Valor Econômico
Dados do censo revelam vacilações e
incertezas quanto à fé
Os dados preliminares e incompletos do Censo
Demográfico de 2022 sobre religiões no Brasil, agora divulgados, na diversidade
de grandes grupos de crença (e descrença) trazem indícios de vacilações e
incertezas quanto à fé e, provavelmente, ao lugar da fé na vida dos diferentes
grupos populacionais.
Em princípio, os dados censitários indicam a persistência do declínio da proporção de católicos no conjunto da população. E indicam a multiplicação geométrica da proporção de evangélicos. Ao mesmo tempo, num país supostamente religioso como o Brasil, não deixa de surpreender o número dos sem religião, sem contar os que não sabem definir sua religião ou que não a declararam. A que se deve agregar indicações de outras fontes sobre os que têm fé mas não perfilham uma confissão determinada: os chamados “desigrejados”.
Há nesse cenário um conjunto de problemas que
pedem cautela quanto à impressão superficial de que os católicos declinam em
número e os evangélicos crescem.
Em primeiro lugar porque desde o fim da
Segunda Guerra Mundial, e em decorrência da revolução de incertezas dela
resultante, os grandes grupos religiosos definidos no censo brasileiro passaram
por profundas revisões doutrinárias e identitárias de motivações
extrarreligiosas. Aqui e em outras partes. A Igreja Luterana, na própria
Alemanha, em face do aparelhamento do nazismo, abriu o cisma da Igreja
Confessante, antinazista, que custou a vida de vários de seus membros.
Nos EUA e em decorrência de uma geopolítica
imperialista, as religiões passaram a ser manipuladas com objetivos políticos e
de poder. A tutela religiosa americana sobre a América Latina, através de
igrejas como a Presbiteriana, lá dividida entre a do norte e a do sul. Esta
última aparelhada para, através das igrejas locais dessa confissão, erguer uma
barreira permanente contra o comunismo e as esquerdas.
Essa interferência foi estendida com o
estímulo à disseminação das igrejas pentecostais, e o uso por elas do rádio e
da TV, para fazer da partidarização da fé um instrumento de controle político
das populações desta parte do terceiro mundo. Em suma, o censo não nos diz nem
tem como dizer de quem são as religiões, de Deus mesmo ou da urna e do dízimo.
Num cenário de fragilização política das
religiões, fica difícil extrair dessa área do censo indicações sociologicamente
relevantes para compreender a função que cumprem as diferentes crenças na
sociedade contemporânea, uma sociedade de incertezas crescentes e dúvidas sem
respostas.
A extensa proporção de gente sem religião mas
que tem fé, dos que tampouco declaram qual é sua crença nem sabem propriamente
defini-la, invalida completamente as interpretações evolucionistas sobre
tendências das proporções de crescimento de evangélicos e declínio dos
católicos.
É de meados dos anos 1950 que os evangélicos
se organizaram para definir-se por uma designação de acobertamento de suas
profundas e significativas diferenças. Como as que há entre as igrejas oriundas
das reformas protestantes e as igrejas pentecostais que, não raro, podem ser
criadas por iniciativas individuais e isoladas.
Mascarar essas diferenças com a designação de
“evangélicas” foi instrumento de uma guerra estatística contra a Igreja
Católica, para extrair os dividendos da manipulação de impressões sobre a
realidade social.
Embora o censo não registre o fato, são
muitos os evangélicos que mudam de igreja e de confissão à procura de uma
religião e de uma igreja que correspondam ao que pede o senso comum de sua
religiosidade. O mesmo tem acontecido com os católicos. Os de determinada
convicção movimentando-se para outros agrupamentos mais “conservadores” ou mais
“progressistas”.
Perguntei certa vez a meus alunos da
Universidade de São Paulo qual a religião de cada um para uma troca de ideias sobre
o tema. As respostas surpreenderam.
Um dos alunos sempre fora católico, mas se
convertera ao catolicismo, a um catolicismo mais verdadeiro do que o de sua
identificação anterior. Uma aluna que havia sido católica fora convertida por
uma empregada doméstica a uma religião evangélica e, finalmente, orientada pela
avó paterna, tornou-se muçulmana, das que vão à peregrinação a Meca. As
respostas indicavam, nas várias religiões, a tendência de, com a idade,
fortalecimento da religiosidade de cada um.
O que o censo parece confirmar quando indica
que o vínculo religioso cresce entre os católicos a partir dos 25 anos de
idade, e declina entre os evangélicos a partir dessa mesma idade, como também
declina entre os sem religião. O que pode significar fortalecimento da
religiosidade de convicção e enfraquecimento da religiosidade de busca e de
refúgio.
*José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A
Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

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