segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

As Provações da Democracia. Por Ricardo Marinho*

É verdade que o voto obrigatório tem tido um efeito quase milagroso, hora no aumento, hora na manutenção do número de cidadãos votantes. Espera-se que isso reflita um interesse genuíno dos cidadãos em diversos projetos para o bem comum, mas isso não é claro, tampouco fático. Ao contrário, as pessoas estão simplesmente cumprindo o ato de votar, que é positivo em si mesmo, mais como um dever sujeito a punição do que como um exercício entusiástico com um direito participativo que fomenta convicção e esperança, com um espírito mais reflexivo do que movido por interesses e sentimentos puramente passionais, medos, ressentimentos e desconfianças.

Essa não é uma característica exclusiva do nosso país. Parece ser uma tendência generalizada no momento histórico atual, pelo menos no mundo governado pelo sistema democrático.

Em países ditatoriais, autocráticos e/ou fortemente autoritários, o problema nem sequer existe, porque os cidadãos não agem como tais, não são sujeitos políticos, vivem com um poder que não surge da sua vontade, mas da força, e/ou realiza um ato eleitoral como um ritual vazio, onde as propostas alternativas não competem e onde o vencedor é conhecido de antemão.

O sujeito político não existe ali. Existe apenas uma massa humana que, como bem diz Timothy Snyder em Nossa moléstia: lições sobre a liberdade extraídas de um diário hospitalar (Florianópolis, Editora da Universidade Federal de Santa Catarina – EdUFSC, 2022), vive à parte da liderança da pólis, em condições de maior ou menor dificuldade material, em guerra ou paz, mas sem exercer a sua liberdade.

A verdade é que as democracias estão passando por uma crise com diferentes graus de intensidade, em todos os pontos cardeais global.

A transição da sociedade industrial para a sociedade da informação, a revolução das comunicações, a internet e, hoje, o rápido desenvolvimento da inteligência artificial são, em geral, fenômenos ambivalentes que trazem benefícios, mas também provações muito complexas que afetam particularmente as instituições democráticas.

Elas tendem a enfraquecer a representação e seus mecanismos, gerando a ilusão de uma democracia digital, que possibilita a criação de tribos de informação e conexão que se alimentam de suas convicções em detrimento do pluralismo, reduzem o debate político, prestam-se a manipulações baseadas em algoritmos que diminuem os horizontes coletivos e amplificam as percepções e impulsos individuais, gerando humilhações públicas.

Eles potencializam o apagamento das linhas que separam os fatos das notícias falsas, ao mesmo tempo que anulam a política como elemento mediador entre o desejável e o possível, entre as aspirações e os recursos para sua realização, e, por fim, a antipolítica tende a substituir a política.

Tudo isso ocorre em um contexto econômico de crescimento lento, desigualdade crescente, aumento do crime organizado e enfraquecimento institucional, intelectual e moral que banaliza a corrupção e desacredita a política.

Nesse cenário, a simplificação excessiva triunfa, as estruturas democráticas que tentam vincular o crescimento à justiça social desaparecem, e os extremos florescem, porque, como apontou Alexis de Tocqueville (1805-1859), a democracia é seguida não apenas por seus valores, mas por seus resultados.

Isso torna mais compreensível que estejamos novamente tendo um pré-eleitoral das eleições de 2026, no qual dois campos são apresentados como extremos que não são, o que tende a polarizar o eleitorado.

Do lado da oposição fala-se num tom firme sobre segurança (a despeito de dosimetrias escabrosas e outros absurdos) e crescimento, e isso é atraente. Entretanto, se mantém em silêncio sobre as nostalgias autoritárias tais como a de triste memória no 8 de janeiro de 2023 e outras patavinas que não contam com apoio da opinião pública, o que é, no mínimo, perturbador. Aliás, até pré-candidatura como moeda de troca já temos.

Os entusiastas desse plantel ao redor do mundo, com quem esse ideário se dá bem, são bastante autoritários. Bolsonaro, Orbán, Abascal, Le Pen e Milei são apenas algumas figuras abertamente autoritárias e antiliberais.

Entre nós existe uma fervorosa Pandora, já abriram seu receptáculo para declarar que males e destruições inevitáveis ocorrerão no país durante seu potencial desejado governo.

Por sua vez a situação tem feito tudo o que está ao seu alcance para melhorar, mas não demonstra claramente apreço pela moderação e pelo respeito inabalável ao andamento processual da democracia.

Assim, acaba por carregar fardos pesados: a enteléquia política do interesse explícito sobre democracia e suas instituições e outro os difíceis resultados diante da herança pandêmica.

Poder-se-ia pensar que esse estado de coisas fortaleceria o Centro político, mas, com base em experiências passadas e observando o que acontece globalmente com formações desse tipo, é muito provável que ela reforce, sobretudo, a presença da síndrome populista em qualquer posição da geografia política.

A fragilidade dessa forma se materializa no campo democrático, tanto no centro à direita quanto à esquerda. O discurso mais programático e racional permanecerá, por ora, subordinado a esse status quo.

A tarefa de reprojetar o campo democrático será difícil, assim como a tarefa de recuperar a credibilidade no futuro e de nos adaptarmos a estes tempos difíceis sem perdermos o ânimo.

Entretanto, é necessário tentar salvar o que resta de cultura democrática para que as coisas não piorem e, se possível, melhorem.

*Ricardo Marinho é Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e da Teia de Saberes.

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