Valor Econômico
É preciso ter articulação institucionalizada,
constante, com planejamento conjunto e aprendizado mútuo entre os entes para se
combater o crime organizado
A trajetória do projeto de lei antifacção na
Câmara Federal foi uma estrada pavimentada por erros. A escolha politizada do
nome do relator parece ser o maior deles, mas talvez tenha sido só o primeiro
equívoco. Algo pior ocorreu do ponto de vista da política pública. O deputado
Derrite escolheu inicialmente um modelo que dificultava a cooperação entre
estados e União, quando o crime organizado só pode ser combatido juntando
esforços. Depois ele tentou matizar isso nas seis versões de uma peça
legislativa frágil e apressada. Ao final, a Polícia Federal continuou
enfraquecida e nada de inovador foi criado para ampliar as parcerias
federativas. Seguindo essa linha, as facções só podem agradecer aos deputados.
Os equívocos da Câmara provavelmente vão ser corrigidos pelo Senado. A escolha do senador Alessandro Vieira para relator já demonstra a completa diferença de critérios de seleção. Enquanto o deputado responsável pelo projeto o subordinou à discussão da eleição presidencial de 2026, Vieira tem optado por um caminho diferente, não se filiando automaticamente nem ao governo nem à oposição. Mais do que isso: já como presidente da CPI do Crime Organizado tem priorizado a discussão técnica e a conversa com especialistas - Derrite não ouviu nenhum importante estudioso do assunto. Vieira tende a produzir uma peça legislativa mais consistente, sem respostas rápidas e populistas, gastando o tempo necessário para pensar no país, e não nas torcidas partidárias do jogo eleitoral.
A esperança agora é que a nova etapa
congressual melhore um projeto fundamental, porque o crime organizado
espalhou-se por todo o território brasileiro e inclusive chegou à política
brasileira - talvez esteja aí a razão de vários deputados terem votado num
projeto que enfraquece a Polícia Federal. É verdade que a legislação será
votada novamente pela Câmara, mas se os senadores seguirem a linha de seriedade
de Alessandro Vieira, novamente eles ganharão o jogo da opinião pública e, tal
como na PEC da Blindagem, os deputados terão dificuldades de explicar para a
sociedade a opção pelo projeto do deputado Derrite.
Os senadores poderão realizar um trabalho
ainda mais completo se lembrarem o sentido de sua função: o Senado é a Casa da
Federação. Por conta disso, um de seus papéis mais importantes é fortalecer a
cooperação entre os entes federativos, garantindo assim que o modelo
colaborativo fortalecerá cada estado ou município, com um destaque para o
combate das desigualdades territoriais. Combater o crime organizado exige
coordenação de esforços e uma lógica intergovernamental cooperativa. Qualquer
outra saída, que signifique mera centralização ou atuação isolada dos governos
estaduais, será um fracasso.
A linha de Derrite segue o eterno dia da
marmota, como defini na última coluna (7 de novembro) as últimas décadas da
política da segurança pública e o discurso populista que hegemoniza o debate
político. Ações hollywoodianas de ataque às comunidades são feitas, há um
entusiasmo por intervenções de mera força e pouco planejamento, o crime
organizado continua dominando o pedaço e expandindo suas ações e, completando o
ciclo, o entusiasmo social inicial se reduz. Mas passado um tempo se propõe a
mesma fórmula, e pouco se avança numa governança colaborativa entre entes
federativos e órgãos públicos, solução estrutural para o problema.
O Senado não pode perder a oportunidade de
virar a chave. Até porque logo chegará à Casa o projeto sobre o Sistema Único
de Segurança Pública, hoje na Câmara - o nome melhor seria Sistema Nacional (ou
Integrado) de Segurança Pública, pois é preciso enfatizar que a saída é a
cooperação federativa. Há um grande risco de os deputados continuarem na linha
Derrite, defendendo um modelo fragmentado de atuação, uma visão excessivamente
defensiva e isolacionista dos estados e, ao final, não incentivarem a cooperação
dos governos estaduais com órgãos federais autônomos, como a Receita e a PF.
Senadores devem defender seus estados, mas
são essencialmente defensores da Federação como projeto de nação. Em outras
palavras, não devem ser confederacionistas nem estimular visões secessionistas.
Além de casa da integração federativa, o Senado sempre foi conhecido, desde o
Império, por ser composto por políticos que podem pensar mais no longo prazo do
país - algo facilitado por seus mandatos maiores - e que têm maior experiência
política, um caminho que pode gerar uma instituição moderadora e mais
parcimoniosa em suas decisões.
Seguindo esse raciocínio, os senadores podem
usar o seu lugar institucional para fortalecer uma visão federativa que foi
central para os sucessos do país a partir da redemocratização. Os avanços da
saúde se deveram muito à implantação do Sistema Único da Saúde (SUS), cuja
governança se orienta pela cooperação entre os entes federativos por meio de
fóruns intergovernamentais - as chamadas comissões tripartite e bipartite. Foi
esse desenho que garantiu a expansão da atenção básica a todos os municípios
brasileiros. O SUS evita ainda uma centralização indevida. Desse modo, reduziu
o desastre da política federal bolsonarista durante a pandemia da covid-19 -
morreram cerca de 700 mil pessoas, mas poderia ter sido o dobro disso.
Há igualmente sucessos em outras áreas. O
Sistema Nacional de Recursos Hídricos, com suas articulações federativas
definidas pelos comitês de bacia, tem tido um papel muito importante por conta
dos períodos recentes de escassez hídrica, os quais, infelizmente, podem se
tornar mais frequentes se não reduzirmos os impactos das mudanças climáticas. A
efetividade do Bolsa Família depende muito da qualidade da articulação federal
com os municípios, tanto no que tange ao preenchimento do Cadastro Único como
em relação ao acompanhamento das condicionalidades ou à articulação com os
serviços.
A situação oposta, vinculada à fragilidade
dos laços federativos, também existe e prova, pelo seu fracasso, a importância
da cooperação intergovernamental. O Brasil não conseguirá combater a mudança
climática sem que o governo federal e os estaduais ajudem a construir
capacidades estatais municipais. Na mesma linha, sem parcerias territoriais
será muito difícil combater flagelos como as queimadas e o desmatamento. Ou
ainda, há poucas chances de melhorar o transporte nos grandes centros sem a
colaboração do estado com os municípios dessa região, com apoio financeiro do
governo federal.
Recentemente, o próprio Senado aprovou a lei
que instituiu o Sistema Nacional de Educação. Mesmo sendo uma demanda de
décadas, o chamado SNE ficou por muito tempo em discussão na Câmara e só
conseguiu prosperar quando foi tirada da esfera da politização, especialmente
de deputados mais ligados ao bolsonarismo. Os senadores foram muito mais ágeis
em aprovar a proposta, percebendo o ganho da cooperação federativa para a
política educacional, criando os mesmos espaços de diálogo e aprendizado
intergovernamental que existem em outras áreas.
Três exemplos educacionais mostram o ganho de
se ter um sistema federativo de construção cooperativa. No eixo da educação, a
política da primeira infância tem uma provisão municipal, mas, sem os apoios
federal e estadual, a maioria dos municípios não terá as creches na quantidade
e qualidade necessárias - e, se não investirmos nas crianças nessa tenra idade,
o potencial de desenvolvimento do país será bem menor. A maioria dos estudantes
do fundamental 1 estuda em escolas municipais, mas, quando passam de fase,
predominantemente estudam em escolas estaduais. Como não há uma articulação
federativa nessa transição educacional, o alunado que estava avançando em seu
desempenho deixa de fazê-lo na etapa seguinte. Por fim, o crescimento do ensino
médio profissional e tecnológico é tarefa dos governos estaduais, mas sem
recursos federais e articulação com os governos locais esse processo será muito
desigual pelo país afora.
O exemplo de outras áreas revela à segurança
pública que seu caminho deve passar pela cooperação federativa. Não uma falsa e
politizada aliança, como a feita por governadores do Sul e Sudeste que não
inclui - nem desejava incluir - os estados do Nordeste. Também não pode ser
apenas para apagar incêndio, como as intervenções federais no formato GLO, tão
ilusórias quanto o discurso isolacionista das governadorias da oposição. É
preciso articulação institucionalizada, constante, bem articulada, com
planejamento conjunto e aprendizado mútuo entre os entes para se combater um
fenômeno complexo e nacional como o crime organizado.
O Senado pode mudar o rumo completamente
equivocado do projeto Derrite se, para além da correção dos populismos
presentes nessa proposta, construir uma nova base federativa à segurança
pública brasileira. Uma transformação inovadora como essa valerá para
governantes de qualquer partido e servirá aos cidadãos sem pedir seu título de
eleitor, por anos a fio. A violência que aflige a todos os brasileiros,
particularmente aos mais vulneráveis que são reféns do crime organizado, só
será debelada por um projeto integrado de país, uma ponte intergovernamental
que evite as ilhas insensatas de centralização ou descentralização.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

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