O Estado de S. Paulo
A União Europeia consegue operar em um cenário de rivalidade entre grandes potências?
Depois de séculos exercendo um papel central na ordem internacional e projetando poder para além de suas fronteiras, a Europa encontra-se na defensiva, tentando administrar e conter o peso de China, EUA e Rússia dentro e ao redor de seu território. Esse fenômeno, apelidado de “corrida pela Europa” por analistas como Gideon Rachman, no Financial Times, reflete o novo cenário em que atores de fora disputam influência no continente. A dificuldade europeia de responder à altura à invasão russa à Ucrânia, à concorrência tecnológica chinesa e às tarifas dos EUA são reflexo de sua atual fragilidade e divisão interna.
As negociações intermináveis sobre o acordo
UE-Mercosul são mais uma das consequências dessa desarticulação. Enquanto a
Alemanha lidera o grupo a favor da ratificação, a França se mobiliza contra. O
resultado: há décadas, a Europa vem perdendo espaço político e econômico na
América do Sul, onde EUA e China são hoje os protagonistas. O mesmo se vê na
África e no Oriente Médio.
A imagem da Europa o Sul Global se desgastou
ao longo dos anos. Muitos países emergentes veem o bloco como um ator em
declínio e o acusam de hipocrisia por exigir solidariedade na Ucrânia enquanto
não se mobiliza com a mesma intensidade em outros conflitos marcados por graves
violações de direitos humanos, como Gaza.
CHINA E RÚSSIA. Os desafios vão muito além de
perder influência no mundo: sua dependência do comércio e dos insumos chineses
é uma vulnerabilidade estratégica construída pelas próprias elites europeias.
Como observa o analista alemão Thorsten Benner, arrogância, interesses de lucro
de curto prazo e o “não entendimento da estratégia de longo prazo da China nos
colocaram nessa situação dramática”.
O avanço chinês em setores de alta tecnologia e em manufaturas de alto valor agregado torna obsoleta a crença de que a Europa sempre encontraria nichos de excelência para compensar a concorrência asiática. Robin Harding, também no FT, resume a situação ao argumentar que a China caminha para um modelo em que quer vender de tudo para o resto do mundo, mas comprar o mínimo possível. Nessa lógica, “torna-se cada vez mais difícil imaginar como a Europa poderá evitar um protecionismo em larga escala se quiser preservar qualquer setor industrial.”
Em paralelo, a Rússia promove campanhas de
desinformação para influenciar a opinião pública europeia e aposta que divisões
internas farão a UE vacilar no apoio à Ucrânia.
Os EUA, em teoria aliados, também intervém
abertamente no cenário político europeu, seja apoiando partidos e candidatos de
direita na Alemanha, Polônia e Romênia, seja pressionando governos europeus a
adotarem padrões tecnológicos ou de segurança americanos.
A UE consegue operar em um cenário de
rivalidade aberta entre grandes potências? Ao que tudo indica, em um ambiente
dominado por líderes nacionalistas como Trump, Xi e Putin, a tradicional aposta
europeia em soft power será insuficiente para firmar o continente como polo
autônomo de poder.
DIVERGÊNCIAS. Além disso, como o próprio
Rachman lembra, a estrutura institucional da UE dificulta respostas rápidas:
crises que exigem decisões em horas esbarram em um sistema que precisa
conciliar 27 governos. Divergências internas abrem ainda mais espaço para
interferências externas: Pequim seduz governos com investimentos, Moscou
encoraja líderes eurocéticos, Washington negocia diretamente com capitais
europeias quando isso ajuda a contornar posições comuns do bloco.
Para evitar que a Europa se torne periférica no jogo das potências, seria necessário reforçar a autonomia estratégica do continente: investimentos mais robustos em defesa, em tecnologia de ponta e na transição energética; redução da dependência em relação à China e aos EUA; simplificação dos processos de decisão política; e desburocratização para impulsionar o crescimento. Em tempos normais, isso já seria um enorme desafio. Com o avanço de partidos eurocéticos nas duas maiores economias do bloco – Alemanha e França – talvez isso seja politicamente impossível. Cabe aos europeus decidir se serão autores do próprio destino ou espectadores das ambições alheias.

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