quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

O papa, o cardeal e o livro. Por Marcelo Godoy

O Estado de S. Paulo

A ideia de Igreja de Leão é a mesma que levou d. Paulo a se envolver no projeto Brasil Nunca Mais

De volta da Turquia, Leão XIV foi questionado por que não rezara na Mesquita Azul, em Istambul, como fizeram Bento XVI e Francisco. Ele respondeu: “Quem disse que não rezei? Pode ser que eu esteja rezando agora”. E completou: “Prefiro rezar em uma igreja católica, na presença do Santíssimo Sacramento”.

O papa Prevost parece conciliar os pontificados de Ratzinger e de Bergoglio. Ele aproveitou, dias depois, a audiência com novos embaixadores para dizer que a Igreja “não ficará em silêncio diante das graves desigualdades, injustiças e violações dos direitos humanos fundamentais”.

Legitimava, assim, o trabalho de Baltazar Porras, o cardeal de Caracas, que teve o passaporte apreendido e foi impedido de deixar o país por denunciar violações de direitos do ditador Maduro. No Brasil, como fazia o SNI, um deputado denunciou ao Vaticano o padre Julio Lancellotti por sua pregação política, o que está além do uso de redes sociais. Surge a questão se a Igreja de Prevost é a mesma vivida por d. Paulo Evaristo Arns, na luta contra os delitos da ditadura militar. Dom Paulo acolheu perseguidos fossem quem fossem; o que lhe importava era a humanidade e a sua memória.

Foi por essa razão que o cardeal se envolveu no Projeto Brasil Nunca Mais. A história de sua ação e de personagens, como o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, está no livro Nunca Mais – Os Bastidores da Maior Denúncia Contra a Tortura já Feita no Brasil, do jornalista Camilo Vannuchi. Com recursos do Conselho Mundial das Igrejas (CMI), copiou-se em segredo um milhão de páginas de casos do Superior Tribunal Militar, identificaram-se 494 responsáveis por prisões e torturas e mapearam-se 242 centros onde tudo acontecia.

Foi d. Paulo quem sugeriu ao advogado que procurasse o pastor Jaime Wright, que abriu as portas do CMI – ele enviava secretamente ao Brasil, todo mês, emissários com dinheiro para o projeto. Em São Paulo, as cópias eram guardadas na sede do Instituto Sedes Sapientiae e, depois, na paróquia Nossa Senhora Mãe da Igreja. Usaram um computador CP500 – novidade na época – para preencher planilhas e concluir o trabalho.

Quando ficou pronto, o relatório que os organizadores queriam divulgar tinha 5,2 mil páginas. E d. Paulo questionou: “Quem vai ler 5,2 mil páginas? Vocês precisam fazer uma síntese da síntese. Essa pesquisa precisa virar um livro de 300 páginas”. O livro de d. Paulo – o Brasil: Nunca Mais – foi publicado em 1985 e se tornou um dos mais importante relatos sobre violações de direitos humanos na América Latina. Ao completar 40 anos, Vannuchi o resgata ao mesmo tempo que a manifestação de Leão XIV demonstra que essa missão não acabou. 

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