor ou exercer controle, domínio, influência total ou parcial
sobre áreas geográficas, comunidades e territórios. Em maior ou menor proporção,
todas as facções do Brasil estão abrangidas pelo texto da lei como organizações
criminosas equiparadas a organizações terroristas”.
E conclui: “Portanto, no caso de crime
praticado por essas organizações ou então o crime praticado por uma associação
criminosa ou por uma milícia privada, mas que tem as condutas do artigo 2º, a
Polícia Federal não terá atribuição para atuar. E tampouco o Ministério
Público”.
Para o promotor, isso traz um vício legal,
“uma inconstitucionalidade quando exclui o Ministério Público desta atribuição
para investigação, porque caberia também ao Ministério Público as investigações
desses crimes”. “Aqui, eles excluem a PF. Então, doravante, a Polícia Federal
não poderia mais atuar em casos de investigação ligados a facções.” Derrite
negou que esse fosse seu desejo. E é certo que esse não era o seu objetivo. Mas
como evitar que isso seja entendido dessa forma na Justiça?
Gakyia analisa outro ponto que leva a essa
interpretação: “No parágrafo único (no mesmo
artigo 11) ainda se prevê o seguinte: quando houver repercussão
interestadual ou transnacional dos fatos, e potencial de afetar a segurança
nacional, desestabilizar a ordem pública internacional, aqui poderá o Ministério da Justiça – e só aqui
– e, mediante provocação do governador, determinar a atuação conjunta ou
coordenada das forças Policiais Federal e Estaduais".
Para o promotor, apesar da intenção de
Derrite, esse dispositivo deixa explícito o problema: “Aqui está o o principal
problema da lei. Ela não promove a integração. Pelo contrário, ela promove a
desintegração. Ela incentiva a atuação isolada da Polícia Civil Estadual nos
casos de crime envolvendo facções como Comando Vermelho e PCC, na medida em que
ela só autoriza a atuação de forças federais, como a PF, se for solicitada pelo
governador ao ministro da Justiça”.
Para Gakiya isso pode levar a contestações ao
modelo atual de combate ao crime organizado. A Cracolândia em São Paulo só foi
desmontada porque o traficante Leo do Moinho foi
preso e a Favela do Moinho e o ecossistema do crime no centro foram
desestruturados. E isso só foi possível, depois de décadas de fracasso do poder
público, porque Gakiya e seus colegas do Ministério Público se uniram à Receita
Federal, à PF e às polícias estaduais. Derrite sabe disso.
Segundo o promotor, esse artigo contém uma inconstitucionalidade, porque a PF já tem atribuição para investigações que tratam de crimes interestaduais e transnacionais. “Então, são vários problemas, mas o principal deles, acho que é uma legislação que não promove a integração. A Operação Carbono Oculto, a Operação Fim de Linha e a da Cracolândia não teriam obtido êxito se essa lei já estivesse em vigor.” Há muito Gakiya defende a criação de uma agência nacional antimáfia, o que nem Derrite nem o governo federal fizeram.
A exclusão do Ministério Público não se
restringiria à investigação. Derrite copia o projeto do governo federal ao
estabelecer um prazo de 48 horas para o promotor se manifestar em casos
considerados urgentes pela autoridade policial. Investigações com milhares de
páginas, como são as que envolvem o crime organizado, teriam de ser analisadas
pela promotoria em horas, caso contrário, o juiz poderia decidir sem ouvir o
Ministério Público.
Entre as omissões do projeto estariam o fato
de ele deixar de fora a proposta do governo de agravar as penas para as
organizações criminosas que praticam golpes na internet e, quando trata do
sequestro de bens de bandidos, excluir das chamadas “medidas assecuratórias” a
possibilidade de as vítimas pedirem o sequestro dos bens.
O promotor ressalta que Derrite abraçou
partes importantes da proposta do governo. Ele lista o sequestro cautelar
de bens, o confisco extraordinário dos recursos do crime organizado com a
inversão do ônus da prova, a infiltração por meio de pessoas jurídicas e a
proibição de contratar com o setor público. E também elogia acréscimos, como o
agravamento das condenações, que podem chegar a 65 anos, e também da execução
das penas, aumentando o prazo para um mínimo de 70% para a progressão de regime
carcerário, proibindo o livramento condicional.
O deputado se recusou a chamar as organizações
criminosas de terroristas, alegando que só as estava equiparando aos grupos
terroristas porque seria melhor mexer nessa lei do que alterar a Lei de
Organizações Criminosas. Chamou a lei de Novo Marco Legal de Combate ao Crime
Organizado. Gakiya aponta, porém, que o substitutivo transforma quase todo tipo
de quadrilha ou bando em organização criminosa equiparada ao terrorismo por
meio de 11 condutas que abrangem práticas que quase todos têm, como usar ameaça
em um certo território.
Assim, em vez de concentrar contra o que
realmente importa, como o PCC, o CV, o TCP e as milícias, tudo passaria a ser
punido com 20 a 40 anos de prisão, fazendo com que a polícia disperse recursos
ao ir atrás de pés de chinelo e tratar qualquer bandidinho como perigoso
terrorista, tornando ineficiente a lei. Seria necessário diferenciar melhor as
organizações que se infiltram e ameaçam o Estado daquelas de mera repercussão
local.
A lição aqui é a ensinada pela Itália e
Gakiya a ouviu dos procuradores antimáfia daquele
país: Onde tudo é máfia, nada mais será máfia. Odiar bandido é fácil. Mas é
preciso saber combatê-los com inteligência. O promotor tem todos os motivos do
mundo para odiar o crime. Ele e sua família pagam um preço altíssimo em razão
de seu comprometimento na luta contra as máfias.
A conclusão de Gakiya é um apelo aos
deputados. “Esse substitutivo, um texto com essa abrangência e complexidade,
não pode ser obra de uma cabeça só. Ele precisa ser discutido pela sociedade
civil, pelas instituições, pelos especialistas e submetido a um amplo debate,
porque esse projeto de lei nem sequer foi submetido a debate: não houve
audiências públicas para tratar do PL antifacção do governo”. É preciso
ter coordenação e integração de forças.
O promotor lembra que, em menos de 24 horas, o relator nomeado apresentou um texto, que irá à votação na terça-feira. “Creio que seja necessário a abertura para audiências públicas para melhorar o texto do projeto. Ele classifica praticamente todas as organizações criminosas ou as facções do Brasil como organizações terroristas por equiparação. E aí não adianta falar que não é organização terrorista, que apenas os atos é que são equiparados a terroristas. Os efeitos são exatamente os mesmos em termos legais. A gente precisa tomar cuidado”, conclui. Não basta agravar penas e o regime em que são cumpridas. Boas intenções não bastam.

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