O Estado de S. Paulo
No país da piada pronta, a Enééél é a metáfora pronta: a metáfora do obscurantismo medieval devorando o iluminismo da modernidade
A marchinha Boas Festas, composta por Assis
Valente em 1932, virou disco um pouco antes do Natal de 1933. “Anoiteceu / o
sino gemeu / e a gente ficou / feliz a rezar”. O sucesso veio a trenó,
consagrador e persistente.
A letra começa risonha e termina desalentada.
No princípio, o cantor encomenda: “Papai Noel / vê se você tem / a felicidade /
pra você me dar”. Depois, se frustra e conclui que um mimo tão precioso não vem
assim de graça. “Felicidade é brinquedo que não tem.”
A musicalidade de Assis Valente enternece. As frases melódicas reservam as notas mais longas para a sílaba final de cada verso, como se, num fôlego maior, o poeta erguesse os olhos para o céu noturno em busca de uma estrela amiga. Doída, a canção destila melancolia. Pueril, acalenta uma esperança renitente. Todos os anos, por distração ou teimosia, voltamos a entoá-la em pensamento.
Desta vez, porém, pedimos outra dádiva no
lugar da felicidade: pedimos a luz elétrica. Na cidade à mercê dos apagões,
ficamos na tentação de trocar, na letra, uma palavrinha de nada: queremos o
substantivo “eletricidade” no lugar do substantivo “felicidade”.
A língua é viva, em mais de um sentido. Às
vezes, faz chiste. Safa, caçoa da nossa aflição e zomba dos blecautes da
metrópole, onde a corrente elétrica se tornou mais valiosa que os momentos
felizes. É assim que, solertes, as traquinagens do idioma se apressam em
permutar uma coisa pela outra. A métrica fica perfeita, dá pra cantar
direitinho: “Papai Noel / vê se você tem / a eletricidade / pra você me dar”.
Será que ele tem? Será que ele dá? Será que tá ligado?
Nos dias que antecederam o Natal, testemunhei
cenas inusuais na minha vizinhança. Equipes de uniforme cor de argila e
capacetes magenta desciam de caminhões estacionados no meio-fio e montavam um
teatro demagógico: punham-se a podar os galhos mais salientes das árvores mais
impassíveis. Nas portas dos caminhões brancos vinha carimbado o nome da
companhia em letras verdes, delgadas e cínicas: Enel. Sim, a própria. Com suas
intervenções urbanas, o logotipo queria comunicar aos munícipes que tomava
conta da fiação para evitar intercorrências nas festas de final de ano. Truques
de ilusionismo.
Nas mensagens de publicidade, os locutores pronunciam o nome de modo esnobe, com pronúncia subalterna, italianizada. Dizem “ênel”. Afff. Ignorando que na grafia do esdrúxulo vocábulo não há nenhum acento circunflexo em cima do primeiro “e”, o marketing da empresa afronta as leis da gramática, que ordenam taxativamente: nas palavras terminadas em “el”, como “bordel”, a sílaba tônica cai no “el”. Oxítona, entendeu?
A tal da Enel (devemos pronunciar “enééél”,
já rimando com Papai Noel) vem a ser, caso você ainda não tenha sido avisado, a
concessionária contratada para fornecer aos lares, aos hospitais, às escolas e
aos bordéis destas paragens a inestimável eletricidade. Ocorre que, na prática,
ela fornece o oposto. Um de seus traços personalíssimos é a habilidade disruptiva
de, em vez de luz, entregar as trevas mais densas. Quando há tempestades, a
Enééél não sabe ser tempestiva (termo caro à linguagem dos contratos). A conta,
esta sim, chega aos domicílios com pontualidade tempestivíssima.
Você viu. Você sofreu. Em dezembro, entre
chuvas e ventanias, a metrópole mergulhou num ponto cego do cosmos. Mais de 2
milhões de casas ficaram às escuras. Em alguns bairros, o desabastecimento de
energia perdurou por uma semana. São Paulo se aterrorizou. A danação foi tanta
que as autoridades municipais, estaduais e federais, até então subservientes
aos interesses enélicos, fizeram o seu próprio teatro: em coro uníssono e
surpreendentemente suprapartidário, anunciaram que o contrato com a
concessionária dos apagões seria revisto. Quando? Ninguém sabe. Alguém falou em
“caducidade” e os prognósticos encruaram. A pendenga vai demorar uma
eternidade. Haja velas na cozinha, no quarto e no banheiro. Haja palitos de
fósforo.
No país da piada pronta, a
Enééél é a metáfora pronta: a metáfora do
obscurantismo medieval devorando o iluminismo da modernidade. Onde Deus mandou
“faça-se a luz”, a Enééél descontinuou (no jargão do mundo corporativo):
“faça-se o breu”. Basta olhar para enxergar. Mas, é bom esclarecer (o verbo vem
a propósito), só enxergaremos se olharmos o monstrengo durante o dia, com o Sol
brilhando de graça acima das nossas cabeças humilhadas (segundo consta, o Sol
ainda não foi privatizado) – quem deixar para olhar à noite não vai conseguir
ver nada.
Papai Noel bem que poderia espantar a sombra
e nos dar a eletricidade de presente. De brinde, levaria embora o buraco negro
da Enééél, de onde não escapa um único fóton.
José de Assis Valente – o mesmo que pensou
“que todo mundo fosse filho de Papai Noel” e, antes de terminar a música, já
mudou de ideia – cometeu o suicídio. Aos 46 anos de idade, tomou formicida.
Morreu no dia 6 de março de 1958, no Rio de Janeiro. Estava atormentado por
dívidas, com o aluguel em atraso. Não encontrei registros sobre a quitação de
sua conta de luz.
Um ano novo iluminado pra você. •

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