"Quem é ateu e viu milagres como eu
Sabe que os deuses sem Deus
Não cessam de brotar, nem cansam de esperar"
— Caetano Veloso, Milagres do Povo
Há coisas que, à primeira vista, não deveriam
coexistir. Marxista e crente. Materialista histórico e pessoa de fé. Militante
comunista desde os 14 anos e alguém que sempre acreditou que o mundo guarda
mistérios que escapam ao olhar. O mundo esperava, às vezes exigia que eu
escolhesse um lado. Ateu, agnóstico, no mínimo um antirreligioso. Era o roteiro
esperado de quem carregava Marx no peito desde tão cedo. Mas a vida não lê
roteiros.
Cresci em uma família kardecista, uma das mais antigas a professar essa fé em Pernambuco. Fui criado também pela mão firme e doce de uma incrível mulher da umbanda. Essas presenças não eram ornamentos da infância, eram universos. Eram modos de sentir, de intuir, de perceber que existe algo além do que as estruturas materiais conseguem me explicar. Não contra elas. Mas além. Um pouco além. Muito mais além.
"Quem é ateu e viu milagres como eu sabe
que os deuses sem Deus não cessam de brotar". Eles brotavam na mesa de
passes, nos pontos cantados, nas histórias que formaram meu imaginário.
Inúmeros deuses que Nietzsche não matou, que o materialismo não apagou.
Divindades que insistiam em existir porque eram do povo, nascidos da
necessidade humana de beleza, sentido e transcendência, porque a vida não basta
em si mesma.
Marx tinha razão sobre muita coisa. Sobre
como as condições materiais moldam a consciência, sobre como a religião pode
funcionar como ópio e funciona, em inúmeros contextos históricos, sobre a
necessidade urgente de transformar o mundo em vez de apenas interpretá-lo ou
consolá-lo.
Mas Marx operava com uma antropologia
incompleta. Ele partiu da premissa de que as contradições da humanidade eram
causadas apenas pelas questões materiais, sociais e de classe. Seu prognóstico
era claro: com a transformação das condições materiais, a necessidade da
religião desapareceria. A consciência religiosa era, na sua visão,
superestrutura, reflexo ideológico de misérias concretas. Resolvidas essas
misérias, a religião definharia naturalmente.
O que Marx não viu, ou não quis ver, é que a
necessidade de transcendência não é privilégio dos oprimidos nem compensação
exclusiva dos miseráveis. Ela atravessa todas as classes. O direito, a
capacidade, a necessidade de crer ou não crer é uma negociação interna de cada
ser humano no planeta. É algo interno, não externo. Não se dissolve com a
redistribuição dos meios de produção.
A angústia metafísica não é falsa
consciência. O espanto diante do mistério da existência por que há algo em vez
de nada? Não é ideologia de classe. A experiência do sagrado não desaparece
quando o estômago está cheio e a jornada de trabalho é justa.
Marx confundiu a forma histórica que a
religião assume (e que pode, de fato, ser alienante, opressora, legitimadora da
injustiça) com a dimensão antropológica da religiosidade, essa abertura humana
ao que está além do calculável, do mensurável, do puramente material.
E aí reside minha divergência com o
materialismo ortodoxo: posso aceitar toda a crítica estrutural marxista, toda a
análise das relações de produção, toda a denúncia da exploração de classe, e
ainda assim reconhecer que o ser humano não se esgota na dimensão
histórico-econômica. Há algo no humano que continua perguntando "e agora? Para
que tudo isso?" Mesmo quando as necessidades materiais estão atendidas. Essas
perguntas não são alienação. São sinais de que somos mais complexos do que
qualquer materialismo consegue capturar.
Veio então a curiosidade, aquela fome de quem
quer compreender tudo, a busca pelo que passava pela alma da humanidade, o que
tocava cada um que habitava esse plano como eu. Então li: hinduísmo, islamismo,
confucionismo, budismo, zoroastrismo, xamanismo. Eu devorava religiões como
quem tenta montar um quebra-cabeça impossível, procurando as bordas do
mistério, os pontos de confluência e os de separação, buscava onde estava a
centelha compartilhada em cada filosofia, o que animava nossa existência.
Mas havia um lugar para onde eu sempre
voltava, um ponto de gravidade, podemos dizer que meu marco zero nos estudos: o
judaísmo. De lá normalmente minhas jornadas partiam e para onde retornavam. E
não estava sozinho nessa viagem.
Walter Benjamin entrelaçou materialismo
histórico e messianismo judaico numa filosofia da história que via na redenção
a interrupção revolucionária do tempo capitalista. Ernst Bloch escreveu sobre a
esperança como princípio tanto da utopia marxista quanto da profecia religiosa.
Erich Fromm mostrou que a ética judaica e o humanismo socialista bebem da mesma
fonte: a dignidade radical de cada ser humano.
Não eram homens que abandonaram Marx para
encontrar Deus, nem que traíram a fé para abraçar a revolução. Eram homens que
perceberam que justiça social e profecia, luta de classes e reparação do mundo,
crítica e transcendência podiam, talvez precisassem, caminhar juntas.
O judaísmo sempre denunciou a opressão,
sempre gritou contra a injustiça, sempre exigiu cuidado com o estrangeiro, a
viúva, o órfão. Não é coincidência que tantos revolucionários tenham vindo de
famílias judaicas: há nessa tradição um imperativo ético de responsabilidade
coletiva.
E é isso que respondo ao Marx ortodoxo que me
acusaria de consolação burguesa: o judaísmo que pratico não é o que anestesia,
não é o que promete céu em troca de resignação terrena. É o judaísmo profético,
o que empurra para dentro da história, não para fora dela. É a fé que exige
justiça agora, que não aceita exploração como vontade divina, que vê no tikun
olam – reparação do mundo – não uma promessa para depois da morte, mas um
imperativo para hoje.
Essa espiritualidade não compete com o
marxismo. Ela o alimenta com combustível moral, com memória dos oprimidos, com
recusa ética que vem de mais fundo que a análise econômica.
E então o destino me fez me reencontrar com
ela, minha futura rabina, e hoje meu amor.
Foi como se todas as versões de mim, o
militante, o buscador espiritual, o menino criado entre passes e guias, o homem
que lia "O Estado e a Revolução", finalmente se encontrassem e
reconhecessem que sempre foram partes de um mesmo ser. Complexo, sim.
Contraditório, também. Mas pela primeira vez, inteiro.
Ela me ajudou a ver que eu podia ser tudo
isso. Aliás, que eu sempre fui isso. Que a contradição não era um problema a
ser resolvido, mas um território a ser ainda mais explorado. Minha visão
multilateral também a ajudou a melhor compreender a maravilha da diversidade
humana.
Me ensina que pertencer não significa fechar
portas. Que encontrar novas moradas não exige negar o que nos moldou, seja os
orixás que me encantam ou Gramsci que ajudou a libertar minha alma.
Construímos juntos uma forma de viver onde
marxismo e judaísmo não competem, mas dialogam. Onde ela, como rabina, traz a
profundidade da tradição que carrega milênios de sabedoria sobre justiça e
compaixão. E onde eu trago a urgência revolucionária, a análise das estruturas,
a recusa em aceitar que pobreza e opressão sejam naturais ou inevitáveis.
Nossas conversas são tessituras. Ela me
lembra que transformação social sem dignidade humana vira autoritarismo. Eu a
lembro que dignidade sem justiça material é privilégio de quem pode pagar por
ela. Juntos, tentamos construir um pensamento que não mutile nenhuma dimensão
do humano.
"E o coração — soberano e senhor — não
cabe na escravidão, não cabe no seu não."
Não cabe em nenhuma ortodoxia que me obrigue
a ser menos do que sou. O coração soberano insiste em ser inteiro. Acende velas
no Shabat sem rasgar minha carteirinha do partido. Estuda Torá sem esquecer a
mais-valia. Frequenta a sinagoga sabendo que religião pode ser ópio, mas também
pode ser profecia, resistência, memória subversiva de quem nunca aceitou a
escravidão e opressão.
Não abandonei nada. Integrei tudo. Corpo,
mente e alma reunidos em uma só pessoa.
Posso ser comunista sem perder o assombro
diante do mistério. Posso ser religioso sem ignorar as estruturas materiais de
dominação. Justiça social e vida espiritual não são inimigas, são aliadas na
caminhada rumo a um mundo reparado.
Somos felizes. Plenos. Nossa vida tem espaço
para tudo: para a crítica social e para as bênçãos, para a análise materialista
e para o transcendente. Tem espaço para a complexidade, para a contradição
criativa, para a tensão que não precisa virar síntese muito menos uma antítese
forçada.
Há uma sabedoria que só vem de quem já tentou
caber em caixas estreitas e desistiu. De quem viveu o suficiente para saber que
a realidade é mais vasta que qualquer ortodoxia. De quem amou o suficiente para
entender que a verdade não é propriedade privada, é algo que se compartilha,
que circula, que se revela de modos diferentes em tradições diversas.
O kardecismo me ensinou continuidade. A
umbanda me mostrou força ancestral e que os orixás são reais para quem deles
precisa. O marxismo me deu ferramentas para enxergar dominação e combatê-la. O
judaísmo me ofereceu comunidade, memória, esperança.
E minha trajetória me ensinou que eu não
precisava escolher entre esses tesouros. Que eu podia, que eu devia carregá-los
todos comigo.
"Os deuses sem Deus não cessam de
brotar, nem cansam de esperar."
Esperam que entendamos que não é preciso
matar a transcendência para fazer a revolução. Que não é preciso negar a
matéria para acessar o espírito. Que podemos ser inteiros, complexos,
contraditórios e, por isso mesmo, mais sábios.
Estamos em casa, minha rabina e eu. Uma casa
com lugar para todas as minhas contradições, para todos os meus mundos, para
todas minhas fés. Uma casa onde um militante comunista e uma judia acendem
velas no Chanucá em perfeita comunhão. Onde o materialismo dialético e a crença
no sagrado conversam, discutem, dançam, bebem, celebram. Uma casa onde não peço
desculpas por ter visto milagres. Onde não nego que os deuses brotam, teimosos
e necessários, do coração de cada um de nós.
Onde a luta de classes e a reparação do mundo
são faces da mesma esperança e lados da mesma moeda.
Somos matéria e espírito. Estrutura e desejo.
História e transcendência. Marx e Moisés. A crítica que desmascara ilusões e a
fé que insiste que o mundo pode ser mais mágico, mais justo, e muito mais
humano.
Sim somos muito complexos, bastante complicados,
mas enfim agora, só um pouquinho mais sábios. E estamos em casa!
*Cláudio Carraly, advogado, ex-Secretário Executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

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