segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

Favela precisa se beneficiar de sua potência criativa. Por Preto Zezé

O Globo

O mercado criativo brasileiro foi organizado para capturar valor nos centros formais da economia

Quando se fala em economia criativa no Brasil, ainda é comum tratar cultura como adereço, inovação como promessa e favela como cenário. Os dados mais recentes desmontam essa narrativa. Em 2023, a economia criativa movimentou cerca de R$ 393 bilhões, algo em torno de 3,5% do PIB nacional, empregando mais de 7,7 milhões. Cresceu acima da média da economia e já supera setores considerados tradicionais. Não se trata de vocação futura, mas de setor produtivo consolidado.

O que raramente entra na conta é de onde vem boa parte da energia que sustenta esse mercado. Linguagem, estética, música, moda, audiovisual, comunicação digital e comportamento de consumo nascem, em grande medida, nas favelas e periferias brasileiras. A favela não é um apêndice da economia criativa. É um de seus principais motores.

Ainda assim, persiste um descompasso profundo entre produção simbólica e retorno econômico. A favela cria valor, mas não se apropria dele. Produz tendências que viram marcas, campanhas, produtos e plataformas, mas permanece à margem dos contratos, do crédito, da propriedade intelectual e das estruturas de longo prazo. O resultado é um paradoxo conhecido: potência criativa combinada com fragilidade financeira.

Esse desequilíbrio não decorre da falta de talento ou de iniciativa. É estrutural. O mercado criativo brasileiro foi organizado para capturar valor nos centros formais da economia, enquanto os territórios populares seguem operando na informalidade, na intermitência e na lógica do projeto pontual. Cultura vira evento, não ativo. Criatividade vira vitrine, não patrimônio.

Enquanto isso, o discurso da inovação permanece concentrado em hubs desconectados da realidade social do país, em startups que falam inglês, mas não conhecem o território, e em políticas públicas que ainda tratam cultura como gasto residual, não como estratégia de desenvolvimento econômico.

Sustentabilidade financeira na economia criativa não passa por romantizar o empreendedorismo individual da favela nem por multiplicar oficinas motivacionais. Passa por organizar o setor: transformar criação em modelo de negócio, projeto em contrato, território em plataforma econômica. Passa por reconhecer que cultura gera renda, emprego, arrecadação e inovação quando há estrutura, governança e visão de longo prazo.

Os dados estão disponíveis. Firjan, Observatório Itaú Cultural, IBGE e outras instituições já demonstraram que a economia criativa é estratégica para o país. O que falta não é evidência técnica, mas decisão política e econômica. Falta admitir que não há economia criativa forte sem enfrentar a desigualdade na distribuição do valor que ela própria produz.

Reconhecer a favela como espaço criativo não basta. É preciso reconhecê-la como espaço econômico. Isso significa acesso a crédito adequado, contratos justos, proteção jurídica, participação na cadeia de valor e capacidade de escalar negócios sem perder identidade nem autonomia.

A favela não reivindica lugar simbólico. Reivindica lugar econômico. Não busca ser tendência passageira, mas infraestrutura permanente de produção cultural e inovação social. O futuro da economia criativa brasileira depende menos de novos slogans e mais da coragem de reorganizar quem cria, quem ganha e quem decide.

A favela já é criativa. O desafio é fazer com que ela também seja financeiramente sustentável dentro do próprio país que consome, celebra e lucra com aquilo que ela produz.

 

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