domingo, 21 de dezembro de 2025

Medicina: o futuro já chegou? Por José Gomes Temporão

O Estado de S. Paulo

A questão decisiva é se será também mais humano, equitativo e efetivo. Isso dependerá das escolhas que fizermos hoje

Vivemos um ponto de inflexão na história da medicina. Em poucas décadas, a convergência entre biotecnologia, inteligência artificial (IA), novos materiais, robótica, entre outras tecnologias, deslocou o centro de gravidade do cuidado de um ato isolado e prescritivo para um ambiente de cuidado tecnológico contínuo, preditivo e conectado. Novas tecnologias, como biópsia líquida e imagem molecular, possibilitam diagnósticos mais precisos e permitem que testes avançados sejam realizados fora de grandes centros hospitalares, chegando a Unidades de Saúde da Família e comunidades remotas.

Paralelamente, inovações terapêuticas como edição genômica e imunoterapia personalizada, hoje concentradas em centros especializados, têm potencial futuro para serem integradas progressivamente a contextos descentralizados, ampliando significativamente o acesso.

Entretanto, as mesmas forças que aceleram diagnósticos, personalizam terapias e ampliam o acesso, também podem intensificar desigualdades, burocratizar o encontro clínico e fragilizar os vínculos sociais. O desafio, portanto, é decidir que medicina queremos produzir com essas novas tecnologias e sob quais regras, critérios, competências e valores.

Ferramentas de IA já conseguem resumir prontuários, transcrever consultas e sugerir hipóteses diagnósticas; a biotecnologia avança com plataformas vacinais, terapias celulares e edição gênica; sensores e implantes inteligentes transformam dados fisiológicos em sinais para tomada de decisão; a cirurgia robótica e a reabilitação assistida redefinem precisão e recuperação.

Mas nenhum algoritmo substitui o juízo clínico, a responsabilidade profissional ou a relação terapêutica. Como nos lembra Eric Topol, a promessa dessa nova medicina seria justamente a de usar a tecnologia para devolver tempo e atenção ao paciente, liberando o médico do fardo administrativo para que ofereça suporte empático e humanizado, sem terceirizar a tomada de decisão.

Mas para que a transformação tecnológica resulte numa saúde melhor e mais equânime, três condições são essenciais. Primeiro, dispor de uma formação profissional orientada a dados, ciência e humanidade, capaz de incorporar novas competências sem perder o núcleo da clínica, envolvendo a formação contínua de profissionais de saúde, pacientes e cuidadores e abrangendo o uso de dados, digitalização e novas tecnologias, preferencialmente de âmbito nacional. Segundo, dispormos de uma governança ética, regulatória e organizacional que assegure qualidade, transparência, segurança para profissionais de saúde e pacientes e equidade ao acesso aos cuidados de saúde. E, terceiro, os sistemas de saúde devem colocar a tecnologia a serviço da coordenação do cuidado, da ampliação do acesso, do cuidado humanizado e da participação do paciente em todo o processo.

Nenhuma tecnologia substitui a comunicação clínica avançada, baseada na ética e na reflexão sobre o encontro singular entre paciente e médico. Os chamados grupos Balint – espaços protegidos em que as equipes de saúde discutem não apenas um caso singular, mas o médico no contexto e com todas as implicações daquele caso, são instrumentos potentes para cuidar do cuidador e sustentar a qualidade relacional em ambientes cada vez mais mediados por telas.

Nada substitui a orientação ética que funda a profissão. A técnica é condição necessária, mas não suficiente. Num mundo de interfaces e modelos estatísticos, o que mantém a medicina reconhecível como medicina é a responsabilidade por alguém concreto, o cuidado, a escuta, a prudência e a decisão compartilhada. Lembrando Hipócrates, reitero que “é mais importante conhecer o doente que tem a doença, do que a doença que o doente tem”.

Se Eric Topol nos convida a encarar a tecnologia como meio de aprofundar a humanidade da prática, e não de esvaziá-la, Michael Balint nos recorda que o médico – com sua presença, seu modo de olhar e falar, sua capacidade de suportar a incerteza – é parte constitutiva do tratamento, e, décadas atrás, já nos havia advertido que, na relação médico paciente, a “droga” mais receitada é o próprio terapeuta. Se a incorporação tecnológica não conservar essa centralidade, estaremos apenas sofisticando meios para repetir velhos erros.

O futuro da medicina será tecnológico por definição. A questão decisiva é se será também mais humano, equitativo e efetivo. Isso dependerá das escolhas que fizermos hoje: de como educamos nossos profissionais, de como regulamos, avaliamos e garantimos as inovações, de como organizamos o cuidado e de como protegemos os vínculos que sustentam o processo de cuidar e curar.

A tecnologia pode ser atalho para a pressa e o deslumbramento – ou a alavanca para um cuidado mais competente, mais justo e mais próximo. O caminho que escolhermos dirá muito sobre a sociedade que desejamos construir.

 

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