segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

‘O grande porrete’ não vive duas vezes, por Demétrio Magnoli

O Globo

Opinião pública americana é avessa a uma guerra na América do Sul, especialmente a própria base ideológica trumpista

‘Fale suavemente e carregue um grande porrete.’ Trump recupera o aforismo empregado por Theodore Roosevelt na década inicial do século XX, mas com um desvio. A parte do “grande porrete” encontra-se à vista de todos, no sul do mar do Caribe, às portas da Venezuela, sob a forma do porta-aviões USS Gerald Ford e seu grupo de combate naval. O “fale suavemente” aplica-se exclusivamente a outros lugares: nas relações de Trump com Vladimir Putin e Xi Jinping.

A operação de mudança de regime na Venezuela desenrola-se à sombra de um álibi pelicular: a “guerra ao narcoterrorismo”. Destinada a conferir um verniz de legalidade a ações letais contra pretensos narcotraficantes, a fórmula se aplica à ditadura de Maduro, designado pela Casa Branca como chefe de um certo Cartel de los Soles.

Toda a narrativa dos Estados Unidos é fraudulenta, mesmo no plano factual. Narcotraficantes são criminosos comuns, não combatentes inimigos. Os ataques letais a embarcações acusadas de transportar drogas representam violações escandalosas das leis internacionais. O Cartel de los Soles não existe. A denominação é usada, na Venezuela, para identificar o fluido envolvimento da cúpula das Forças Armadas com diferentes organizações do tráfico de drogas. Maduro comanda um regime criminoso, mas não chefia um cartel.

A ditadura “cívico-militar-policial”, na definição do próprio Maduro, tem coesão e singular estabilidade, mesmo depois de perder o parco apoio popular que lhe restava. Sua argamassa assemelha-se à das máfias. A fidelidade do aparato militar, das forças policiais e das milícias civis repousa sobre um sistema compartilhado de pilhagem das rendas estatais derivadas da exploração de petróleo e ouro e do controle do comércio externo. O regime cleptocrático colabora, ainda, com narcotraficantes nacionais e colombianos.

Trump não entendeu a Venezuela. Imaginou que a combinação do poderoso dispositivo bélico deslocado para o Caribe com ofertas explícitas de anistia ao ditador e a seu círculo mais próximo, além de contatos subterrâneos da CIA com altos oficiais militares, provocaria o resultado almejado. Maduro, contudo, permanece em seu posto. Não rumou por conta própria para Havana ou Moscou, nem foi deposto por um golpe palaciano. A resistência, expressa tanto em comícios desafiadores quanto na radicalização da repressão interna, configura um dilema para os Estados Unidos.

Rússia e China não formam obstáculos. As duas potências obteriam benefícios geopolíticos com a eventual derrubada de Maduro por uma ofensiva total dos Estados Unidos. Putin e Xi interpretariam o evento como sedimentação de uma política mundial de esferas de influência: a troca da Venezuela pela Ucrânia e, mais tarde, por Taiwan. As pedras no caminho de Trump são a opinião pública americana, avessa a uma guerra na América do Sul, e especialmente a própria base ideológica trumpista.

O Maga, movimento trumpista, cuja voz mais nítida é o vice, J.D. Vance, orienta-se por um ultranacionalismo isolacionista que rejeita genericamente envolvimentos militares no exterior. O Big Stick na Venezuela foi idealizado fora da esfera do Maga, pelo secretário de Estado Marco Rubio, republicano oriundo da comunidade cubano-americana de Miami cujo sonho dourado é a deposição dos regimes chavista e castrista. Trump comprou a ideia na expectativa de obter um triunfo consagrador de política externa a preço promocional.

O preço já inflacionou. Inexiste garantia de que ataques pontuais contra alvos em terra precipitem a mudança de regime. A eventual sobrevivência de Maduro instalaria a lógica típica das escaladas militares. No fim do percurso, excluída uma impensável ocupação americana, a Venezuela poderia tornar-se palco de aventuras de grupos armados diversos e um duradouro santuário de cartéis do narcotráfico.

Nesse ponto da curva, porém, um recuo colaria à testa de Trump a imagem do célebre “tigre de papel”, expressão escolhida por Mao Tsé-Tung para, em 1956, caracterizar o “imperialismo americano”. O presidente dos Estados Unidos descobre aos poucos, dolorosamente, que o Big Stick não vive duas vezes.

 

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