segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Reality da pré-prisão, por Miguel de Almeida

O Globo

Em pouco tempo, o brasileiro acostumou-se a votar para presidente e a acompanhá-los depois no curioso reality da pré-prisão

Até o Natal, deveremos ter dois ex-presidentes presos. Collor, por corrupção; Bolsonaro, por tentativa de golpe contra a democracia. Desde a redemocratização, já houve outros dois: Lula por corrupção e Michel Temer, sob acusação de maracutaias diversas e cabeludas. A Presidência só perde para o cargo de governador do Rio. Já passaram pela cadeia Moreira Franco, Cabral, Pezão, Garotinho, Rosinha, Witzel, enquanto Castro dá seus tiros para mostrar resistência.

De todos, Bolsonaro é o mais lamuriento. À beira da cela, comporta-se sem heroísmo. Seus parceiros plantam notícias da decadência de seu estado de saúde para angariar empatia. Compungido, o ex-ministro José Dirceu, uma de suas nêmesis, defende que ele cumpra a pena em prisão domiciliar. Este parece ser o tema a dominar as conversas de bar sob a atual primavera sem personalidade — onde Bolsonaro estará nos próximos anos?

Em pouco tempo, o brasileiro acostumou-se a votar para presidente e a acompanhá-los depois no curioso reality da pré-prisão. É uma profissão conturbada. Antes de seguir para Curitiba, Lula discursou bastante em diferentes lugares, em tom de despedida. Logo, inventou o road show do encarceramento. Temer foi interceptado sem esperneio durante um telefonema, e Collor mostrou-se rapidamente adoentado — até apneia! Mestre. O troféu de pior performance ainda está com Anthony Garotinho. O ex-governador, num misto de pastelão e drama, jogou-se no chão aos gritos. Nota para o desempenho: 1. A França subiu a régua do reality carcerário. O ex-presidente Sarkozy não deu um pio antes de chegar a pé até o presídio. Francês tem classe.

Difícil um encontro entre amigos em que não haja palpites técnicos e jurídicos sobre a próxima casa de Bolsonaro. Passamos pela dosimetria, estamos nos embargos (de declaração e infringentes) e às vésperas de seu degredo. Discute-se a idade do condenado, sua saúde, histórico médico (facada, soluços, vômitos...). Tenho dúvidas sobre a sinceridade das preocupações de seus correligionários, e até de seus filhos. A situação sugere jogo de cena para externar empatia e ficar com seus votos, sua herança. A política tem dessas coisas: por poder, entregam a mãe.

No clássico “Guerra e paz”, Tolstói, que foi soldado do Exército czarista, narra a bênção em dar a vida por seu país. Há um desejo manifesto pela morte em batalha, para engrandecer a vida. Por seu currículo de homem público, Bolsonaro não brilharia nas páginas épicas do escritor russo. Seu perfil biográfico encaixa-se melhor no romance “Triste fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto, em que o personagem é acusado e preso por traição ao presidente Floriano Peixoto. Spoiler: como ocorria naqueles tempos, ele termina executado.

Cioso com os seus, um Bolsonaro precavido trata de deixar a família em boa situação. Vai saber como serão os próximos anos. Para a mulher, deseja o emprego de senadora pelo Distrito Federal. Flávio parece encaminhado a buscar a reeleição no Rio, com a plataforma de chamar os americanos até a costa carioca. Carluxo pode ficar com a capitania de Santa Catarina, enquanto Jair Renan, o mais articulado de todos, continuará em Camboriú. A incógnita financeira se dá com Eduardo, certamente impossibilitado de concorrer a novo mandato de deputado por razões alheias à sua vontade. Como futuro ex-parlamentar, pode reivindicar aposentadoria antecipada. Não ficará na chuva!

No balanço familiar de resultados, Bolsonaro demonstra ser um patriarca zeloso, valendo-se do patrimonialismo que lhe contamina o ser. Começou no Exército, foi aposentado, tornou-se parlamentar, depois presidente. Criou família grande, passou por vários casamentos, numa dinâmica bancada pelo contribuinte. Preso, seja na Papuda ou em casa, continuará sem preocupações previdenciárias. É um bom trajeto, mesmo agora manchado pela prisão. Situação confortável se comparada com a maioria dos brasileiros, com aposentadoria rala e incapazes de indicar sinecuras aos filhos ou à mulher.

Há o outro lado da moeda.

Haver dois ex-presidentes presos, à primeira vista, pode deixar o brasileiro envergonhado. É como falar do cunhado extremista. Não deveria. Pelo contrário, mostra uma democracia com viço. Revela um país que olha no espelho e não pisca, que deseja ser outra coisa, e não um esbulho. Os livros de História usarão os episódios como exemplo do momento em que o Brasil finalmente não dobrou a espinha.

 

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