quinta-feira, 10 de julho de 2008

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)


DEMOCRACIA E DIREITOS SOCIAIS
Roberto Cavalcanti de Albuquerque


Em uma democracia moderna, o poder político, sobre ser exercido direta ou indiretamente pelo povo, deve ser empregado em seu benefício. Esse postulado foi enunciado por Péricles no século V a.C. quando afirmou que Atenas era uma democracia porque seu governo beneficiava os muitos e não os poucos. Uma democracia, a ateniense, direta é certo, mas na qual o povo era constituído apenas pelos homens com mais de 20 anos – excluídos as mulheres, os escravos, os estrangeiros.

No século 18, um mínimo de suficiência econômica pareceu condição essencial ao exercício do voto. Hamilton afirma em O federalista que "um poder sobre a subsistência de um homem equivale a um poder sobre sua vontade". E Kant considerou em A ciência do direito que o voto "pressupõe a independência ou auto-suficiência do indivíduo". Por isso a propriedade foi qualificação necessária à cidadania ativa, negada aos escravos, mulheres e despossuídos.

No século 19, a democracia foi estendida ao econômico-social, de modo a evitar que abrigasse, ou até estimulasse, desigualdades e injustiças impedindo ou viciando a liberdade política. Para Mill, a liberdade e a igualdade devem abarcar todos os homens e mulheres, independentemente de berço, raça, título ou fortuna. Antecipando-se aos direitos sociais contemporâneos, ele afirma: "Não deve haver párias em uma nação civilizada e madura. Nem pessoas desqualificadas, salvo por sua própria culpa". O socialismo prosperou nesse caldo de cultura, radicalizado por Marx (1875) em extremado igualitarismo, expresso no conhecido lema "de cada um segundo sua capacidade a cada um segundo suas necessidades".

Como desdobramento dessa evolução conceitual, passou-se a pleitear do Estado um sistema de ensino tão universal quanto o direito do voto, além de capaz de assegurar um padrão mínimo de escolaridade a todos. Somente a "educação liberal" – liberal porque voltada para formar o bom julgamento e a consciência crítica, ou seja, a inteligência do homem livre – poderia preparar o indivíduo ao exercício da cidadania. A Constituição brasileira, que completa 20 anos neste 2008, contempla amplamente esse e outros direitos sociais em seu generoso texto – tão generoso nos fins que comina quanto desatento em prover os meios para alcançá-los.

A filosofia política contemporânea enfatiza o exame da legitimidade e permanência da democracia e dos direitos sociais na sociedade "pós-metafísica". Ela rejeita o direito natural e vivencia profunda crise do espírito. O advento em governos populares, republicanos e representativos do nazismo e fascismo demonstrou o quanto equivocadas podem ser as escolhas eleitorais e os acordos políticos e quão frágeis são as democracias.

Dois destacados pensadores, John Rawls (Uma teoria da justiça, 1999) e Jürgen Habermas (Direito e democracia, 1997) dedicaram-se a esse tema. Suas idéias convergem. Para eles, o direito e a justiça fundamentam-se na autonomia moral dos cidadãos, nascem da cooperação e interação entre eles e se estabilizam em clima de liberdade e igualdade onde o uso da razão se orienta para o bem público. Cidadãos autônomos, agindo coletivamente, tornam-se intersubjetivamente responsáveis pelos princípios e normas a que eles individualmente se submetem. Devem movê-los a visão de seu próprio bem (do que é bom para eles) e o sentimento de justiça (sendo diferente do bom, o justo deve ser prioritário).

Para fortalecer as democracias não basta a vigência plena do Estado de Direito. Uma cultura política democrática e uma sociedade civil ativa e emancipada do Estado são igualmente necessárias. Elas são o espaço público da justificação que valida e legitima a moral, as leis e a justiça. Para Rawls e Habermas, a democracia é proposta de vida ética visando à realização do potencial de cada um em clima de dignidade e segurança. A Constituição deve ser o projeto de um Estado de Direito radicalizado pela democracia. A comunidade de princípios que assim se forma não se baseia em identidade compartilhada, mas na diversidade e pluralidade de modos de ser, ver, sentir e pensar que florescem com a liberdade. As liberdades fundamentais devem ser vistas em seu conjunto, colocando num mesmo plano os direitos políticos, civis e sociais.

» Roberto Cavalcanti de Albuquerque, ensaísta, é diretor do Instituto Nacional de Altos Estudos, Inae-Fórum Nacional (Rio de Janeiro)

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


DEPOIS DE INGRID
Demétrio Magnoli

No dia do resgate de Ingrid Betancourt, quase todos, incluindo Hugo Chávez, felicitaram o governo colombiano pelo feito que realizou. Não o Brasil. Franklin Martins, conduzido ao cargo de secretário da Verdade Oficial por ter, como jornalista, negado as evidências do mensalão, preparou uma nota em tons fúnebres na qual o presidente Lula “manifestou satisfação” com a notícia e enviou “seu abraço fraternal” aos reféns libertados, mas não mencionou o governo da Colômbia. Horas depois, o ministro Celso Amorim engajou-se numa operação de contenção de danos, anunciando que Lula telefonaria ao presidente Álvaro Uribe para cumprimentá-lo.


O resgate dos reféns representou uma derrota política para Chávez e Lula. O caudilho venezuelano empenhava-se em intercambiar Betancourt pelo reconhecimento da guerrilha degenerada como parte beligerante. Lula, obviamente, não compartilha a visão chavista da restauração “bolivariana” da Grã-Colômbia, mas também buscava um caminho para evitar a falência completa das Farc. Secretamente, por meio dos contatos do PT com a direção das Farc, o governo brasileiro tentava articular a entrega dos reféns a Lula. Há poucas semanas, esse desfecho parecia iminente a seus promotores. Agora, saudando Uribe pelo resgate, Chávez ameniza os danos à sua imagem. A nota incompetente e ideológica de Franklin Martins, ao contrário, ilumina a política fracassada que deveria permanecer no escuro.


A nota do Brasil expressou o desejo de “reconciliação de todos os colombianos”, senha que equivale à solicitação de negociações com as Farc. A versão explícita está na nota emitida pelo PT, que declara apoio à “inserção dos guerrilheiros e de seus simpatizantes na vida pública” por meio de “uma saída pacífica negociada para este conflito que dura décadas, com raízes sociais e políticas profundas”. A fórmula reverbera a política da nova direção das Farc, mas significa o oposto do que decidiram os colombianos em duas eleições sucessivas. Democraticamente, a Colômbia renunciou à opção, já experimentada, de negociações com as Farc. Seu governo oferece perdão aos que depuserem as armas, mas promete processar os chefes do grupo associado ao narcotráfico e responsável por violações continuadas dos direitos humanos.


Capturada pelos ideólogos petistas, a política sul-americana do Brasil insiste em desconhecer a existência de um Estado soberano e democrático na Colômbia. A nota oficial não faz menção a esse Estado, enquanto a nota do PT indica que as almejadas negociações com as Farc propiciariam “a construção de instituições democráticas profundamente renovadas” no país vizinho. É uma curiosa solicitação, emanada de um partido que jamais usa a palavra democracia quando se refere a Cuba e que aplaudiu, formalmente, a cassação de uma emissora de TV na Venezuela.


A trajetória que culminou com o resgate se iniciou pelo ataque à base do número 2 das Farc, Raúl Reyes, no lado equatoriano da fronteira. Depois daquilo, acossada pela forças do governo, a guerrilha experimentou um processo de fragmentação que continua a se desenrolar. A cinematográfica versão oficial sobre o resgate deve ser lida como o capítulo público de uma história mais complexa, coberta pelo sigilo típico das ações de inteligência. Há indícios de que o resgate envolveu um ato de traição de dirigentes das Farc que se descolam do controle de seus chefes. A Colômbia conseguiu tudo isso enfrentando um isolamento diplomático regional imposto por Chávez e pelo equatoriano Rafael Correa.


As estratégias do PT seriam pouco relevantes se não se infiltrassem, através do assessor presidencial Marco Aurélio Garcia, na política externa brasileira. Ao participar, na condição de coadjuvante, da operação de isolamento do governo colombiano, o Brasil trocou os interesses nacionais permanentes pelos delírios ideológicos que atravessam um partido incapaz de romper com o castrismo e o chavismo. As duas metas geopolíticas mais antigas do Brasil na América do Sul são evitar tanto uma coalizão antibrasileira de Repúblicas hispânicas quanto uma destacada presença militar de potências externas nos países vizinhos. O tratamento dispensado até aqui pelo governo Lula a Uribe empurra a Colômbia para uma aliança cada vez mais exclusiva com os EUA.


Os ideólogos petistas condenam os seqüestros promovidos pelas Farc, mas suas análises políticas sobre a América Latina se organizam sobre os mesmos conceitos e a mesma linguagem utilizados pelo grupo de origens stalinistas. Ofuscados por um antiamericanismo anacrônico, eles são impotentes para compreender que o governo Uribe lastreia a sua popularidade na realização de um programa de reconstrução da Colômbia. Quando Uribe assumiu a presidência, o Estado colombiano havia perdido o monopólio da violência legítima, que é a base da vida das nações.


Hoje, sob a vigência das liberdades públicas, os grupos paramilitares de extermínio foram desarticulados e as Farc se encontram nos seus estertores. Há muito a ser feito num país onde sindicalistas ainda são assassinados periódica e impunemente. Mas os colombianos recuperaram a possibilidade de viver numa comunidade política assentada sobre regras democráticas.


A Colômbia encontra-se diante de uma nova encruzilhada. A iniciativa de setores próximos a Uribe de patrocinar um terceiro mandato presidencial não deve ser identificada ao referendo constitucional chavista do ano passado, no qual se pretendia nada menos que implantar uma ditadura na Venezuela. Mas a emergência de um caudilhismo uribista solaparia as instituições democráticas na Colômbia e serviria como pretexto perfeito para o relançamento do projeto ditatorial de Chávez. O governo brasileiro, que nada viu de errado na pretensão do venezuelano, está impedido de se pronunciar sobre o ensaio continuísta colombiano.


*Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.

DEU NA FOLHA DE S. PAULO


SONHO DE VERÃO
Eliane Cantanhêde


BOGOTÁ - A sensação aqui na Colômbia é que não são apenas as Farc que estão se desmilingüindo. As oposições também.

O senador Gustavo Petro, do Pólo Democrático Alternativo, discorda firmemente. Também, pudera. Aos 48 anos, ele é a estrela oposicionista em ascensão e figura nas pesquisas como um dos presidenciáveis potenciais para 2010. Petro se apoia em um tripé:

1 - Sem Uribe na disputa, os cinco primeiros nomes em intenções de voto eram independentes e do Pólo, dispostos a marchar numa frente democrática e oposicionista onde Ingrid Betancourt, por exemplo, poderia brilhar. Juntos, eles tinham 35% nas pesquisas anteriores à ação espetacular de resgate dos reféns. Perderam circunstancialmente, mas vão se recuperar.

2 - O presidente Álvaro Uribe, duro, de direita e alinhado incondicionalmente a Washington, é resultado direto das Farc. Farc fortes, Uribe forte. Com as Farc em declínio, Uribe perde o discurso e, ao longo do tempo, pode perder até mesmo o sentido. Além de correr o risco de ficar sem os bilhões de dólares norte-americanos.

3 - Sem o foco único do combate à guerrilha, que domina tudo e todos, o povo vai naturalmente voltar a cobrar o que todo povo cobra, em especial aqui na América Latina: mais empregos e menos custo de vida.

Aparentemente, está acontecendo o contrário.

Por enquanto, são sonhos de verão de uma oposição acuada e que não sabe para onde correr. O fato concreto na política colombiana hoje é que Uribe está com a faca e o queijo na mão para mudar a Constituição mais uma vez e disputar o terceiro mandato. Na pesquisa Gallup de ontem, sua popularidade bateu em 85% -um recorde.

Mas não custa repetir que, em política, mais ainda do que em todo o resto, nunca se sabe o dia de amanhã. Muita água ainda pode rolar até as eleições de 2010. E espera-se que só água, não tiros.

DEU NA FOLHA DE S. PAULO


CLIMA, PREÇOS E REALISMO
Clóvis Rossi


HOKKAIDO - Coube ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva injetar uma certa dose de realismo na reunião de cúpula entre o G5 (Brasil, China, Índia, África do Sul e México) e o G8, o exclusivo clubão dos sete países mais ricos do mundo e a Rússia.

Começou lendo tabela sobre quanto cada país relevante emite de CO2 (gás carbônico), um dos gases que causam o efeito estufa e, por extensão, o aquecimento global, o grande fantasma para o futuro do planeta.

E terminou pondo na sala de debates a palavra "especulação" para se referir a uma das causas da disparada de preços do petróleo e dos alimentos, o grande fantasma no presente do planeta.Não que a tabela que Lula leu seja novidade. Os dados são de 2005.

Foram coletados por um instituto norte-americano de energia, o que retira da iniciativa do presidente uma eventual suspeita de que estivesse querendo proteger o Brasil.Os EUA são, sabidamente, o maior emissor de gases, o que o levantamento confirma.

Até agora, no entanto, países ricos e pobres ficavam discutindo o fantasma na base de "se você fizer, eu faço. Se não, nada feito". E nada se fazia mesmo. Agora, diz Lula, deve-se armar uma "base numérica real" a partir da qual formular cursos de ação.

Quanto à especulação, é uma palavra quase tabu na mesa dos grandes. Tanto que, na cúpula do G8 de 2007, Angela Merkel, a chanceler alemã, queria que o G8 adotasse uma regulação mais rígida e um código de conduta (voluntário) para os agentes dos mercados financeiros. Foi derrotada e o assunto sumiu da agenda.

Lula (e também o presidente mexicano Felipe Calderón) o recolocou ontem. Como seus discursos serão (ou não) aceitos dirá muito sobre a perspectiva de uma efetiva mudança (ou não) na diretoria econômica do planeta.

DEU EM O GLOBO


DEUS FEZ A SUA PARTE
Carlos Alberto Sardenberg


Visto de fora, com a vantagem da distância que embaça os detalhes, o Brasil parece muito bem. Visto em perspectiva global, parece excepcionalmente bem.


De que o mundo precisa e vai continuar precisando? No essencial, de alimentos e energia. Ora, o Brasil já é grande produtor e exportador de alimentos, tem terras e capacidade para melhorar sua posição. Energia, o país já tem para o gasto, ou quase, e pode se tornar grande fornecedor mundial.


Há aqui, aliás, outra combinação que favorece o Brasil. O mundo quer também energia verde - e o país já tem desenvolvida a capacidade de produção do etanol da cana-de-açúcar.


É verdade que essa energia tem alcance limitado. Nem plantando toda a terra agricultável do mundo com cana seria possível produzir o etanol necessário para mover a frota mundial de automóveis. O etanol será mistura para a gasolina. Vai daí que o petróleo continuará sendo a principal fonte para os carros, assim como para a indústria global. Tudo bem, a mão de Deus colocou o Brasil nesse jogo.


Pelo que apontam as recentes descobertas de óleo na camada de pré-sal, o país poderá ser um exportador importante de petróleo já por volta de 2015. Conforme as estimativas de técnicos da Petrobras, não seria difícil alcançar vendas externas líquidas de 1 milhão de barris/dia. Mas, leitores e leitoras terão reparado, é tudo na base do "pode ser". Há países não abençoados por Deus, com escassos recursos, que souberam crescer e enriquecer. Japão e Coréia do Sul, por exemplo.


E não é preciso procurar muito para encontrar nações abençoadas mergulhadas em guerras, atraso e miséria. Ou com um crescimento lento e mal distribuído.


Eis uma boa comparação: Israel, sem uma gota de petróleo, com pouca terra boa para plantar, em meio a um deserto, tem uma renda per capita em torno de US$23 mil. É quase o dobro da Arábia Saudita (US$13 mil/ano), entretanto, a maior produtora e exportadora mundial de petróleo. E ainda tem gás, minério de ferro, ouro e cobre.


A história mostra que não é fácil transformar recursos naturais em riqueza da qual as pessoas possam desfrutar. E quando um país consegue combinar a bênção da Natureza com a capacidade da população e a sabedoria de seus líderes, simplesmente decola, como aconteceu com os EUA.


Portanto, o problema brasileiro hoje é como lidar com toda essa potencialidade. O primeiro desafio é não começar a brigar desde já por uma riqueza que ainda não existe.


Qual nosso problema principal? Mobilizar investimentos.


Tome-se o caso do petróleo. Sabe-se onde está e já se conhece, no essencial, a tecnologia necessária para retirá-lo de lá. Mas para fazer isso é preciso construir/ comprar/ alugar sondas, navios, oleodutos, gasodutos e refinarias. Além de formar e contratar o pessoal.


Haja capital.


Há capital no Brasil, mas está longe, muito longe de ser o suficiente. Serão necessários investimentos estrangeiros de porte. Logo, o modelo de exploração precisa atrair o investidor e garantir que a empresa bem-sucedida no negócio poderá fazer e levar o lucro para seus acionistas.


Após a descoberta dos novos campos, o governo brasileiro passou a discutir não exatamente o modelo de exploração, mas quanto disso tudo - que ainda não existe - vai ficar para o Estado. Governos estaduais e prefeituras já cobiçam essa mesma riqueza do futuro.


Já se discute sobre uma nova estatal, por exemplo, que seria a dona exclusiva dos novos campos. Mau começo.


Mesmo porque o atual modelo - leilão e concessão de campos - já se mostrou muito eficiente no que é necessário, aumentar investimentos, nacionais e internacionais, e a produção.


Mas os novos campos vão dar muito dinheiro, comenta-se, não é possível deixar tudo isso para os gringos ou para os capitalistas nacionais. Mas quanto maior o lucro, mais impostos o governo recolhe. E para fazer o lucro, são necessários os investimentos que geram desenvolvimento, emprego e renda aqui mesmo.


Em resumo, é preciso abrir espaço e criar condições para o investimento privado, nacional e internacional, e estatal, da Petrobras.


Quanto aos alimentos? Aí é mais fácil. A terra está aí, é só criar condições para a expansão do agronegócio. Quase se poderia dizer: não atrapalhar o agronegócio.


CARLOS ALBERTO SARDENBERG é jornalista.

DEU EM O GLOBO


QUANDO A POLÍCIA MATA...
Julita Lemgruber


Em 2001 o condado de Los Angeles foi obrigado pela Justiça a pagar cerca de sete milhões de dólares em indenizações a vítimas de violência policial - que incluíam desde 12 pessoas mortas pela arma de um policial até 22 submetidas a "força excessiva", mesmo sem seqüelas duradouras, em alguma ação da polícia. Seis anos depois, o condado desembolsava em indenizações desse tipo cerca de três milhões de dólares, ou seja, menos da metade da quantia anterior. E as 5 vítimas letais da polícia em 2007 também representavam menos da metade do número registrado em 2001.


O que mudou ao longo desses anos? O governo de Los Angeles contratou os serviços de Merrick Bobb, conhecido e respeitado advogado, para atuar como auditor independente e monitorar as ações da polícia local. Desenvolveu-se no condado um sistema de controle do disparo de arma de fogo, em que cada policial deve registrar, ao final do dia, cada tiro disparado e até mesmo cada vez que a arma foi sacada do coldre. Tornou-se obrigatório relatar minuciosamente os fatos que motivaram o uso da arma, e também outros incidentes em que se avalie ter havido emprego excessivo da força, sendo tais relatórios revistos pelas chefias e discutidos com os policiais.


Na década de 1990 várias cidades norte-americanas tiveram de pagar indenizações milionárias a vítimas de violência policial. De Nova York a Filadélfia, de Detroit a Los Angeles, centenas de milhões de dólares dos contribuintes foram gastos com isso. Apenas como exemplo, uma pessoa mordida por um cão da polícia recebeu indenização de 100 mil dólares. Como reconhecem estudiosos das polícias dos EUA, a sangria de recursos provocada por ações judiciais dessa natureza foi um estímulo decisivo à adoção, em várias partes do país, de estratégias de controle externo voltadas explicitamente para reduzir a violência e a corrupção policiais. O princípio que está por trás é muito simples: em cada episódio de abuso, excesso ou desvio, a culpa não recai apenas sobre os agentes diretamente envolvidos nem só sobre os seus superiores imediatos, mas também sobre o estado, município ou condado responsável pela polícia e pela política de segurança. Quando esse princípio se traduz em responsabilização judicial e em pesado ônus financeiro, cria-se uma forte motivação para que os governos invistam efetivamente na mudança de comportamento dos seus policiais.


A espantosa continuidade dos episódios de violência policial no Rio de Janeiro mostra a urgência de responsabilizarmos as autoridades fluminenses pelos resultados da sua opção por uma política de confronto como suposto método de redução da criminalidade. Não basta mais culpar apenas os policiais individualmente nem o seu treinamento precário. É preciso admitir que a morte de tantos inocentes, inclusive crianças pequenas - como Ramon, de 6 anos, na Favela do Muquiço, e João Roberto, de 3, metralhado na Tijuca - decorre da mesma política que tem provocado centenas de mortes, nunca suficientemente investigadas, de reais ou pretensos bandidos.


Policiais devem imediatamente passar por treinamento intensivo em técnicas de abordagem e sua ação nas ruas deve começar urgentemente a ser monitorada nos moldes do que se começou a fazer em muitas cidades dos Estados Unidos e da Europa, por meio de mecanismos de controle externo independentes e autônomos. Mas, para que isso saia do discurso e chegue à prática, é necessário, entre outras coisas, responsabilizar judicialmente o Estado, obrigando-o ao pagamento de altas indenizações, que não fiquem nas filas dos precatórios, pelas vítimas letais e não letais da violência que ele incentiva com a sua política belicista. Se considerarmos que a polícia fluminense matou, só no ano de 2007, 1.330 pessoas em alegados confrontos, sem contar as que deixou seriamente feridas, poderemos imaginar o montante de indenizações a serem pagas caso essa polícia atuasse em Los Angeles.


JULITA LEMGRUBER é socióloga e diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC/UCAM).

NA ESTATÍSTICA, MORRE QUEM RESISTE À PRISÃO
Maria Inês Nassif


Chamar a operação policial que resultou na morte de João Roberto Amorim Soares, de 3 anos, de "desastrosa", como o fez a Secretaria de Segurança Pública do Rio, é usar de um cruel eufemismo. Os desastres da política de segurança pública do Rio se repetem incansavelmente, governo após governo. A violência policial não é um fenômeno exclusivamente fluminense, isso é inegável, mas os números mostram que a vitimização da população "civil" (aquela que não é polícia, nem militar, nem bandida) no Estado atinge proporções assustadoras. Em 2007, segundo dados oficiais, a polícia matou cerca de 1300 pessoas no Estado do Rio; todas essas mortes foram classificadas como "resistência seguida de morte" e poucas resultaram em algum tipo de investigação dos envolvidos. É a polícia que mais mata no mundo.

Segundo relatório de 2007 da Anistia Internacional, nos anos de governo dos Garotinho (Anthony, de 1999 a 2001; Rosinha, de 2003 a 2006) a taxa de homicídios manteve a média de 6 mil assassinatos por ano; as mortes por ações policiais ficaram em cerca de mil anuais. As ocorrências registradas como "resistência seguida de morte" eram próximas a 300 em 1997 - marido e mulher mais do que triplicaram esses números. A Anistia Internacional também aponta a grande expansão de áreas controladas por milícias formadas por policiais, guardas prisionais e bombeiros fora de serviço no último ano do governo Rosinha, quando esses grupos conquistaram, no enfrentamento, áreas dominadas pelo tráfico. No último mês de 2006, as milícias controlavam 92 das 500 favelas da cidade. Sérgio Cabral, em seu primeiro ano de governo, superou a marca dos Garotinho em pessoas mortas em operações policiais. As milícias continuam onde estavam.

Para efeito de estatística, João Roberto, com seus três anos de idade, foi morto porque resistiu à prisão. Até pouco tempo, eram assim considerados também as vítimas de balas perdidas, em confrontos entre policiais e bandidos. A operação policial que resultou na morte do menino, e todas as outras que tingiram de sangue as páginas policiais dos jornais, são a prova da fragilidade da população "civil" frente a uma autonomia cada vez maior das forças de segurança - fruto de uma política militarista de segurança, da impunidade dos policiais e do apoio de parcela da sociedade a ações altamente ofensivas, desde que restritas geograficamente a regiões mais pobres.

O alto índice de criminalidade do Rio e o controle de favelas pelo tráfico, de um lado; e de outro o apelo de setores conservadores por medidas repressivas radicais, capazes de cortar "pela raiz" as razões da insegurança, transformaram a segurança pública do Rio em um instrumento de ação política. As grandes operações policiais e militares, que resultam na ocupação e isolamento de populações inteiras de favelas por dias, têm sido a resposta dada pelos governos à população que não mora nas favelas. Há um seccionamento sistemático das duas clientelas políticas. A violência policial, todavia, as une. Hoje, uma criança de classe média é vulnerável a uma ação policial assim como uma criança que mora na favela (embora existam mais chances do morador de favela ser atingido).

Grandes operações são apenas shows

Ignacio Cano, em estudo de 1997 ("Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro"), faz um levantamento dos registros de óbito na capital entre janeiro de 1993 a julho de 1996 e chega a outros números que comprovam a truculência da ação policial. Segundo ele, os "opositores" mortos em ações policiais foram da ordem de 242; os feridos, 410; e os que escaparam ilesos, 294. Isto é, em operações teoricamente destinadas a prender transgressores da lei, a regra seguida pela polícia é matar. A maioria das vítimas morreu antes de chegar ao hospital. A análise dos laudos cadavéricos mostra o uso excessivo da força ou aponta sinais de execução (quatro disparos ou mais; tiros letais, nas costas ou na cabeça, em vez de disparos para imobilizar o "opositor", nas pernas, por exemplo). Em vários dos casos de policiais que atiraram pelas costas das vítimas, eles foram promovidos por bravura. Tanto no Rio como em São Paulo, segundo a Anistia, não mais do que 1% das ocorrências de morte em ações policiais vão a tribunais.

Os governos sucessivos do Rio não fizeram uma política de segurança eficiente - aliás, sequer chegaram a formular efetivamente políticas de segurança -, não controlaram suas polícias nem atenderam as populações carentes que precisam da presença física do Estado nas suas comunidades sob pena de ficarem reféns de traficantes ou milicianos. Para escamotear a ineficiência, o poder público do Estado dissemina a idéia de que polícia boa é aquela que atua "com rigor"; que política de segurança é operação militar em favela; que "bravura" policial é dar tiro nas costas. O Rio chega, dessa forma, a uma situação insustentável. O Estado, e em particular sua capital, são a prova mais acabada de que truculência, em segurança pública, não é sinônimo de eficiência. E que os shows pirotécnicos das grandes operações policiais-militares são apenas isso - shows pirotécnicos.

Geraldo Kassab

Cometi o erro, na coluna de 3/7, de chamar o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, de Geraldo Kassab - à la vice-governador de São Paulo, Alberto Goldman, misturei o nome do prefeito e candidato à reeleição pelo DEM e o do candidato tucano, Geraldo Alckmin. Peço desculpas a ambos.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras