Folha de S. Paulo
A punição aos envolvidos no complô terá
efeito dissuasório; mas, isso já ocorrera porque o desfecho foi o não evento
O que teria ocorrido sob o contrafactual do
encarceramento de Getúlio após o Estado Novo?
Mitrídates 6º foi rei do Reino do Ponto, um estado
localizado no norte da Anatólia. Seu pai, Mitrídates 5º, governou o Ponto até
ser assassinado por envenenamento. Temendo sofrer destino semelhante,
Mitrídates 6º passou a ingerir diariamente pequenas doses de diferentes tipos
de veneno como forma de desenvolver tolerância. Ironicamente, essa estratégia
teve consequências inesperadas: ao tentar suicidar-se após a invasão do Ponto
pelo Império Romano, não teve sucesso devido ao elevado grau de imunidade que
havia adquirido. O que o levou a ordenar que um guarda o assassinasse.
A prática deu origem ao termo "mitridização", o processo pelo qual organismos vivos, mediante exposição contínua e crescente a determinadas toxinas, desenvolvem resistência ou imunidade a elas. Trata-se de um mecanismo baseado na sensibilização progressiva e na produção de defesas específicas contra o agente tóxico.
Para muitos analistas, a exposição a complôs
e tensões levará a democracia
brasileira a desenvolver anticorpos contra processos de
autocratização. Trata-se de uma extensão da máxima "o que não mata (a
democracia), fortalece".
Em outras palavras, um sistema democrático
pode, ao enfrentar desafios menores e gerenciáveis (as "pequenas doses de
veneno"), desenvolver mecanismos de defesa, flexibilidade e fortalecimento
institucional que o tornam mais robusto contra ameaças maiores no futuro. Uma
ideia correlata tem a ver com adaptação e imunidade: a capacidade de debater,
ajustar políticas, emendar leis e aprender com os erros (a
"mitridatização" política) pode prevenir colapsos sistêmicos.
A imagem, no entanto, não captura a questão
principal: a estrutura de incentivos. Sim, a punição aos perpetradores das
tentativas de subversão da democracia brasileira efetivamente altera esta
estrutura e terá efeito dissuasório. Mas, na realidade, isso em alguma medida
já ocorrera porque o desfecho observado foi o não evento: não houve golpe,
principalmente por veto endógeno, e não por resistência de instituições de
checks and balances.
Embora as instituições de accountability
horizontal robustas —Judiciário e instituições de controle lato sensu— possam
ter efeito dissuasório, a accountability vertical, exercida pelo eleitorado
através das eleições, mostra-se especialmente vulnerável a apelos de lideranças
populistas. A história fornece muitos exemplos, mas entre nós o caso mais
contundente de que o veneno não produziu anticorpos mas seu contrário, em uma
espécie de síndrome de Estocolmo, foi o Estado Novo (1937-1945) inaugurado por
um autogolpe de Getúlio.
Após quase nove anos —o único período em que
o Congresso brasileiro e as Assembleias Legislativas estaduais permaneceram
fechados—, de 10 de novembro de 1937 a 23 de setembro de 1946, o ditador não
foi só poupado, mas celebrado no episódio infame do Queremismo, não só pelo
eleitorado, mas sobretudo pelos mesmos setores da esquerda que haviam sofrido
dura repressão sob seu jugo. O exercício contrafactual —o que teria ocorrido se
Getúlio tivesse sido punido e encarcerado— nos diz muito sobre nossa tradição iliberal.

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