Valor Econômico
Quando as autoridades tergiversam por medo de
serem responsabilizadas, as consequências podem ser sérias
O Banco Central não está acima da lei nem isento de prestar contas de seus atos. Mas as recentes iniciativas do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal de Contas da União (TCU) para apurar o caso do Banco Master, da forma como estão sendo executadas, enfraquecem a autonomia da instituição e deixam o país mais vulnerável a crises bancárias.
Os princípios de supervisão de Basileia, um
acordo internacional que visa assegurar a estabilidade financeira em todo o
mundo, recomendam expressamente que os reguladores e fiscais bancários tenham
proteção legal para evitar que deixem de tomar as decisões necessárias por medo
de sofrer sanções.
A prescrição é clara: os supervisores só devem responder por suas ações nos casos em que agem com dolo ou má-fé. Não devem se sujeitar a punições quando o Judiciário ou órgãos de controle externo consideram que houve algum erro, seja por imperícia técnica ou por negligência.
A falta de proteção legal aos fiscais do BC
tem chamado a atenção do Fundo Monetário Internacional (FMI). Nas semanas que
antecederam o Natal, esteve no Brasil uma delegação do organismo para conduzir
o seu Programa de Avaliação do Setor Financeiro (FSAP, na sigla em inglês).
Esse é um relatório feito nos países-membros
a cada seis anos, com revisão da solidez do sistema financeiro - incluindo o
arcabouço legal e as ferramentas de supervisão e de resolução de crises
bancárias.
Nas últimas edições, o FMI critica o Brasil
por não ter implementado, até agora, o chamado Princípio 2 de Basileia, que prega
proteção ao corpo técnico do Banco Central para fazer o seu trabalho.
“A proteção jurídica para os servidores do
BCB é insuficiente”, disse o FMI no relatório mais recente, de 2018. “A reforma
do regime de proteção jurídica é crucial. Atualmente, os servidores do BCB
dispõem de proteção jurídica limitada, uma vez que sua responsabilidade está
sujeita a um padrão ordinário de culpa”, diz um documento anexo a esse mesmo
relatório.
Segundo a descrição dos técnicos do FMI, a
Constituição brasileira prevê que as pessoas jurídicas de direito público
respondam pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, assegurado o
direito de regresso contra o agente nos casos de dolo ou culpa.
Esse direito de regresso significa que o
governo pode, em seguida, cobrar do funcionário público - no caso, o fiscal do
BC - os prejuízos causados por dolo ou culpa. “A parte que pleiteia a
indenização precisa apenas comprovar o nexo de causalidade - isto é, que o dano
foi causado pela atuação do agente - independentemente da existência de culpa
do agente”, diz o relatório do FMI.
Se o fiscal cometeu um crime ou agiu com dolo
ou má-fé, nada mais justo do que responder por seus atos. Mas a preocupação do
Comitê de Basileia e do FMI é com responsabilização por culpa, que tem a ver com
o diagnóstico mais subjetivo que o juiz ou o órgão de controle administrativo
faz da atuação do supervisor.
Veja o caso atual. O Banco Central está sendo
investigado no STF por supostamente ter demorado demais para agir diante das
fraudes ocorridas no caso do Banco Master. Ao mesmo tempo, o TCU abriu um
procedimento para apurar suposta precipitação na liquidação do mesmo banco.
O Reino Unido dos anos 1990 mostra como esses
processos podem ser traumáticos. Os supervisores ingleses foram caçados
judicialmente por suposta negligência no caso do banco BCCI, cujos dirigentes,
a exemplo do Master, eram acusados de fraudes grosseiras.
No fim, concluiu-se que esses processos
judiciais eram abusivos - e a decisão final foi aprovar uma lei que garante
proteção aos supervisores nos casos em que agem de boa-fé.
Quando as autoridades tergiversam por medo de
serem responsabilizadas, as consequências podem ser sérias. No caso do Lehman
Brothers, o Tesouro e o banco central dos EUA ficaram receosos de fazer o
resgate da instituição. A quebra do banco desencadeou a crise financeira
mundial de 2008 e jogou os EUA e boa parte do mundo em uma recessão prolongada.
No fundo, a proteção legal existe não para
salvar os supervisores, mas para garantir a manutenção da estabilidade financeira
- um bem público que preserva o patrimônio de quem deixa dinheiro depositado
nos bancos e evita que a população, de forma geral, sofra com recessões que
poderiam ser evitadas.
No último ano, o Banco Central tomou uma
série de medidas para reforçar a estabilidade financeira - e a questão que cabe
é se não teria feito mais se tivesse proteção legal para fazer esse trabalho.
Parte da pressão que sofreu foi pública, como
o projeto no Congresso que visava remover do cargo o diretor de Regulação do
BC, Renato Gomes, que estava à frente da análise da compra do Master pelo BRB.
O Banco Central também teve que tomar
decisões difíceis na limpeza do sistema de pagamentos após as fraudes
bilionárias que ocorreram neste ano. Apesar de todos os indícios da atuação do
crime organizado, a resposta do BC teve que ser dosada em virtude do risco de
ações judiciais.
Desde 2019, está parado no Congresso o
projeto da nova lei de resolução bancária, que, segundo FMI, traz avanços para
aumentar a proteção legal aos fiscais do Banco Central.

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