CartaCapital
A recuperação do legado de Gérard Lebrun
revela as aventuras da formação de um pensamento filosófico brasileiro
Há uma maneira de compreender a filosofia no
Brasil através da história de sua profissionalização. Tal maneira consiste em
afirmar que, antes da profissionalização universitária da filosofia, o que
existia aqui não vale muito a pena ser recordado e integrado.
A experiência filosófica anterior seria
composta de voos de fôlego curto, ecletismos os mais variados e de um ensaísmo
filosófico-literário ao qual faltaria certo “rigor”. Nenhum aluno de filosofia
é levado atualmente a ler os textos de Sílvio Romero ou Tobias Barreto, para
ficar em dois dos mais conhecidos representantes desse momento.
Mas eis que teria vindo a implantação universitária da filosofia entre nós e, com ela, a ideia de inaugurar um processo de formação que nos trouxesse o modo de funcionamento da formação que imperava nos países europeus. A criação da Universidade de São Paulo (USP), em 1934, sela esse “momento inaugural”.
Expulsa da condução do País, a oligarquia
paulista esperava preservar sua centralidade com uma operação de hegemonia
cultural baseada na criação da maior universidade brasileira. Para tanto, ela
apelava a um sintomático modelo de “missões”, trazendo professores europeus
para fornecer as bases de um novo modo de ensino. Nas humanidades, eles vieram
da França.
O resultado viria em algumas décadas, quando
Michel Foucault, em visita ao Brasil, falou aos então professores de Filosofia
que tínhamos “um belo departamento francês de ultramar” e quando, a partir dos
anos 1970, a implantação dos programas de pós-graduação em filosofia seguiu em
larga medida esse modelo. Poderia haver outras formas de se pensar a história
da filosofia no Brasil, mas essa acabou institucionalmente por se impor.
A frase de Foucault tinha um sentido duplo.
Primeiro, ela dizia: “Ok, vocês conseguiram. A atividade filosófica se
profissionalizou no Brasil. Podem mandar seus estudantes para qualquer colóquio
de filosofia no mundo e eles não farão feio”. Mas ela indicava que o verdadeiro
trabalho ainda estava por começar.
O mundo não precisava de mais um departamento
colonial de ultramar. Deixar de ser o que nos havíamos tornado seria a
verdadeira formação, até porque deixar de ser não é simplesmente voltar a ser o
que se era. Há uma singularidade nova que se produz nesse trajeto.
Nesse momento, estamos no interior de tal
processo e, por isso, a edição de A Racionalidade Equívoca: Inéditos e
Dispersos, de Gérard Lebrun (1930–1999), é uma bela decisão. Lebrun foi,
certamente, o mais emblemático dos professores franceses da filosofia da USP,
aquele que mais a influenciou.
Todos conhecemos a história do dia em que
Bento Prado Júnior passa para o então calouro Paulo Eduardo Arantes uma pasta
de artigos inéditos de Lebrun com a recomendação: “Leia, estude e procure
imitar, pois é assim que se deve pensar e escrever”. Coube à argúcia de Pedro
Paulo Pimenta e Ruth Lanna, organizadores do livro, lembrar dessa história,
pedir a pasta e, mais de 50 anos depois, publicar os artigos, acrescidos de
outros textos da época.
O resultado é um retrato da
profissionalização da filosofia no Brasil. Pois o que significa esse encontro
com o ideal de pensamento e escrita de toda uma geração extremamente influente
no pensamento nacional, décadas depois? É revelador descobrir que esse ideal
funcionou como uma espécie de cerca de arame farpado.
Digo isso porque descobrimos uma prosa
tateante – como todo verdadeiro ensaio, com múltiplos horizontes e refratária à
especialização – que nunca nos foi ensinada como objetivo de formação.
Paradoxalmente, nos foi ensinado o contrário: que isso não deveríamos sequer
tentar. A forma escrita, nos diziam, deveria ser algo como o paper perfeito, o
oposto maior do ensaio.
Tomemos como exemplo o primeiro ensaio do
livro, As Feridas do Espírito. Lebrun passa 30 páginas a glosar a bela frase de
Hegel: “As feridas do espírito se curam sem deixar cicatrizes”. Para tanto, ele
passa de Hegel a Freud e à cura psicanalítica; depois a Proust e ao problema
literário da memória; e volta a Bergson para, ao final, criticar o conceito
hegeliano de tempo histórico e de espírito. O ensaio é, a um só tempo, belo, forte
e criticável – mostrando como, em filosofia, belos erros valem tanto quanto um
acerto.
Lebrun parte da pressuposição de um dualismo
história/natureza, vida do espírito/vida biológica em Hegel que seria dificilmente
defensável, indo contra o espírito de um autor que fez questão de colocar a
vida e seus processos orgânicos como momentos fundamentais da ideia. O autor
ignora haver um naturalismo de base em Freud, para quem a psicanálise fazia
parte da “ciência da natureza”.
Por fim, Lebrun compreende que a dialética
não é um discurso do ressentimento. É, ao contrário, uma crença no poder de
transformação da violência em momento de realização do espírito. Ele, no
entanto, vê essa transformação como uma monstruosidade, por apostar “na
coerência do mundo e no feliz desfecho dos conflitos” à custa de uma suposta
“negação da finitude”.
Seria possível entender essa problemática de
outra forma, insistindo que Hegel defende uma tese metafisicamente muito mais
deflacionada: a de que nenhum acontecimento tem a força de impedir de uma vez
por todas a construção institucional da liberdade.
Digo isso para lembrar que a bela experiência
do pensamento presente em A Racionalidade Equívoca vem de certo destemor diante
do risco, da possibilidade de erro e da capacidade de se deixar levar pelo
encadeamento de proximidades entre distintos saberes e discursos. Bento Prado
tinha razão: isso é o que deveria ser ensinado. Algo que, infelizmente, a
profissionalização da filosofia nos tentou roubar.
Publicado na edição n° 1393 de CartaCapital, em 24 de dezembro de 2025.

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