sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Religião e incertezas, por José de Souza Martins*

Valor Econômico

Dados do censo revelam vacilações e incertezas quanto à fé

Os dados preliminares e incompletos do Censo Demográfico de 2022 sobre religiões no Brasil, agora divulgados, na diversidade de grandes grupos de crença (e descrença) trazem indícios de vacilações e incertezas quanto à fé e, provavelmente, ao lugar da fé na vida dos diferentes grupos populacionais.

Em princípio, os dados censitários indicam a persistência do declínio da proporção de católicos no conjunto da população. E indicam a multiplicação geométrica da proporção de evangélicos. Ao mesmo tempo, num país supostamente religioso como o Brasil, não deixa de surpreender o número dos sem religião, sem contar os que não sabem definir sua religião ou que não a declararam. A que se deve agregar indicações de outras fontes sobre os que têm fé mas não perfilham uma confissão determinada: os chamados “desigrejados”.

Há nesse cenário um conjunto de problemas que pedem cautela quanto à impressão superficial de que os católicos declinam em número e os evangélicos crescem.

Em primeiro lugar porque desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e em decorrência da revolução de incertezas dela resultante, os grandes grupos religiosos definidos no censo brasileiro passaram por profundas revisões doutrinárias e identitárias de motivações extrarreligiosas. Aqui e em outras partes. A Igreja Luterana, na própria Alemanha, em face do aparelhamento do nazismo, abriu o cisma da Igreja Confessante, antinazista, que custou a vida de vários de seus membros.

Nos EUA e em decorrência de uma geopolítica imperialista, as religiões passaram a ser manipuladas com objetivos políticos e de poder. A tutela religiosa americana sobre a América Latina, através de igrejas como a Presbiteriana, lá dividida entre a do norte e a do sul. Esta última aparelhada para, através das igrejas locais dessa confissão, erguer uma barreira permanente contra o comunismo e as esquerdas.

Essa interferência foi estendida com o estímulo à disseminação das igrejas pentecostais, e o uso por elas do rádio e da TV, para fazer da partidarização da fé um instrumento de controle político das populações desta parte do terceiro mundo. Em suma, o censo não nos diz nem tem como dizer de quem são as religiões, de Deus mesmo ou da urna e do dízimo.

Num cenário de fragilização política das religiões, fica difícil extrair dessa área do censo indicações sociologicamente relevantes para compreender a função que cumprem as diferentes crenças na sociedade contemporânea, uma sociedade de incertezas crescentes e dúvidas sem respostas.

A extensa proporção de gente sem religião mas que tem fé, dos que tampouco declaram qual é sua crença nem sabem propriamente defini-la, invalida completamente as interpretações evolucionistas sobre tendências das proporções de crescimento de evangélicos e declínio dos católicos.

É de meados dos anos 1950 que os evangélicos se organizaram para definir-se por uma designação de acobertamento de suas profundas e significativas diferenças. Como as que há entre as igrejas oriundas das reformas protestantes e as igrejas pentecostais que, não raro, podem ser criadas por iniciativas individuais e isoladas.

Mascarar essas diferenças com a designação de “evangélicas” foi instrumento de uma guerra estatística contra a Igreja Católica, para extrair os dividendos da manipulação de impressões sobre a realidade social.

Embora o censo não registre o fato, são muitos os evangélicos que mudam de igreja e de confissão à procura de uma religião e de uma igreja que correspondam ao que pede o senso comum de sua religiosidade. O mesmo tem acontecido com os católicos. Os de determinada convicção movimentando-se para outros agrupamentos mais “conservadores” ou mais “progressistas”.

Perguntei certa vez a meus alunos da Universidade de São Paulo qual a religião de cada um para uma troca de ideias sobre o tema. As respostas surpreenderam.

Um dos alunos sempre fora católico, mas se convertera ao catolicismo, a um catolicismo mais verdadeiro do que o de sua identificação anterior. Uma aluna que havia sido católica fora convertida por uma empregada doméstica a uma religião evangélica e, finalmente, orientada pela avó paterna, tornou-se muçulmana, das que vão à peregrinação a Meca. As respostas indicavam, nas várias religiões, a tendência de, com a idade, fortalecimento da religiosidade de cada um.

O que o censo parece confirmar quando indica que o vínculo religioso cresce entre os católicos a partir dos 25 anos de idade, e declina entre os evangélicos a partir dessa mesma idade, como também declina entre os sem religião. O que pode significar fortalecimento da religiosidade de convicção e enfraquecimento da religiosidade de busca e de refúgio.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

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