sábado, 6 de dezembro de 2025

Quatro mortes e uma prisão, por Eduardo Affonso

O Globo

Instituições psiquiátricas, não para prender, dopar ou isolar, mas para socorrer, teriam salvado João e Gerson de si mesmos

Os personagens desta crônica se chamam Leona, Layse, Allane, Gerson e João. Deveria haver também um anjo, mas este só costuma aparecer nas narrativas sobrenaturais, e estamos no Brasil, no âmbito do surreal. Desses cinco, quatro estão mortos — e a sobrevivente continua condenada à prisão perpétua, sem ter jamais cometido crime algum.

Layse e Allane morreram por ser mulheres — o que, pela legislação, não é conduta passível de pena capital. Mas calhou de seu caminho profissional cruzar o de João, que padecia de uma doença severa e não tratada — cujo nome foi tão banalizado que perdeu a gravidade: misoginia.

João não odiava especificamente Layse e Allane, mas todas as mulheres do mundo. Sentia-se menor diante delas, via-as tomando o que julgava seu por direito natural. Afastado várias vezes do trabalho devido a questões de saúde mental, retornou um dia com uma Glock .380, e o anjo institucional não protegeu Layse (pedagoga, torcedora do Fluminense que gostava de samba) nem Allane (psicóloga, militante progressista, amante da dança de salão). Tampouco salvou João dos miasmas da sua masculinidade malsã.

Longe dali, cumprindo pena por ser bela e selvagem — o que também não está previsto no Código Penal — Leona vive isolada dos seus, confinada e exposta à visitação pública. Nasceu prisioneira e morrerá sem ter conhecido a linha do horizonte. Seu universo são grades, paredões, espessos panos de vidro e um simulacro de natureza. Tem a mesma idade de Gerson; nasceram cada um em seu cativeiro. Ela, nesse erguido pela insensibilidade humana, chamado de zoológico (ou, eufemisticamente, parque ambiental); ele, dentro da própria mente, refém da esquizofrenia. Ela, com tratadores e veterinários (porque dá lucro aos que a mantêm cativa); ele, só com a eventual proteção do Caps — sua existência não servia a ninguém.

Ao contrário de Leona, Gerson buscou muitas vezes a prisão — para ter onde dormir, do que se alimentar. Foram 16 passagens pela polícia e inúmeras noites em bancos de praça desde que o encontraram, ainda criança, vagando por uma estrada. Não teve pai (ignorado), não chegou a ter mãe (também ela esquizofrênica). Não conseguiu ser adotado — nos momentos de alguma lucidez, pedia a desconhecidos que o levassem para casa.

A casa de Gerson poderia ter sido outra, mas fecharam os manicômios — depósitos de loucos — em vez de os transformarem em lugares de acolhimento, tratamento e, quem sabe, cura (a cura possível, se não da doença, pelo menos o alívio da dor, que já garante um pouquinho de saúde).

Gerson tentou voar para a África, escondido no trem de pouso de um avião. Tinha a fantasia de cuidar de leões — quem sabe ser um deles, ele que não encontrava lugar entre os da sua espécie. Chegou perto do sonho ao descer à cova de Leona — mas o anjo que deveria zelar pelos mais frágeis está ocupado em garantir seus privilégios, seus supersalários, sua blindagem, sua reeleição, seu orçamento secreto.

Um pouco de humanidade bastaria para que Leona tivesse acordado hoje não numa jaula, mas na savana. Instituições psiquiátricas — não para prender, dopar ou isolar, mas para socorrer — teriam salvado João e Gerson de si mesmos e permitido que Allane ainda dançasse, que Layse estivesse neste sábado numa roda de samba.

 

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