O Globo
Passamos a aceitar, quase sem escândalo, que
uma instituição cultural possa estigmatizar publicamente uma ativista ambiental
pelos feitos de um tio-bisavô
A Bienal de São Paulo anunciou o cancelamento de uma atividade que aconteceria no dia 6 de novembro, no contexto da COP30, reunindo a princesa Esmeralda da Bélgica e o fotógrafo João Farkas. Os dois fariam um debate sobre arte e conservação ambiental. João Farkas é fotógrafo, autor do livro “Amazônia ocupada”. Esmeralda de Réthy é jornalista e ativista ambiental, presidente do Fundo Rei Leopoldo III para Exploração e Conservação da Natureza.
A atividade foi cancelada por pressão do
curador-geral da Bienal, o camaronês Bonaventure Soh Bejeng Ndikung. Segundo
reportagem do jornal Folha de S.Paulo, ele alegou que, mesmo reconhecendo o
papel da princesa na defesa dos direitos humanos, seu parentesco com o rei
Leopoldo II da Bélgica constrangeria 80% dos artistas da Bienal, que vêm da
diáspora africana.
O rei Leopoldo II, tio-bisavô de Esmeralda,
foi responsável por alguns dos piores abusos coloniais registrados na África.
Sob seu domínio, milhões de congoleses foram submetidos a trabalho forçado, tortura,
mutilações e execuções, num regime que empregou violência brutal para a
extração de borracha e marfim.
Em nota, a Bienal informou que o cancelamento
foi motivado pelo “conflito entre o trágico passado colonial belga e os temas
abordados pela exposição”. É difícil saber o que preocupa mais: a decisão da
Bienal ou o silêncio do meio artístico.
Chegamos a um ponto inquietante. Passamos a
aceitar, quase sem escândalo, que uma instituição cultural possa estigmatizar
publicamente uma ativista ambiental pelos feitos de um tio-bisavô. Em
entrevista à Folha, Esmeralda precisou lembrar o óbvio:
— Não somos responsáveis por nossos
ancestrais.
A discussão — legítima — sobre reparações
coletivas pelo legado da escravidão acabou levando a uma distorção perigosa.
Indivíduos podem ser moralmente responsabilizados pelas ações de bisavós e
tataravós. Esse deslocamento, que confunde justiça histórica com vínculos
genealógicos pessoais, revela a profundidade da nossa desorientação. Afinal,
quem estaria disposto a vasculhar a vida dos antepassados e assumir o estigma
moral correspondente?
A degradação do debate tem uma raiz clara: o
medo. Vivemos num mundo regido pelas regras morais das guerras culturais. É um
mundo em que queremos estar do lado certo e não queremos ser acusados de
hesitar ou tergiversar.
Do lado progressista dessa batalha, queremos
ser feministas, queremos ser socialmente conscientes e queremos ser
antirracistas. Não se trata mais — como na velha política — de se posicionar em
relação a determinadas políticas, mas de adotar uma postura de retidão moral
que nos faz bons diante dos maus: os machistas, os racistas e os fascistas.
Nesse mundo moral binário, ninguém pode
vacilar. A ponderação, a dúvida e a reticência são signos de fraqueza moral.
Sinalizam que alguém não é bom ou não é inteiramente bom. Essa dinâmica nos
transforma em reféns do radicalismo dos ativistas. Eles sabem que qualquer objeção
pode resultar em excomunhão. E, uma vez marcado, o contestador não encontrará
quem o defenda. Torna-se tóxico, e qualquer vínculo com ele é lido como desvio
moral. É a dinâmica religiosa da caça às bruxas do século XVII.
Episódios absurdos como o da Bienal não podem
mais passar em branco. Eles revelam quanto nos acostumamos a caminhar em
silêncio diante de arbitrariedades travestidas de virtude. Precisamos recuperar
a coragem de contestar o absurdo quando ele aparece, mesmo quando isso
significa desafiar os dogmas vigentes no nosso meio social. Está na hora de
mostrar que o rei está nu.

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