O Globo
Opinião pública americana é avessa a uma
guerra na América do Sul, especialmente a própria base ideológica trumpista
‘Fale suavemente e carregue um grande
porrete.’ Trump recupera o aforismo empregado por Theodore Roosevelt na década
inicial do século XX, mas com um desvio. A parte do “grande porrete”
encontra-se à vista de todos, no sul do mar do Caribe, às portas da Venezuela, sob a
forma do porta-aviões USS Gerald Ford e seu grupo de combate naval. O “fale
suavemente” aplica-se exclusivamente a outros lugares: nas relações de Trump
com Vladimir
Putin e Xi Jinping.
A operação de mudança de regime na Venezuela desenrola-se à sombra de um álibi pelicular: a “guerra ao narcoterrorismo”. Destinada a conferir um verniz de legalidade a ações letais contra pretensos narcotraficantes, a fórmula se aplica à ditadura de Maduro, designado pela Casa Branca como chefe de um certo Cartel de los Soles.
Toda a narrativa dos Estados Unidos é
fraudulenta, mesmo no plano factual. Narcotraficantes são criminosos comuns,
não combatentes inimigos. Os ataques letais a embarcações acusadas de
transportar drogas representam violações escandalosas das leis internacionais.
O Cartel de los Soles não existe. A denominação é usada, na Venezuela, para
identificar o fluido envolvimento da cúpula das Forças Armadas com diferentes
organizações do tráfico de drogas. Maduro comanda um regime criminoso, mas não
chefia um cartel.
A ditadura “cívico-militar-policial”, na
definição do próprio Maduro, tem coesão e singular estabilidade, mesmo depois
de perder o parco apoio popular que lhe restava. Sua argamassa assemelha-se à
das máfias. A fidelidade do aparato militar, das forças policiais e das
milícias civis repousa sobre um sistema compartilhado de pilhagem das rendas
estatais derivadas da exploração de petróleo e ouro e do controle do comércio
externo. O regime cleptocrático colabora, ainda, com narcotraficantes nacionais
e colombianos.
Trump não entendeu a Venezuela. Imaginou que
a combinação do poderoso dispositivo bélico deslocado para o Caribe com ofertas
explícitas de anistia ao ditador e a seu círculo mais próximo, além de contatos
subterrâneos da CIA com altos oficiais militares, provocaria o resultado
almejado. Maduro, contudo, permanece em seu posto. Não rumou por conta própria
para Havana ou Moscou, nem foi deposto por um golpe palaciano. A resistência,
expressa tanto em comícios desafiadores quanto na radicalização da repressão
interna, configura um dilema para os Estados Unidos.
Rússia e China não formam obstáculos. As duas
potências obteriam benefícios geopolíticos com a eventual derrubada de Maduro
por uma ofensiva total dos Estados Unidos. Putin e Xi interpretariam o evento
como sedimentação de uma política mundial de esferas de influência: a troca da
Venezuela pela Ucrânia e, mais tarde, por Taiwan. As pedras no caminho de Trump
são a opinião pública americana, avessa a uma guerra na América do Sul, e
especialmente a própria base ideológica trumpista.
O Maga, movimento trumpista, cuja voz mais
nítida é o vice, J.D. Vance, orienta-se por um ultranacionalismo isolacionista
que rejeita genericamente envolvimentos militares no exterior. O Big Stick na
Venezuela foi idealizado fora da esfera do Maga, pelo secretário de Estado
Marco Rubio, republicano oriundo da comunidade cubano-americana de Miami cujo
sonho dourado é a deposição dos regimes chavista e castrista. Trump comprou a
ideia na expectativa de obter um triunfo consagrador de política externa a
preço promocional.
O preço já inflacionou. Inexiste garantia de
que ataques pontuais contra alvos em terra precipitem a mudança de regime. A
eventual sobrevivência de Maduro instalaria a lógica típica das escaladas
militares. No fim do percurso, excluída uma impensável ocupação americana, a
Venezuela poderia tornar-se palco de aventuras de grupos armados diversos e um
duradouro santuário de cartéis do narcotráfico.
Nesse ponto da curva, porém, um recuo colaria
à testa de Trump a imagem do célebre “tigre de papel”, expressão escolhida por
Mao Tsé-Tung para, em 1956, caracterizar o “imperialismo americano”. O
presidente dos Estados Unidos descobre aos poucos, dolorosamente, que o Big
Stick não vive duas vezes.

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