O Estado de S. Paulo
O problema que se coloca é o de como o bolsonarismo pode sobreviver sem um líder
A imagem do ex-presidente Bolsonaro, em vídeo gravado sobre a violação da tornozeleira eletrônica, é devastadora, fazendo desmoronar sua figura pública. No exercício da Presidência, transmitia a mensagem da masculinidade em motociatas que atravessavam o País, apresentando-se, em casaco de couro, como um mito imbatível, capaz de superar toda e qualquer adversidade. Começou a fraquejar quando a tentativa de golpe se mostrou inviável, dada a intervenção do Alto Comando do Exército, recluindo-se cada vez mais. Após ter se tornado réu, recolheu-se à prisão domiciliar, culminando nessa cena patética de um homem que confessa, abatido, candidamente, para uma agente penitenciária, que violou a tornozeleira eletrônica com um ferro de solda. Ela, inclusive, se dirige a ele como “seu Jair”, sem nenhuma consideração para com sua prerrogativa presidencial.
Mostra essa cena um homem alquebrado, que em
nada corresponde à imagem que antanho transmitia. Enseja, isso sim, compaixão.
Do ponto de vista estritamente legal, o ministro Alexandre de Moraes tem razão
em decretar a sua prisão preventiva, porém poderia ter levado em conta
circunstâncias atenuantes, como um eventual surto produzido pela mistura
indevida de suas medicações. Seu comportamento não mostra alguém que estivesse
arquitetando uma fuga graças a uma vigília preparada por seu filho, 19 horas
depois! Não faz sentido. Se há crítica à vigília religiosa, tanto maior deveria
ter sido a precaução com o presidente Lula, que teve diariamente vigílias
ideológicas, sem nenhuma proibição. O bom senso recomendaria que Bolsonaro
permanecesse por suas condições psicológicas e de saúde em prisão domiciliar.
No entanto, desde uma perspectiva política, a
questão é outra. Tendo ruído a sua imagem e considerando as condições de sua
prisão, incomunicável, não está nem estará em posição de exercer nenhuma
liderança. Diria mesmo que não tem nem perfil para isso. Ele se comporta como
uma pessoa normal, não como um líder político propriamente dito. Façamos uma
comparação histórica, desprovida de juízo moral.
Hitler cresceu na prisão e soube enfrentá-la. Mussolini, em sua ascensão ao poder, superou adversidades. Perto de nós, Lula fez face à prisão com dignidade, com apoio de seus seguidores, cresceu nas dependências da Polícia Federal e virou novamente presidente da República. Bolsonaro, por sua vez, contrasta com essas figuras. Tem uma aversão, aliás justificada, pela prisão, apesar de eventuais ganhos políticos de que poderia usufruir.
O problema que se coloca, então, é o de como
o bolsonarismo pode sobreviver sem um líder. O deputado Eduardo Bolsonaro, de
seu autoexílio, também patético, declarou, a propósito da escolha de seu irmão
Carlos Bolsonaro como candidato a senador por
Santa Catarina, que o bolsonarismo é um
“movimento político”. O caso em pauta significa uma intervenção direta nesse
Estado, contrariando o governador e lançando impregnações contra duas
deputadas, uma federal, Carol de Toni, e outra estadual, Ana Campagnolo. Duas
bolsonaristas de estrita observância, que ousaram dizer não a uma tal
imposição. Ainda segundo o deputado, deveriam simplesmente obedecer ao
“movimento”, dirigido doravante pelo clã familiar, embora não se saiba ao certo
quem dirige o clã na atual situação.
Por que, porém, o uso da palavra “movimento”?
Significa uma estrutura hierárquica que não admite contestações, sendo que
ordens devem ser simplesmente cumpridas. A relação é vertical. No caso de um
partido político, diferentemente, há sempre níveis de horizontalidade, com
discussões internas, diferentes interesses políticos, líderes divergindo entre
si, sem que haja uma estrutura monolítica. Não é o caso de “movimentos”, a
exemplo do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, que não admitiam nenhum
tipo de crítica interna. Tal tipo de estrutura encontra-se da mesma forma em
organizações mafiosas, nas quais a ordem do “padrinho” é incondicionalmente
seguida, sob risco de violência física. Basta rever a trilogia Poderoso Chefão.
Acontece, contudo, que a pretensão do
deputado Eduardo Bolsonaro é nada mais do que uma pretensão com o intuito de
enquadrar o bolsonarismo órfão. Seu outro irmão, o senador Flávio Bolsonaro,
dias depois, referendou a sua fala ao declarar que, doravante, seria ele o
porta-voz do pai, encarregado de transmitir suas orientações aos diferentes
setores estaduais do “movimento”, que deveriam evidentemente ser obedecidas.
Ora, imediatamente depois, seu irmão o contestou dizendo que ele não seria o
porta-voz exclusivo, visto que ele assumiria igualmente essa função. O clã
expõe a disputa interna, rompendo com a ideia mesma de “movimento”, a supor que
seus membros estejam dispostos a segui-los, conforme ordens desprovidas de
liderança. Isso para não dizer de aliados que nenhum compromisso têm com esse
projeto político.
Qual pode bem ser o futuro do bolsonarismo sem líder, submisso às incertezas de um clã que exige apenas obediência incondicional?

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