Folha de S. Paulo
Percepção de absurdo passa com o tempo, não
vai a juízo, mas deixa nos sentidos a pestilência da infâmia
Está em pauta no STF o julgamento dos mandantes do assassinato de Marielle Franco
Já está
em pauta no STF o julgamento dos mandantes do assassinato de Marielle Franco. O
ato jurídico visa um número reduzido de indivíduos, mas nele há algo de tão
abjeto que o transforma em fato social obscuro, ainda à espera de maior
esclarecimento. A barbaridade não se limitou à execução da vereadora por
assassinos profissionais, estendeu-se a uma onda de ódio posterior à sua morte.
À época, eram incompreensíveis tanto os motivos do crime quanto a justificativa para que, num palanque público, espectadores e políticos se unissem na quebra de uma placa de rua com o nome da vítima: um ataque simbólico ao cadáver. Um deles elegeu-se deputado e o outro, governador do estado.
A repercussão mundial do crime deixou na
sombra, como detalhe secundário, o movimento de ódio sinalizado em declarações
e no episódio de violação dos protocolos de luto, habituais em tragédias como a morte
de Marielle e seu motorista.
Quem a conheceu guardava na mente não a
imagem de uma ativista radical, mas a de uma jovem preocupada com a justiça
social e a diversidade humana. Até na lógica absurda de um "escritório do
crime", não faziam sentido a execução nem o ódio por parte de quem
desconhecia sua atuação na Câmara. Hoje se sabe que o empenho em regularizar
títulos de propriedade fundiária para famílias desamparadas despertou a ira de
barões da máfia carioca.
Vivia-se o momento sombrio que levaria à eleição
de Bolsonaro. Mesmo com atores diferentes, os fenômenos
interligavam-se. O espírito do tempo abria uma porta sinistra para o sentimento
de impunidade e da presunção de que podiam ser cruzados os limites da
moralidade. Bolsonarismo não era mero fato eleitoral, mas uma excrescência fora
da história, que trazia consigo um tempo vago, adequado a mitos em que humanos
figuram juntamente com monstros. Emergia o protofascismo que tentaria pôr entre
parênteses o que os velhos analistas da brasilidade se compraziam em chamar de
"civilização nacional".
O assassinato de Marielle não foi, portanto,
acontecimento pontual, mas um crime continuado que se arrastou durante os
quatro anos de atentados aos fundamentos da República. Por um lado, vetor da
intersecção entre crime organizado e aparelhos de Estado: dois dos réus
pautados para o julgamento eram autoridades públicas, e um terceiro, o próprio
chefe de polícia do Rio de Janeiro, autor também da sordidez de garantir à
família enlutada, desde a primeira hora, a solução do crime.
Por outro, revelou uma degradação moral
simultânea nas esferas individuais e coletivas. Um rebaixamento que persiste
nas cabeças doutrinadas pelo evangelho do pior. Sanidade, hoje, não é só
reduzir desigualdade social, é enxergar alguma luz na escuridão.
Mas o pior emerge em voz pública quando um
prefeito do baronato petrolífero fluminense defende aos quatro ventos um dos
mandantes da monstruosidade. Percepção de absurdo passa com o tempo, não vai a
juízo, mas deixa nos sentidos a pestilência da infâmia.

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