O Estado de S. Paulo
Democracias não operam em harmonia perfeita – operam por meio de tensão perpétua
Em qualquer democracia, independentemente do modelo institucional, os Poderes constituídos estão permanentemente engajados em disputas por influência e controle do processo decisório. O equilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário nunca é ótimo, tampouco estático. Ele é, por definição, dinâmico, contingente e frequentemente subótimo. Democracias não operam em harmonia perfeita – operam por meio de tensão perpétua.
A assimetria entre Poderes não é um defeito
do sistema, mas o resultado de arranjos institucionais que se moldam ao longo
do tempo, em resposta a contextos políticos específicos. A história recente das
democracias é ilustrativa. No período pós-Segunda Guerra Mundial, executivos em
todo o mundo expandiram seus poderes de forma sem precedentes, frequentemente em
nome da eficiência, da coordenação econômica e da resposta a crises. Esse
fortalecimento do Executivo não foi neutro: em muitos casos, veio acompanhado
de riscos reais à democracia constitucional. É justamente por isso que a c i ê
nci a polí t i c a contemporânea tem sido cautelosa com narrativas que associam
Legislativos fortes à ingovernabilidade. A ideia de que Parlamentos robustos
inviabilizam a ação governamental é amplamente contestada pela pesquisa
empírica. O que os estudos mostram, de forma consistente, é que checks and
balances eficazes tendem a produzir governos mais responsáveis, previsíveis e
estáveis, ainda que menos céleres e menos eficientes.
É verdade que, em contextos de governo
dividido, nos quais Executivo e maioria legislativa pertencem a campos
políticos distintos, o conflito tende a se intensificar. Disputas sobre
Orçamento, nomeações, investigações ou prioridades legislativas podem gerar
atritos e, em alguns momentos, paralisia decisória.
Mas confundir esse atrito com falência institucional
é um erro analítico grave. Fricção não é disfunção; é parte constitutiva do
desenho democrático.
SALVAGUARDA. Na tradição democrática moderna, Legislativos fortes são entendidos como salvaguardas essenciais contra abusos do Executivo, corrupção e concentração excessiva de poder. No Brasil, não faltam exemplos. Foi um Congresso atuante que impôs limites tanto ao governo Lula, durante a CPI do Mensalão, quanto ao governo Bolsonaro, com a CPI da Covid. Em ambos os casos, o Legislativo funcionou como instância de contenção institucional – não como agente de desordem.
Não há evidências de uma crise de governabilidade no País, tampouco de uma ruptura entre os Poderes. O que existe são disputas próprias de uma democracia competitiva, que se ajusta continuamente. A análise responsável exige distanciamento: menos atenção aos solavancos conjunturais e mais foco na linha de tendência institucional.
Paradoxalmente, foi o chamado Centrão – com
seus partidos programaticamente amorfos e pragmaticamente orientados – que
atuou como freio a iniciativas iliberais do governo Bolsonaro. Ao condicionar
apoio político à preservação de regras do jogo, esse bloco impediu avanços que
poderiam ter fragilizado a democracia brasileira. Isso pode desagradar a
narrativas normativas, mas é um dado empírico incontornável.
A literatura também é clara ao mostrar que a
governabilidade não depende da distância ideológica entre o presidente e a
mediana do Congresso, mas da distância entre a coalizão presidencial e o
Parlamento como um todo. Quando há coordenação política e gestão eficiente da
coalizão, o sistema funciona. Quando não há, o problema é menos institucional e
mais estratégico.
CONTROLE. A fragilidade dos governos recentes
não decorre de mudanças estruturais no presidencialismo multipartidário, mas
das escolhas do próprio chefe do Executivo na condução de sua base política. É
verdade que o Executivo perdeu discricionariedade na execução de algumas
emendas parlamentares. Ainda assim, mantém controle sobre o timing da execução
e dispõe de um vasto arsenal de instrumentos – cargos públicos, políticas,
prioridades orçamentárias, recursos de bancos públicos etc. – para negociar
apoio.
Sustentar que o Executivo brasileiro foi esvaziado a ponto de se tornar refém do Congresso é, portanto, falacioso. O que há não é baderna institucional, mas uma democracia funcionando sob tensão – como sempre funcionou e sempre funcionará.

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