O Globo
A degradação urbana não é inevitável, é uma
escolha. A cidade ainda é uma grande ideia do homem, mas, sendo invenção
humana, vem permeada por seu gênio e por seus demônios
O poeta francês Charles Baudelaire desenvolve
o conceito de modernidade a partir das ruas parisienses do século XIX. Ele a
pensava como fusão entre o eterno e o transitório, entre o clássico e o fugaz.
A rapidez das ferrovias, a percepção de proximidade entre as capitais europeias
e os bulevares rasgados pelo Barão Haussmann — tudo isso configura a Paris da
modernidade. É quando surge o flâneur, aquele que vaga com o olhar vadio e
curioso pelas coisas urbanas.
Na contemporaneidade, esse personagem morreu. Na São Paulo do século XXI, quem tenta flanar precisa esconder o celular dos trombadinhas, desviar dos buracos da calçada e fugir de ciclistas que invadem o passeio. Não há olhar vadio possível — apenas olhar vigilante.
E não é só o olhar que está em alerta. São
todos os sentidos. O paulistano precisa de resistência cotidiana. O barulho sem
trégua, o trânsito enlouquecido, as calçadas em ruínas — nada disso é natural
ou inevitável.
Por que essa incrível metrópole de 22 milhões
de habitantes vergou-se sob o desleixo? É pelo número de moradores? Tóquio, com
quase 60% mais população, é conhecida pelo silêncio de suas longas avenidas. Na
terra da Honda e da Suzuki, as motos não andam entre os carros — e tudo
funciona.
Os infortúnios chegam pela mão dos homens, e
as reações também partem de nós. Dou exemplos:
1) O Código de Trânsito Brasileiro não
permitia a circulação de motos entre os automóveis. Mas FH retirou essa
proibição, instaurando o inferno sonoro. Além de provocar aumento brutal de
acidentes e de motoqueiros com membros amputados.
2) Em Nova York, por longos anos, em cada
esquina havia uma placa: “É proibido buzinar”. O prefeito Michael Bloomberg
civilizou a poluição sonora — até que veio um novo mandatário para abolir a
norma, e a cidade mergulhou outra vez no escarcéu.
3) Enrique Peñalosa, prefeito de Bogotá por
dois mandatos, reduziu o número de vagas para estacionamento em vias públicas,
construiu centenas de quilômetros de ciclovias e alargou as calçadas. Implantou
o BRT, hoje uma referência mundial.
4) E a admirável Anne Hidalgo? A prefeita de
Paris promove uma revolução urbana na metrópole que tem uma das maiores
densidades habitacionais da Europa. De 80 mil vagas de estacionamento ao ar
livre, aboliu 60 mil. Criou centenas de quilômetros de ciclovias e adotou o
conceito da cidade de 15 minutos — onde o cidadão pode acessar qualquer serviço
fundamental em até 15 minutos a pé ou de bicicleta. Além de criar florestas
urbanas — em 2026, terão sido plantadas 170 mil árvores. Em sua política,
Hidalgo prioriza o pedestre, e não o automóvel. O número de parisienses com
carro caiu de 44% para 35%. E agora o Rio Sena é seguro para natação.
Não é o tamanho que define o destino de uma
cidade. São as escolhas políticas de seus gestores. Peñalosa e Hidalgo não
fizeram suas consistentes melhorias urbanas sem enfrentar protestos e os
lobbies. As principais reações vieram das classes altas. Mesmo assim, foram
eleitos duas vezes. O conflito não é técnico, é social. É quando se pergunta:
para quem é feita a cidade?
Nova York elegeu em novembro Zohran Mamdani,
um político de 37 anos, a partir de uma plataforma progressista vista como
radical. Nos comícios falou sobre moradia, creches, transporte público. Como em
qualquer campanha contemporânea, exagerou nas propostas. Mas tocou nos nervos
expostos dos nova-iorquinos: a qualidade dos serviços urbanos, a quantidade de
sem-teto nas ruas e de sujeira nas esquinas.
Até pouco tempo atrás, as cidades nunca
haviam concentrado simultaneamente tantos habitantes. Cada vez mais as
metrópoles se tornam imensas — megalópoles. Se a urbanidade cumpriu com suas
promessas de ser palco de educação, saúde e sociabilidade, agora depara com os
problemas agravados pelo despreparo de seus políticos.
Eles não são os únicos culpados. É o voto
popular que escolhe vereadores incompetentes e prefeitos corruptos — mas esse
voto é moldado por um sistema eleitoral deformado. Quando se vota mal, a
indiferença em relação à política resulta em nosso calvário urbano, na
implementação de medidas que só atendem a poucos interesses — e despreza a
maioria da população.
Percebe-se em vários lugares a busca por
soluções que transformem os aglomerados nos espaços de civilidade imaginados
por Baudelaire, depois por Walter Benjamin. A degradação urbana não é
inevitável, é uma escolha. A cidade ainda é uma grande ideia do homem, mas,
sendo invenção humana, vem permeada por seu gênio e por seus demônios.

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