O Globo
Instituições psiquiátricas, não para prender,
dopar ou isolar, mas para socorrer, teriam salvado João e Gerson de si mesmos
Os personagens desta crônica se chamam Leona,
Layse, Allane, Gerson e João. Deveria haver também um anjo, mas este só costuma
aparecer nas narrativas sobrenaturais, e estamos no Brasil, no âmbito do
surreal. Desses cinco, quatro estão mortos — e a sobrevivente continua
condenada à prisão perpétua, sem ter jamais cometido crime algum.
Layse e Allane morreram por ser mulheres — o que, pela legislação, não é conduta passível de pena capital. Mas calhou de seu caminho profissional cruzar o de João, que padecia de uma doença severa e não tratada — cujo nome foi tão banalizado que perdeu a gravidade: misoginia.
João não odiava especificamente Layse e
Allane, mas todas as mulheres do mundo. Sentia-se menor diante delas, via-as
tomando o que julgava seu por direito natural. Afastado várias vezes do
trabalho devido a questões de saúde mental, retornou um dia com uma Glock .380,
e o anjo institucional não protegeu Layse (pedagoga, torcedora do Fluminense
que gostava de samba) nem Allane (psicóloga, militante progressista, amante da
dança de salão). Tampouco salvou João dos miasmas da sua masculinidade malsã.
Longe dali, cumprindo pena por ser bela e
selvagem — o que também não está previsto no Código Penal — Leona vive isolada
dos seus, confinada e exposta à visitação pública. Nasceu prisioneira e morrerá
sem ter conhecido a linha do horizonte. Seu universo são grades, paredões, espessos
panos de vidro e um simulacro de natureza. Tem a mesma idade de Gerson;
nasceram cada um em seu cativeiro. Ela, nesse erguido pela insensibilidade
humana, chamado de zoológico (ou, eufemisticamente, parque ambiental); ele,
dentro da própria mente, refém da esquizofrenia. Ela, com tratadores e
veterinários (porque dá lucro aos que a mantêm cativa); ele, só com a eventual
proteção do Caps — sua existência não servia a ninguém.
Ao contrário de Leona, Gerson buscou muitas
vezes a prisão — para ter onde dormir, do que se alimentar. Foram 16 passagens
pela polícia e inúmeras noites em bancos de praça desde que o encontraram,
ainda criança, vagando por uma estrada. Não teve pai (ignorado), não chegou a
ter mãe (também ela esquizofrênica). Não conseguiu ser adotado — nos momentos
de alguma lucidez, pedia a desconhecidos que o levassem para casa.
A casa de Gerson poderia ter sido outra, mas
fecharam os manicômios — depósitos de loucos — em vez de os transformarem em
lugares de acolhimento, tratamento e, quem sabe, cura (a cura possível, se não
da doença, pelo menos o alívio da dor, que já garante um pouquinho de saúde).
Gerson tentou voar para a África, escondido
no trem de pouso de um avião. Tinha a fantasia de cuidar de leões — quem sabe
ser um deles, ele que não encontrava lugar entre os da sua espécie. Chegou
perto do sonho ao descer à cova de Leona — mas o anjo que deveria zelar pelos
mais frágeis está ocupado em garantir seus privilégios, seus supersalários, sua
blindagem, sua reeleição, seu orçamento secreto.
Um pouco de humanidade bastaria para que
Leona tivesse acordado hoje não numa jaula, mas na savana. Instituições
psiquiátricas — não para prender, dopar ou isolar, mas para socorrer — teriam
salvado João e Gerson de si mesmos e permitido que Allane ainda dançasse, que
Layse estivesse neste sábado numa roda de samba.

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