segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Olhei no espelho e me espantei com o que vi. Por Bruno Carazza

Valor Econômico

Livro Brasil no Espelho, de Felipe Nunes, mostra um país de uma forma que pode levar a conclusões enganosas ao primeiro olhar

Para a maioria das pessoas não é agradável se olhar no espelho. E foi essa sensação de desconforto que ficou após a leitura de Brasil no Espelho, livro candidato a best seller de autoria de Felipe Nunes e que acaba de ser lançado pela Globo Livros.

Baseado numa pesquisa com quase 10 mil pessoas (amostragem muito superior ao comum em pesquisas de opinião e eleitorais) e cobrindo um amplo espectro de questões sobre como o brasileiro se vê e percebe o país ao seu redor, a obra traz insumo valiosíssimo para discutirmos o Brasil.

Sem os filtros das redes sociais, a imagem que se revela ao espelho quase nunca nos deixa contentes, ainda mais sem maquiagem. No caso, o país revelado por Felipe Nunes - que é sócio da Quaest, instituto que conduziu a pesquisa - o Brasil não é apenas conservador, com a família acima de tudo e Deus acima de todos.

Brasileiros e brasileiras típicos são também machistas (mais de 90% acreditam que uma mulher deve ter filhos para se sentir realizada), homofóbicos (66% admitem que um homem pode ser gay, mas não precisa ser afeminado) e punitivistas (77% defendem a pena de morte para quem comete estupro).

Há, porém, alguns sinais de avanço civilizatório: a depender do gênero e da cor, entre 69% e 86% dos entrevistados concorda que o Brasil é um país racista, apenas 26% acreditam na cura gay e somente 28% aprovam a liberação da compra e da posse de armas.

A depender do nível de renda, entre 58% e 77% dos brasileiros acham que sua vida é melhor que a de seus pais - e entre 75% e 88% dos brasileiros querem ser donos do próprio negócio. Porém, com exceção do círculo mais íntimo de familiares, nós brasileiros confiamos muito pouco no próximo, o que é um forte entrave para o desenvolvimento econômico e social.

Esses são apenas alguns dos dados instigantes da pesquisa, que tem material para muitas discussões.

Se há uma crítica a ser feita ao livro, ela se deve a um conflito entre as qualidades do autor em diversas áreas. Além de ter criado a Quaest, que tem se destacado entre os institutos de pesquisa por usar técnicas estatísticas inovadoras, Felipe Nunes é um professor reconhecido internacionalmente por suas pesquisas acadêmicas, um analista político com faro apurado na leitura dos cenários eleitorais e, além de tudo, um comunicador brilhante.

Um pacote de tantas características positivas faz dele um profissional único no mercado. No entanto, o livro é o resultado de uma combinação desproporcional desses atributos. Em muitas passagens, em nome da clareza (méritos do Felipe comunicador) o autor faz generalizações que talvez não passariam no crivo do Felipe acadêmico. Em outros pontos, diferenças percentuais classificadas como significativas em um determinado aspecto são subestimadas em outras dimensões - incoerências praticadas pelo Felipe analista político que certamente incomodariam o Felipe estatístico da Quaest.

Essas contradições não desmerecem o tamanho do projeto que constitui a pesquisa Brasil no Espelho e a análise que é divulgada agora em forma de livro. Gostemos ou não dos dados, e independentemente da leitura que fazemos deles, o livro é um convite à reflexão sobre o nosso país e o nosso povo.

Um medo, porém, que me ocorreu durante a leitura é o uso que poderá ser dado às constatações e estatísticas apresentadas. Dados como o de que 70% dos brasileiros acham que os programas sociais fazem com que as pessoas trabalhem menos ou que 50% são contrários à privatização de empresas estatais, quando tomados de forma isolada e fora de contexto, podem ser usados por políticos à direita ou à esquerda para retrocessos em políticas focalizadas nos mais pobres ou para sabotar iniciativas de modernização do Estado.

Importantes avanços em políticas civilizatórias (como a política de cotas ou as uniões homoafetivas) foram iniciativas adotadas contra o apoio da maioria da população. Nesse sentido, as estatísticas do livro, se lidas como “a vontade do povo”, podem servir de insumo para propostas conservadoras e até retrógradas. Esse risco, contudo, só será minimizado com mais - e não menos - debate a respeito dos dados revelados pela pesquisa.

O que traz um certo alívio, contudo, é que os achados da pesquisa parecem refutar a tese que o próprio Felipe Nunes, em parceria com Thomas Traumann, lançou no seu livro anterior, Biografia do Abismo.

Analisando as características dos noves grupos em que foi dividida a população em Brasil no Espelho, vemos que há pontos de interseção entre conservadores cristãos e militantes de esquerda, entre a Classe D e E e liberais sociais e até mesmo pontos de vista que unem a extrema direita aos progressistas - sem falar na natural aproximação entre empreendedores individuais, empresários e integrantes do agro.

A pesquisa Brasil no Espelho revela que, apesar dos traços marcadamente conservadores, nossa população é extremamente diversa e multifacetada - e isso tende a amenizar os temores de uma polarização afetiva e calcificada na sociedade, que parecia estar nos levando para o abismo.

 

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