domingo, 28 de dezembro de 2025

Arqueologia de um crime infame. Por Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

Percepção de absurdo passa com o tempo, não vai a juízo, mas deixa nos sentidos a pestilência da infâmia

Está em pauta no STF o julgamento dos mandantes do assassinato de Marielle Franco

Já está em pauta no STF o julgamento dos mandantes do assassinato de Marielle Franco. O ato jurídico visa um número reduzido de indivíduos, mas nele há algo de tão abjeto que o transforma em fato social obscuro, ainda à espera de maior esclarecimento. A barbaridade não se limitou à execução da vereadora por assassinos profissionais, estendeu-se a uma onda de ódio posterior à sua morte.

À época, eram incompreensíveis tanto os motivos do crime quanto a justificativa para que, num palanque público, espectadores e políticos se unissem na quebra de uma placa de rua com o nome da vítima: um ataque simbólico ao cadáver. Um deles elegeu-se deputado e o outro, governador do estado.

A repercussão mundial do crime deixou na sombra, como detalhe secundário, o movimento de ódio sinalizado em declarações e no episódio de violação dos protocolos de luto, habituais em tragédias como a morte de Marielle e seu motorista.

Quem a conheceu guardava na mente não a imagem de uma ativista radical, mas a de uma jovem preocupada com a justiça social e a diversidade humana. Até na lógica absurda de um "escritório do crime", não faziam sentido a execução nem o ódio por parte de quem desconhecia sua atuação na Câmara. Hoje se sabe que o empenho em regularizar títulos de propriedade fundiária para famílias desamparadas despertou a ira de barões da máfia carioca.

Vivia-se o momento sombrio que levaria à eleição de Bolsonaro. Mesmo com atores diferentes, os fenômenos interligavam-se. O espírito do tempo abria uma porta sinistra para o sentimento de impunidade e da presunção de que podiam ser cruzados os limites da moralidade. Bolsonarismo não era mero fato eleitoral, mas uma excrescência fora da história, que trazia consigo um tempo vago, adequado a mitos em que humanos figuram juntamente com monstros. Emergia o protofascismo que tentaria pôr entre parênteses o que os velhos analistas da brasilidade se compraziam em chamar de "civilização nacional".

O assassinato de Marielle não foi, portanto, acontecimento pontual, mas um crime continuado que se arrastou durante os quatro anos de atentados aos fundamentos da República. Por um lado, vetor da intersecção entre crime organizado e aparelhos de Estado: dois dos réus pautados para o julgamento eram autoridades públicas, e um terceiro, o próprio chefe de polícia do Rio de Janeiro, autor também da sordidez de garantir à família enlutada, desde a primeira hora, a solução do crime.

Por outro, revelou uma degradação moral simultânea nas esferas individuais e coletivas. Um rebaixamento que persiste nas cabeças doutrinadas pelo evangelho do pior. Sanidade, hoje, não é só reduzir desigualdade social, é enxergar alguma luz na escuridão.

Mas o pior emerge em voz pública quando um prefeito do baronato petrolífero fluminense defende aos quatro ventos um dos mandantes da monstruosidade. Percepção de absurdo passa com o tempo, não vai a juízo, mas deixa nos sentidos a pestilência da infâmia.

 

 

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