O Estado de S. Paulo
Projeto da chamada dosimetria estabelece
regime carcerário mais brando do que o aprovado pelos deputados e senadores na
Lei Antifacção para chefes de milícia e de organizações criminosas e autores de
crimes hediondos e feminicidas
Um dos únicos pontos incontroversos da Lei
Antifacção que o Senado votou na terça-feira e aprovou sem alterar o que fora
enviado pela Câmara dos Deputados foi modificado pelos próprios
deputados durante a votação
do projeto da chamada dosimetria. Para favorecer Jair Bolsonaro e os
oficiais generais condenados pela tentativa de golpe, após a eleição de 2022,
os parlamentares reverteram as modificações da Lei de Execuções Penais,
derrubando de um terço a quase pela metade o tempo de permanência na cadeia dos
chefes do crime organizado no País.
Caso seja aprovado como está pelos senadores e após a PL Antifacção, o projeto da dosimetria, que visava aliviar a cadeia de Bolsonaro, vai dar um presente de Natal para bandidos como Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, e André de Oliveira Macedo, o André do Rap. Isso porque ele reduz o tempo que esse tipo de criminoso deve permanecer na cadeia, em regime fechado, antes de passar para o regime semiaberto, em relação ao que o próprio Senado aprovara no projeto antifacção, noite de terça-feira à noite, horas antes da Câmara votar a dosimetria.
O presente para o crime organizado está ali,
logo no começo do texto votado pelos deputados, inclusive por representantes
como Guilherme Derrite (PP-SP), que semanas antes se orgulhava de ter aprovado,
no PL Antifacção, regras duríssimas para esses bandidos. A dosimetria altera de
novo o artigo 112 da Lei 7.210 de 1984, a Lei de Execuções Penais (LEP),
estabelecendo incisos de I a X. Logo no caput do artigo, ele diz que a
progressão para o semiaberto será com um sexto do cumprimento da pena, para em
seguida, nos incisos, estabelecer as exceções.
É aqui que tudo desanda. O relator Paulinho
da Força (Solidariedade-SP) jurava desejar apenas pacificar o país. Mas lá foi
ele mexer na lei sem comparar com o que a própria Câmara havia aprovado semanas
antes ou o que o Senado votara horas antes. Foi seguido por todos os
bolsonaristas. Logo no primeiro inciso, o projeto da dosimetria estabelece em
25% o tempo de cadeia fechada para se obter o semiaberto para quem comete crime
com grave ameaça ou violência, desde que contra a vida e contra o patrimônio.
Aqui, o projeto já exclui os crimes contra a
fé pública, os contra a administração e a saúde públicas e os sexuais, pois
antes da dosimetria, a Lei de Execuções Penais não fazia essa restrição apenas
para os crimes contra o patrimônio e os contra a vida. Ou seja, para favorecer
Bolsonaro e os generais, os deputados aprovaram ainda uma ajuda aos abusadores
sexuais.
Não parou aí. No inciso quarto, Paulinho
manteve os atuais dois quintos de cumprimento da pena (40%) para que os
condenados por crimes hediondos possam receber o semiaberto. Mas no inciso 5 a
Lei Antifacção criava para o mesmo artigo da Lei de Execuções Penais algo mais
duro: “70% da pena, se o apenado for condenado pela prática de crime hediondo
ou equiparado, se for primário”.
Ou seja, Paulinho, Derrite e companhia
cancelaram as mudanças na LEP feitas pela Lei Antifacção e aliviaram para os
criminosos hediondos? É o que advogados de todos País vão alegar para seus
clientes. No projeto das dosimetria, se o crime hediondo tiver como resultado
morte, a pena deverá ser cumprida 50% em regime fechado, como era na LEP,
enquanto no projeto antifacção se previa 75% (inciso VI).
O presente para os bandidos continua. Para
ajudar Bolsonaro, Derrite, Paulinho e outros foram ainda mais longe. Aprovaram
os incisos VI, VII e VIII no projeto de dosimetria, mais uma vez revertendo as
modificações na LEP feitas pela Lei Antifacção.
Eles dizem: “VI – Se o apenado for condenado
por exercer o comando, individual ou coletivo, de organização criminosa estruturada
para a prática de crime hediondo ou equiparado, deverá ser cumprido ao menos
50% (cinquenta por cento da pena); VII – Se o apenado for condenado pela
prática do crime de constituição de milícia privada, deverá ser cumprido ao
menos 50% (cinquenta por cento) da pena; VIII – Se o apenado for condenado pela
prática de feminicídio e se for primário, vedado o livramento condicional,
deverá ser cumprido ao menos 55% (cinquenta e cinco por cento) da pena“.
Basta comparar agora os três incisos da
dosimetria com o que o Senado e a própria Câmara haviam aprovado na Lei
Antifacção para ver o tamanho do presente para figuras como Marcola, Beira-Mar
e André do Rap e a matadores de mulheres. É que a antifacção estabelece no
inciso VI que criminosos devem permanecer 75% da pena em regime fechado, “se o
apenado for”:
“a) condenado pela prática de crime hediondo
ou equiparado, com resultado morte, se for primário, vedado o livramento
condicional;
b) condenado por exercer o comando,
individual ou coletivo, de organização criminosa estruturada para a prática de
crime hediondo ou equiparado, vedado o livramento condicional;
c) condenado pela prática do crime de
constituição de facção criminosa ou milícia privada;
d) condenado pela prática de feminicídio, se
for primário, vedado o livramento condicional;"
E não é tudo ainda. Na Lei Antifacção, quando
esse criminosos são reincidentes, o prazo é ainda maior para receber o
semiaberto. Dizem os incisos VII e VIII que o bandido deve cumprir 80% da pena,
se for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado, e 85% da
condenação, “se o criminoso for reincidente em crime hediondo ou equiparado com
resultado morte, vedado o livramento condicional”.
Ao reestabelecer o que diz a LEP, o projeto da dosimetria reduz para 60% o tempo de regime fechado para os autores reincidentes de crimes hediondos e para 70% os de crime hediondo com morte. Aí está o resultado de um plenário da Câmara que vota sem ler e não sabe o que aprova? Ou será que sabe muito bem o que está fazendo e tem sabe-se lá qual objetivo?
A coisa toda pode ser ainda muito pior – e muito – se professor de Direito e procurador-regional da República Vladimir Aras estiver correto. Ele alertou que o projeto pode levar a milhares de revisões de pena de bandidos pelo País afora. Aras escreveu no X, antigo Twitter:
“A lei não beneficiará apenas as pessoas
comuns condenadas pelo 8 de janeiro. A norma não se limitará aos delitos ‘deste
Capítulo’, isto é, aos crimes contra o Estado Democrático de Direito dos
artigos 359-L e 359-M. Pelo princípio da analogia ‘in bomam partem’, centenas de milhares de criminosos
condenados em concurso de crimes (quando se somam as penas) serão beneficiados
com as recontagens de suas penas, para menos!”
É difícil encontrar tamanha incoerência e esculhambação em tão pouco tempo. Difícil acreditar que a maioria da Casa se arrependeu do que aprovara semanas antes. O que é certo é que toda vez que Hugo Motta resolve submeter ao plenário uma questão da noite para o dia – como ficou demonstrado nas seis versões do projeto antifacção antes de sua aprovação na Câmara – alguma lambança vem aí. Foi assim na PEC da Blindagem, assim no projeto antifacção e agora na dosimetria. Mais uma vez caberá aos senadores a missão de descascar o abacaxi.

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