O Globo
O mercado criativo brasileiro foi organizado
para capturar valor nos centros formais da economia
Quando se fala em economia criativa no Brasil, ainda é comum tratar cultura como adereço, inovação como promessa e favela como cenário. Os dados mais recentes desmontam essa narrativa. Em 2023, a economia criativa movimentou cerca de R$ 393 bilhões, algo em torno de 3,5% do PIB nacional, empregando mais de 7,7 milhões. Cresceu acima da média da economia e já supera setores considerados tradicionais. Não se trata de vocação futura, mas de setor produtivo consolidado.
O que raramente entra na conta é de onde vem
boa parte da energia que sustenta esse mercado. Linguagem, estética, música,
moda, audiovisual, comunicação digital e comportamento de consumo nascem, em
grande medida, nas favelas e periferias brasileiras. A favela não é um apêndice
da economia criativa. É um de seus principais motores.
Ainda assim, persiste um descompasso profundo
entre produção simbólica e retorno econômico. A favela cria valor, mas não se
apropria dele. Produz tendências que viram marcas, campanhas, produtos e
plataformas, mas permanece à margem dos contratos, do crédito, da propriedade
intelectual e das estruturas de longo prazo. O resultado é um paradoxo
conhecido: potência criativa combinada com fragilidade financeira.
Esse desequilíbrio não decorre da falta de
talento ou de iniciativa. É estrutural. O mercado criativo brasileiro foi
organizado para capturar valor nos centros formais da economia, enquanto os
territórios populares seguem operando na informalidade, na intermitência e na
lógica do projeto pontual. Cultura vira evento, não ativo. Criatividade vira
vitrine, não patrimônio.
Enquanto isso, o discurso da inovação
permanece concentrado em hubs desconectados da realidade social do país, em
startups que falam inglês, mas não conhecem o território, e em políticas
públicas que ainda tratam cultura como gasto residual, não como estratégia de
desenvolvimento econômico.
Sustentabilidade financeira na economia
criativa não passa por romantizar o empreendedorismo individual da favela nem
por multiplicar oficinas motivacionais. Passa por organizar o setor:
transformar criação em modelo de negócio, projeto em contrato, território em
plataforma econômica. Passa por reconhecer que cultura gera renda, emprego,
arrecadação e inovação quando há estrutura, governança e visão de longo prazo.
Os dados estão disponíveis. Firjan,
Observatório Itaú Cultural, IBGE e outras instituições já demonstraram que a
economia criativa é estratégica para o país. O que falta não é evidência
técnica, mas decisão política e econômica. Falta admitir que não há economia criativa
forte sem enfrentar a desigualdade na distribuição do valor que ela própria
produz.
Reconhecer a favela como espaço criativo não
basta. É preciso reconhecê-la como espaço econômico. Isso significa acesso a
crédito adequado, contratos justos, proteção jurídica, participação na cadeia
de valor e capacidade de escalar negócios sem perder identidade nem autonomia.
A favela não reivindica lugar simbólico.
Reivindica lugar econômico. Não busca ser tendência passageira, mas
infraestrutura permanente de produção cultural e inovação social. O futuro da
economia criativa brasileira depende menos de novos slogans e mais da coragem
de reorganizar quem cria, quem ganha e quem decide.
A favela já é criativa. O desafio é fazer com
que ela também seja financeiramente sustentável dentro do próprio país que
consome, celebra e lucra com aquilo que ela produz.

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