Folha de S. Paulo
Não há crise de governabilidade, mas clara
degradação da República
A PF é um bastião de credibilidade, mas sua autonomia é vulnerável à interferência do Executivo e do STF
Não é novidade que o Brasil político vai
muito mal. Os sintomas estão em toda parte, mas há diagnósticos equivocados.
Desde visões hiperinstitucionalistas, que atribuem o atual estado de coisas ao
desenho institucional, no qual o suspeito usual é o presidencialismo
multipartidário, até o diagnóstico de que forças malignas estariam
usurpando poderes do Executivo.
Há, no entanto, uma explicação parcimoniosa que dá conta da maior parte do conflito: forças políticas rivais conquistaram o Executivo e o Legislativo. Sob qualquer sistema de governo, haveria conflitos importantes entre os Poderes. É claro que, sob o presidencialismo, eles assumem mais contundência e possuem especificidades (em alguns casos, implicam em shutdown).
A cooperação entre forças rivais só existe
quando há ganhos de troca. Mas o problema é que, no país, isso vai muito além
de trocas legais; há muito mais que as pródigas salsichas de Bismarck. Não é
apenas realpolitik —barganha política e troca-troca de vantagens visando a
sobrevivência. Como mostrei
aqui. Elas envolvem crimes variados: de tráfico de influência
—passando por licenças para roubar— até desvio de recursos numa escala
colossal.
E não é só isso. Há flagrante violação da
accountability democrática. De um lado, abdicação da função de controle (por
exemplo, blindagem de fortes suspeitos
na CPI do INSS); de outro, abdicação da função representativa, como no caso
do acordão entre poder Executivo e setores da oposição no Congresso. A barganha
envolveu uma troca de R$ 20 bilhões pela aprovação
do PL da Dosimetria, que é objeto de discursos indignados de "defesa
da democracia" pelo governo e parlamentares de sua base.
Houve ampla mobilização contrária, o que
levou o governo a montar uma operação de redução de danos para transferir a culpa
para o senador Jacques Wagner, que assumiu como sua a iniciativa. Pela
combinação, o Executivo deverá vetar, na expectativa de que o veto seja
derrubado, inclusive com a participação do governo. Mas recursos ao STF poderão
entornar o caldo. Saldo líquido: o cinismo cívico recrudesce.
Na realidade, a corte já está envolvida no
acordo: o ministro Alexandre de Moraes teria participado da produção do texto
do projeto de lei, ao tempo em que denunciava a "absurda
interferência" do Legislativo nas decisões judiciais. Tudo isso veio à
tona e se soma a uma crise inédita. O presidente, cuja reputação já foi
manchada em dois casos escabrosos de corrupção no passado, tem um filho
envolvido em denúncias no escândalo do INSS. No Congresso, o presidente
do Senado enfrenta
denúncias, e o vice-líder do governo teve mandado de busca e apreensão expedido
por ministro do STF. Na corte, no entanto, dois ministros têm sido objeto de
denúncias graves, o que é inédito.
Hoje, a única instituição que ainda goza de
ampla confiança do eleitorado é a Polícia
Federal. Essa autonomia, contudo, encontra-se ameaçada caso venha a se
consolidar um padrão de retaliações entre ministros que conduzem ações
distintas no âmbito do Supremo. Se tal dinâmica se materializar, seus efeitos
serão profundamente corrosivos para a República, ainda que seu impacto imediato
sobre a governabilidade possa parecer limitado.

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