sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Quando a virtude cega, por Pablo Ortellado

O Globo

Passamos a aceitar, quase sem escândalo, que uma instituição cultural possa estigmatizar publicamente uma ativista ambiental pelos feitos de um tio-bisavô

A Bienal de São Paulo anunciou o cancelamento de uma atividade que aconteceria no dia 6 de novembro, no contexto da COP30, reunindo a princesa Esmeralda da Bélgica e o fotógrafo João Farkas. Os dois fariam um debate sobre arte e conservação ambiental. João Farkas é fotógrafo, autor do livro “Amazônia ocupada”. Esmeralda de Réthy é jornalista e ativista ambiental, presidente do Fundo Rei Leopoldo III para Exploração e Conservação da Natureza.

A atividade foi cancelada por pressão do curador-geral da Bienal, o camaronês Bonaventure Soh Bejeng Ndikung. Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, ele alegou que, mesmo reconhecendo o papel da princesa na defesa dos direitos humanos, seu parentesco com o rei Leopoldo II da Bélgica constrangeria 80% dos artistas da Bienal, que vêm da diáspora africana.

O rei Leopoldo II, tio-bisavô de Esmeralda, foi responsável por alguns dos piores abusos coloniais registrados na África. Sob seu domínio, milhões de congoleses foram submetidos a trabalho forçado, tortura, mutilações e execuções, num regime que empregou violência brutal para a extração de borracha e marfim.

Em nota, a Bienal informou que o cancelamento foi motivado pelo “conflito entre o trágico passado colonial belga e os temas abordados pela exposição”. É difícil saber o que preocupa mais: a decisão da Bienal ou o silêncio do meio artístico.

Chegamos a um ponto inquietante. Passamos a aceitar, quase sem escândalo, que uma instituição cultural possa estigmatizar publicamente uma ativista ambiental pelos feitos de um tio-bisavô. Em entrevista à Folha, Esmeralda precisou lembrar o óbvio:

— Não somos responsáveis por nossos ancestrais.

A discussão — legítima — sobre reparações coletivas pelo legado da escravidão acabou levando a uma distorção perigosa. Indivíduos podem ser moralmente responsabilizados pelas ações de bisavós e tataravós. Esse deslocamento, que confunde justiça histórica com vínculos genealógicos pessoais, revela a profundidade da nossa desorientação. Afinal, quem estaria disposto a vasculhar a vida dos antepassados e assumir o estigma moral correspondente?

A degradação do debate tem uma raiz clara: o medo. Vivemos num mundo regido pelas regras morais das guerras culturais. É um mundo em que queremos estar do lado certo e não queremos ser acusados de hesitar ou tergiversar.

Do lado progressista dessa batalha, queremos ser feministas, queremos ser socialmente conscientes e queremos ser antirracistas. Não se trata mais — como na velha política — de se posicionar em relação a determinadas políticas, mas de adotar uma postura de retidão moral que nos faz bons diante dos maus: os machistas, os racistas e os fascistas.

Nesse mundo moral binário, ninguém pode vacilar. A ponderação, a dúvida e a reticência são signos de fraqueza moral. Sinalizam que alguém não é bom ou não é inteiramente bom. Essa dinâmica nos transforma em reféns do radicalismo dos ativistas. Eles sabem que qualquer objeção pode resultar em excomunhão. E, uma vez marcado, o contestador não encontrará quem o defenda. Torna-se tóxico, e qualquer vínculo com ele é lido como desvio moral. É a dinâmica religiosa da caça às bruxas do século XVII.

Episódios absurdos como o da Bienal não podem mais passar em branco. Eles revelam quanto nos acostumamos a caminhar em silêncio diante de arbitrariedades travestidas de virtude. Precisamos recuperar a coragem de contestar o absurdo quando ele aparece, mesmo quando isso significa desafiar os dogmas vigentes no nosso meio social. Está na hora de mostrar que o rei está nu.

 

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