quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Sem fazer nem acontecer


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Pode haver um governante igual, mas, mais rápido no gatilho que o presidente Luiz Inácio da Silva quando se trata de chamar o adversário para a briga eleitoral, no Brasil, ainda está para nascer.

Ainda em 2003, com um ano de antecedência, Lula lançou a então prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, à reeleição e, de lá para cá, não deixou passar em branco nenhuma chance de criar atrito com a oposição.

Reflexo natural no político forjado na lógica do embate. Mas, nesse período como presidente, Lula não usou esse atributo nem exibiu a mesma destreza na resolução de contenciosos de natureza governamental.

Em todos - dos escândalos de corrupção ao início da crise econômica mundial, passando pelo apagão aéreo - o presidente se omitiu o quanto pôde.

Agora segue o mesmo roteiro nos casos mais recentes: o confronto entre ministros, Poderes e corporações envolvendo assuntos delicados como a Lei de Anistia e o conflito de atribuições entre a Polícia Federal e a Agência Brasileira de Inteligência.

Enquanto o cenário se agrava, as partes sobem o tom, constroem o impasse, o presidente silencia. Ou por outra: fala muito, mas não entra em nenhum desses assuntos a respeito dos quais se evidencia a necessidade da palavra de um árbitro.

O País não sabe o que pensa Lula sobre a hipótese de a Agência de Inteligência da Presidência da República entrar na Justiça contra uma “batida” da PF nos escritórios da Abin, muito menos tem idéia da opinião do presidente a respeito da barafunda explícita reinante no aparato de segurança. É resultado do descontrole administrativo ou fruto do excesso de controle político-partidário?

De vez em quando a assessoria presidencial divulga uma notícia aqui e ali dando conta da insatisfação de Lula: seja com o bate-boca geral, ou com a atuação de algum personagem específico.

O desagrado tanto pode se referir à ausência de perícia do ministro da Justiça no manejo da crise, quanto à abundância de posições discordantes sobre a punição de torturadores da ditadura; tanto faz, os “recados” do Palácio do Planalto são sempre vagos.

Como se ocorrências de governo pertencessem a uma dimensão diferente daquela onde atua o presidente da República.

Há boatos e reclamações a mancheias sobre a permanência de Tarso Genro à frente do Ministério da Justiça, mas o Planalto não confirma nem desmente, simplesmente ignora. Deixa o ministro exposto à chuva e não ajuíza uma solução.

Sobre a punição aos torturadores, consta que a idéia do presidente é deixar que o Supremo Tribunal Federal decida. Certo, mas seria perfeito se alguém informasse, então, o motivo do debate, considerando que exercícios dialéticos ficam bem na oposição.

Aos governos cabem atos concretos. Se o presidente Lula deixa prosperar o combate verbal, supõe-se que haja uma razão. Talvez queira mudar a Lei de Anistia, reabrir a discussão na sociedade, refazer o pacto firmado há 30 anos no início do processo de redemocratização.

Se não é esse, então qual é o objetivo? Mexer num vespeiro dessas proporções sem um plano seria uma atitude juvenil e voluntarista não partisse ela do poder público. Partindo, soa a irresponsabilidade institucional, acrescida de um toque involuntário de crueldade.

O tema fere sensibilidades, envolve vidas, revolve o passado, desperta esperanças, estimula sentimentos profundos, alimenta manifestações, mobiliza muita gente. Não é justo que, no fim, tudo caia no vazio, o rumo inexorável de questões postas em debate sem quê nem para quê.

Quando dirigente do PT, a omissão ante qualquer litígio mais pesado conferia a Lula a aura de divindade que, com ela, transitava acima das brigas de tendências.

No governo, a passividade majestática resulta em inércia, prima-irmã da falta de firmeza e ousadia para fazer acontecer o que for: a retomada da ordem na polícia, as reformas necessárias ao desenvolvimento de fato ou a adaptação, em termos claros, do contrato firmado entre sobreviventes de uma guerra aos tempos de paz democrática.

Pátrio poder

Ex-presidente da República, o senador José Sarney não crê em ações independentes de escalas hierárquicas no aparelho de Estado.

Não acreditou em 2002, quando a apreensão de uma pilha de dinheiro no escritório do genro Jorge Murad, pela Polícia Federal, acabou com a candidatura da filha Roseana à Presidência; não acreditou recentemente, quando veio a público que o outro filho Fernando Sarney é alvo de inquérito na Divisão de Repressão a Crimes Financeiros da PF.

Há seis anos, o então candidato oficial do governo Fernando Henrique, José Serra, ficou sem o apoio do pai irado.

Hoje, no que depender da ajuda do pai magoado, o candidato oficial do PT à presidência do Senado, Tião Viana, ficará sem o cargo, bem como o Palácio do Planalto não conseguirá apaziguar os ânimos da base governista na disputa.

A luta armada foi justa?

DEU NO BLOG PITACOS

O ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria dos Direitos Humanos, tem razão em um ponto. O termo “terrorista” foi usado e abusado pela ditadura, para qualificar todos os que se opuseram a ela, mesmo os que não pegaram em armas e optaram pela resistência democrática.

O Secretário dos Direitos Humanos erra, porém, ao tentar comparar a ação da esquerda militarista brasileira com a resistência armada dos maquis franceses contra a invasão nazista e com os partisans que combateram, de armas nas mãos, o fascismo de Mussolini.

Com esta comparação, o secretário mais do que justifica o apelo às armas feito por parte da esquerda brasileira, bem como todos os seus atos, porque eles ocorreram em função da causa nobre do combate ao “terrorismo de estado”, patrocinado pela ditadura.

Nestes termos, Carlos Marighella, Lamarca e tantos outros seriam tão heróis como o Jean Moulin, chefe da resistência francesa durante a ocupação nazista. Claro que não há como compará-los, assim como não dá para colocar no mesmo nível a luta armada ocorrida na França e na Itália durante a segunda guerra com o que aconteceu no Brasil, no período do regime militar.

Na Europa ocupada pelos nazistas – assim como na Itália dominada pelos fascistas – o único caminho que restou aos povos que lutavam pela sua liberdade foi o das armas. Havia um sentimento nacional por uma França Livre ou por uma Itália democrática.

É este sentimento que vai dar um caráter amplíssimo à resistência dos maquis e dos partisans. Dela participam diversas correntes políticas: democratas-cristãos, socialistas, comunistas e até mesmo forças situadas num espectro mais à direita, mas que eram contrárias ao nazismo e ao fascismo. Formaram-se amplas frentes, de união nacional.

No caso da França e da Itália, a resistência armada não se limitava apenas a ser expressão de um segmento radicalizado da classe média e tinha respaldo e apoio em todas as classes sociais, do operariado a setores da burguesia.

No Brasil da ditadura militar, a situação foi inteiramente distinta. Ao contrário do que enxergaram os agrupamentos esquerdistas, a luta armada não era a única forma possível de se fazer a resistência.

A luta armada provou ser a mais inapropriada e a mais desastrosa. Os grupos que a praticavam foram dizimados, sem exceção. A ditadura obteve argumentos para atacar as formações de esquerda que não trilharam o caminho das armas.

Ao final, a ditadura foi superada não pelo apelo às armas, mas pela resistência democrática e pela pressão das massas. O principal instrumento para isso foi o MDB, que os grupos militaristas ou esquerdistas entendiam como o partido do “sim senhor”, farinha do mesmo saco que a Arena.

A luta armada brasileira limitou-se a correntes de esquerda, sem expressão, grande parte delas de formação marxista, desprovidas de enraizamento social. Basicamente expressou a radicalização de uma parcela minoritária das camadas médias.

A resistência armada nem foi um movimento amplo, nem necessário. Descolado das massas, ele foi derrotado política e militarmente.

Se é simplismo considerar toda a prática da esquerda militarista como terrorismo, também não há porque deificá-la ou colocá-la no mesmo patamar da heróica resistência francesa e italiana, da época da segunda guerra.

Até hoje os remanescentes de nossa esquerda armada resistem a fazer uma autocrítica profunda. O PC do B, por exemplo, considera que o Araguaia foi o maior exemplo da justa resistência do povo brasileiro. Na mesma linha, os que participaram de seqüestro de embaixadores até hoje justificam estas ações sob o pretexto de que seu fim era nobre: libertar quem estava nas masmorras da ditadura ou sob torturas.

O acerto com a história exige não apenas a condenação da ditadura e da prática execrável da tortura. Mas também que a esquerda armada reconheça o quanto contribuiu negativamente em um dado período histórico do país.

No caso brasileiro, não há como considerar como justa a opção armada. O mínimo que se pode dizer dela é que foi uma tremenda estupidez.

Existe mais uma questão de fundo. A esquerda armada brasileira, em praticamente sua totalidade, não tinha objetivos democráticos. Sua meta era a instauração de uma sociedade tipo a cubana (ou a albanesa, no caso do PC do B), sob a égide do partido único. A proposta era a derrubada da ditadura militar e sua substituição por algum tipo de governo de transição que em seguida marchasse para a “ditadura do proletariado”.

Não dá, sob nenhum aspecto, para se comparar os objetivos e formas de luta da esquerda armada brasileira com a luta antinazista e antifascista dos combatentes franceses e italianos.

Perfil renovado


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

NOVA YORK. Talvez o melhor exemplo das mudanças que ocorreram na geografia política dos Estados Unidos, que levaram à vitória de Barack Obama na disputa presidencial, seja a votação que o primeiro presidente negro eleito teve em duas regiões de Michigan: Macomb County, no subúrbio de Detroit, e Oakland County, subúrbio de Birmingham. Essas duas regiões eram enclaves republicanos num estado tradicionalmente azul, por razões diversas. Em Macomb County, uma região predominantemente de operários brancos de classe média que trabalham na indústria automobilística, o voto democrata virou republicano a partir da primeira eleição de Ronald Reagan, em 1980, em protesto contra políticas democratas muito liberais, especialmente em relação aos afrodescendentes.

Em Macomb County, uma região predominantemente de operários brancos de classe média que trabalham na indústria automobilística, o voto democrata virou republicano a partir da primeira eleição de Ronald Reagan, em 1980, em protesto contra políticas democratas muito liberais, especialmente em relação aos afrodescendentes.

Em Oakland County, uma das regiões mais ricas do país, os eleitores sempre votaram nos republicanos. Conhecidos no jargão dos analistas políticos como "Reagan Democrats", podiam ser encontrados em outras regiões do país, e geralmente rejeitavam as políticas democratas em relação à imigração e à segurança nacional.

Foi o especialista em pesquisas eleitorais Stan Greenberg quem melhor estudou esse fenômeno, e ele ontem escreveu um artigo no "New York Times" falando sobre as mudanças ocorridas. Se, em Macomb County, o retorno dos votos para o Partido Democrata deu-se justamente por causa da atuação pessoal de Barack Obama, um negro que se fez percebido pela maioria dos eleitores daquela região como capaz de defender seus interesses, e não como um protetor apenas dos afrodescendentes, em Oakland County ocorreu um fenômeno registrado em outras regiões: a migração interna mudou o perfil eleitoral da região, com profissionais liberais mais tendentes a aceitar a diversidade cultural e racial.

O mesmo fenômeno ocorreu nos estados do Sul do país onde Obama venceu, como Virgínia e Carolina do Norte, que receberam nos últimos anos um influxo de habitantes mais prósperos e com maior nível de escolaridade.

O "New York Times" fez uma análise estatística dos votos que mostrou que, no Sul do país, que continua conservador, são os estados mais pobres, menos escolarizados e com predominância de eleitorado branco que mantêm a predominância republicana.

Em Virgínia, onde George Bush ganhou bem em 2004, Obama venceu por 53% a 46%, em um estado que desde 1964 não votava nos democratas em eleições presidenciais, em protesto contra a lei dos direitos civis iguais assinada por Lyndon Johnson.

Na Carolina do Norte, que não votava em um presidente democrata desde 1976, Obama venceu por 1 ponto. O atual presidente, George W. Bush, superou largamente o democrata John Kerry em 2004, porém os mais de 20% de negros do estado votaram maciçamente em Obama, e também os habitantes das áreas urbanas onde estão instalados pólos tecnológicos e os eleitores têm nível educacional mais elevado.

Ao mesmo tempo em que o candidato democrata Barack Obama se beneficiou de uma modernização de algumas regiões do país, ele também ganhou votos em regiões mais conservadoras, e isso é possível constatar pelo resultado dos mais de 150 referendos que foram realizados em 35 estados sobre temas tão variados quanto o casamento gay e permissão para fumar maconha.

Flórida e Califórnia, que elegeram Obama, proibiram o casamento gay, assim como estados mais conservadores como o Arizona, por onde McCain é senador, e o Arkansas, representante do Sul do país que renovou sua preferência histórica pelo Partido Republicano.

O mais curioso é que, nos estados em que os negros foram em grande número às urnas para ajudar a eleger Obama, eles também ajudaram a derrubar leis "progressistas" que permitiam o casamento gay. Segundo as pesquisas, os eleitores negros e hispânicos têm posição mais conservadora em matéria de costumes.

O próprio Obama, quando instado a dar sua posição sobre o casamento de homossexuais em um dos debates, embora tenha defendido os direitos civis dos homossexuais, expressou o mesmo ponto de vista do conservador McCain: casamento é entre homem e mulher.

Nas duas regiões de Michigan que foram objeto de estudo do analista de pesquisas Stanley B. Greenberg, também houve uma diferença de comportamento do eleitorado em torno do casamento gay, embora as duas regiões tenham dado a vitória a Obama.

Em Oakland County, os profissionais liberais estavam mais dispostos a votar a favor do casamento entre homossexuais do que os operários brancos de Macomb County.

A janela da infidelidade

EDITORIAL
DEU NO ESTADO DE MINAS

Seja qual for a decisão de hoje do STF, tudo pode ser anulado por uma trama no Congresso

O assunto merecia estar enterrado como uma das práticas menos recomendáveis da política brasileira. Mas a pauta de hoje do Supremo Tribunal Federal (STF) mostra que ainda não há limite para a ambição de certos políticos que, cada vez mais distantes de ideais e de programas partidários, já não guardam identificação com a antiga nobreza da política. O STF está sendo chamado a se pronunciar mais uma vez sobre a infidelidade partidária e tem pela frente duas ações diretas de inconstitucionalidade (Adins) que contestam a autoridade de do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para regulamentar, por meio de resoluções, a perda de cargos eletivos por políticos que mudaram de partido no ano passado sem justificar os motivos. As Adins estão sendo patrocinadas pela Procuradoria Geral da República (PGR) e pelo Partido Social Cristão (PSC), sob a alegação de que o TSE teria invadido competência privativa da União para legislar sobre o assunto.

É verdade que falta uma legislação mais clara e categórica sobre a matéria, que aponte em detalhes os casos em que será aceitável a troca de partido. Mas não parece ter tido o TSE a intenção de ocupar a função legislativa para atender a essa falta, até porque ela continua existindo. O que fez o tribunal, ao baixar as resoluções, foi cumprir a responsabilidade de dar conseqüência à memorável decisão tomada pelo Supremo em outubro de 2007, quando concluiu que o mandato pertence aos partidos e não ao eleito. Cabe, portanto, à legenda o direito de retomar os cargos eletivos que ocupavam os infiéis e indicar à Justiça suplentes para preenchê-los.

Tudo isso deveria seguir a lógica da transparência e da simplicidade, como sugere a decisão do STF. Mas não é o que acontece. Seja qual for a decisão que a Corte tomar hoje, o risco de se institucionalizar a traição ao eleitor é grande, a julgar pelo que está sendo tramado no Congresso Nacional. Andam defendendo a aprovação urgente de projeto que, com a desculpa de disciplinar essa matéria, anule a sábia decisão do STF. Pretendem a inclusão de um dispositivo que autoriza a troca de partido, sem qualquer punição, até sete ou 13 meses antes das eleições. São os que querem tão-somente estar mais perto das verbas e dos cargos que os plantonistas do poder manipulam para fortalecer suas bases de apoio. Às vésperas de uma campanha presidencial, não é difícil imaginar o balcão de negócios em que pode ser transformado o universo partidário, totalmente à revelia do eleitorado.


Bruxaria pró-fidelidade


Fernando Rodrigues
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - É difícil o desafio do Supremo Tribunal Federal hoje. Os 11 ministros devem votar à tarde se é constitucional ou não uma decisão do TSE a respeito de fidelidade partidária. Podem, ao mesmo tempo, fazer justiça e servir de combustível para mais uma traficância no Congresso.

Há mais de um ano, o TSE decidiu que o mandato de um político não pertence ao indivíduo, mas ao partido ao qual ele esteja filiado no momento da eleição. Trocou de partido, perdeu o mandato.


Acaba assim a troca indecente de partidos logo depois do pleito, muitas vezes até antes do dia da posse.

Há chances reais de o STF julgar correta essa determinação do TSE. Confirmada a lógica, do outro lado da Praça dos Três Poderes o efeito será equivalente ao de uma insubordinação. O Congresso fará uma feitiçaria aprovando uma lei para restaurar a lassidão sem fim nos limites da fidelidade partidária.

Deputados e senadores só vão sossegar depois de aprovar uma legislação criando o que é chamado, despudoradamente, de "janela de infidelidade". Com o interesse próprio em jogo, o índice de produtividade no Congresso se iguala ao dos trabalhadores de fábricas de bugigangas no interior da China.

Mas bruxaria se combate com bruxaria. O STF pode não fazer nada hoje. Adia-se o julgamento.

O Congresso se recolheria à sua habitual abulia. Não cassará infiéis nem alterará a lei. Essa gente só trabalha quando ameaçada. A decisão do TSE continuará a ser burlada, num país odiosamente acostumado a "leis que não pegam".

A mandinga poderia ser finalizada em 2010. Trata-se de ano eleitoral. As excelências estarão muito ocupadas com suas reeleições. O STF poderia então reiterar a decisão do TSE sobre fidelidade partidária. Os infiéis perderiam o mandato. Não haveria tempo para uma nova legislação. Justiça, enfim.

Uma agenda para os dois anos finais


Rosângela Bittar
DEU NO VALOR ECONÔMICO


O governo Lula não vai se intimidar com a crise econômica mundial a ponto de restringir sua ação, mas não sairá por aí fazendo de conta que ela não existe. Isto significa, segundo traduziu um ministro afinado com o plano que vem sendo discutido para estes dois anos finais de mandato, que o trabalho maior agora será a busca do equilíbrio entre a plataforma de realizações e as condições para realizá-las. O governo federal concentrará seus esforços administrativos para minimizar os efeitos da crise sobre o Brasil.

Três caminhos são apontados, nos debates que se sucedem internamente, para se chegar a estes bons termos, no final dos oito anos da gestão, atropelada apenas neste final pelos percalços financeiros que determinam o redimensionamento dos planos. O primeiro é garantir o crescimento, ainda que não nos níveis antes imaginados, mas que ainda podem ser previstos com muita densidade para os próximos dois anos.

O segundo é controlar a inflação, meta de que o governo não pretende se desgarrar mesmo com os abalos da crise. E o terceiro, melhorar a gestão dos programas sociais, para que fiquem totalmente consolidados e deles não haja possibilidade de recuo. Estes programas, como já ficou evidente nos ensaios para a campanha presidencial, compõem a plataforma eleitoral do candidato a sucessor a ser abençoado por Lula. No momento, a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff.

Embora mantidos os objetivos e metas, a estratégia do governo tem que ser diferente. Um exemplo da forma de lidar com os novos tempos é a gestão do programa de aceleração do crescimento (PAC). Vai além de 2010, mas nestes dois anos, próximos o governo adotará uma maneira diferente de tratar a questão do investimento.

Nos planos federais incluíam-se, para este final do segundo mandato, ambiciosas novas metas dos programas sociais, sobretudo na área da Educação, um outro exemplo considerado nas discussões. Imaginava-se, por exemplo, determinar a obrigatoriedade da gratuidade e universalização da educação, da pré-escola ao fim do ensino médio. No exemplo citado pela autoridade do governo, este é o tipo de projeto a sofrer ajuste por causa da crise.

O objetivo não se altera, mas é preciso dedicar mais tempo à gestão para que seja alcançada a meta. No ensino superior, outro exemplo, o governo Lula contabiliza haver incrementado o número de vagas nas universidades federais de 113 mil, em 2003, para 227 mil, em 2009. Como os recursos não dobraram, é necessário buscar outra estratégia. Como, por exemplo, aumentar o número de alunos por professores, ampliar a oferta de cursos em períodos alternativos, os noturnos, entre outras soluções. Significa, afinal, reconhecer as dificuldades, e ter convicção de que não será na conversa que o governo conseguirá realizar suas intenções.

Da mesma maneira que não dá para, só no discurso, dizer que a crise não atingiu e não atingirá o Brasil, e que tudo será como antes. Ainda que o presidente adote o falso otimismo, por temperamento e método, executivos do governo têm trabalhado com dados da realidade. "Vamos buscar uma sintonia mais fina para garantir resultados", disse o ministro com acesso à formulação das prioridades, para quem "as pessoas estão pensando o Brasil com a cabeça de seis meses atrás, e isto não está certo".

Sete anos na defesa

O senador Eduardo Suplicy (PT-SP) disputou prévias eleitorais com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, foi muito criticado à época e até hoje, quando a oportunidade se apresenta, defende-se e se explica por ter feito tal desafio ao líder que tinha capacidade eleitoral e consenso no PT, em todas as épocas. Suplicy contesta análise aqui publicada, na última quarta-feira, que discute o instrumento das prévias, instância eleitoral, cujo caráter democrático é incontestável, que tem levado os partidos à divisão irreparável, à perda das disputas, além de ainda não haver provado sua eficiência. Em síntese, diz o senador:

"No dia 17 de março de 2002, pela primeira vez um partido político convida todos os seus filiados - 172 mil compareceram - para as prévias. Lula teve 84,4% dos votos, eu tive 15,6%, mais do que alguns afirmavam que eu iria ter. No início de 2001, a Marta (Suplicy) me disse que estavam dizendo que seria um desastre político eu querer ser pré-candidato, não iria ter nem 5% dos votos, e que seria muito difícil para mim depois. Não foi o que aconteceu.

Naquele dia, com o resultado, eu disse ao presidente que, a partir de então, eu o estaria apoiando com toda a força, e assim o fiz. A ponto de, na Executiva Nacional, após a eleição vitoriosa, o Silvinho, que no partido cuidava das ações de campanha, definindo onde cada um deveria ir, me cumprimentou porque de todos os parlamentares fui quem mais viajou para onde a direção pedia. Eu conclamei a todos os que me apoiaram para votar no Lula. Não ocorreu o fenômeno que seu artigo menciona (o candidato perdedor cruzar os braços na campanha).

Se analisarmos um balanço mais completo das prévias, inclusive quanto ao episódio de que participei, disputando com o presidente, aquele foi um episódio positivo, ainda que possa ter havido pessoas no partido que tenham ficado desagradadas de eu ter me colocado -, "imagine, disputar com o presidente Lula".

E também, naquele episódio, aquelas frases do presidente ("vamos ficar falando mal um do outro?"), não se deram com respeito à prévia, mas à realização de debates. Ele me disse que, como pensamos igual, tínhamos o mesmo programa, não havia porque realizar debates. Eu disse a ele que eu estaria apenas, como fiz, sempre falando positivamente dele.

Rosângela Bittar é chefe da Redação, em Brasília. Escreve às quartas-feiras

Governar é voar no céu do mundo


Villas-Bôas Corrêa
DEU NO JORNAL DO BRASIL


Nunca a modesta sentença do presidente Lula, ao se autocondecorar com a afirmação categórica de que "agora eu conheço o mundo e o mundo me conhece" foi mais facilmente comprovada do que com impressionante estatística do seu recorde de horas de vôo e, isto quando ainda faltam dois anos e 48 dias para o fim do seu segundo mandato.

É um fantástico devorador de quilômetros nas asas do Aerolula e que promete inflar até a passagem da faixa presidencial para o seu sucessor ou a sucessora da sua atual preferência.

Até sábado próximo, quando deverá estar nos Estados Unidos, nosso presidente-voador completará a 21ª viagem por 25 paises. Para se saber ao certo por que terras e ares anda o presidente é necessário consultar a sua agenda.

Neste ano, Lula passou 62 dias no exterior. De volta dos Estados Unidos, dedicará alguns dias às viagens domésticas, antes do pulo a Venezuela, previsto para 28 de novembro.

O recorde de 2007 de meio milhar de horas de vôo em visitas a 29 paises durante 132 dias em que não foi visto no Palácio do Planalto pode ser batido neste tormentoso ano de crise internacional, a reclamar a sua atenção e os seus conselhos.

Com a média de duas viagens domésticas por semana e a popularidade nas alturas de mais de 60% de aprovação na média das pesquisas, o presidente não apenas pode continuar a cumprir a sua agenda de viagens, deixando a administração entregue à confiável ministra Dilma Rousseff, chefe do Gabinete Civil – a sua candidata na fase delicada do teste da viabilidade política.

A reunião de 20 ministros das finanças e representantes de bancos centrais no último fim de semana, em São Paulo, para acertar os ponteiros para o decisivo encontro dos líderes mundiais a partir de sábado próximo, em Washington, quando se espera o debate sobre a crise financeira global alimenta expectativas de esperança com as nuvens de apreensão.

Analistas econômicos de todo o mundo enfatizam a óbvia importância de um esforço das lideranças mundiais para a busca de saídas que aliviem as angústias, que são partilhadas pela população de todos os países.

Os emergentes, mais diretamente castigados com os cortes nos planos de desenvolvimento, anteciparam o recado que será a tônica das reivindicações na reunião na capital dos Estados Unidos.

A expectativa no nosso país é aquecida pela tensão crescente com a sucessão de Lula, que arranha a porta pedindo passagem. A crise chega com características diversas, no governo e na oposição.

Para o presidente, o desafio em doses duplas coloca a candidatura da ministra Dilma Rousseff no centro da fogueira. O clima mudou da noite para o dia. O que parecia resolvido de véspera, com grande antecedência, abre passagem para reclamar, com pressa, ainda sem a aflição da urgência, a firme liderança de Lula.

Nem o Partido dos Trabalhadores tenta tampar o sol com a peneira do despistamento. O PT submisso e acomodado dá mostra de impaciência, com a volta ao palco de candidaturas que renascem das cinzas.

A ministra Dilma terá a sua sorte decidida até meados do próximo ano. E é para já. Nenhuma pesquisa, do chorrilho que inundará este fim de ano para o dilúvio de 2009, deixará de incluir a candidata do presidente na lista dos presidenciáveis. E se ela não tiver fôlego para subir a escada e chegar aos dois dígitos, Lula e o PT enfrentarão o desafio de inventar outro candidato.

No caso, trata-se mesmo de inventar: o PT não tem outro nome para tapar o rombo. E a fragilidade do governo atiçará as ambições do outro lado oposicionista, que são muitas, com límpida vantagem, no momento, do governador de São Paulo, José Serra.

Pelo telefone


Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


O surpreendente choque entre a Polícia Federal e a Abin, com operações que parecem sair dos romances policiais, revela que a cooperação ilegal entre os dois órgãos era maior do que se supunha

Primeiro grande sucesso do samba, Pelo telefone é um marco inaugural da canção carnavalesca e da crítica musical graças ao comportamento da polícia. Tudo nesse samba é motivo de polêmica, a começar pela autoria, atribuída a Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos) e Mário de Almeida, que em 1916 assinaram a primeira gravação pela Odeon, em vinil, com 78 rotações, na voz de Baiano e acompanhamento da banda Odeon.

O samba

Segundo depoimento de Donga, Pelo telefone teria surgido de uma estrofe cantada por um sujeito conhecido como Didi da Gracinda. Modesto, Mário de Almeida, cronista carnavalesco cujo apelido era Peru dos Pés Frios, se dizia apenas o “arreglador” dos versos. Outros sambas foram gravados antes de Pelo telefone, mas a glória do registro na Biblioteca Nacional coube a Donga, que compõe a santíssima trindade da nossa música popular com Pixinguinha e João da Baiana. Todos freqüentaram a Casa da Tia Ciata, na Praça Onze. Ali havia uma famosa roda de samba, da qual participavam Sinhô, João da Mata, Mestre Germano e Caninha, que também reivindicaram a autoria de Pelo telefone numa polêmica que marcou época.

O samba recebeu diversas versões e se eternizou graças à bagunça na polícia, que parece um problema insolúvel. A versão mais famosa foi inspirada numa campanha do jornal A Noite, em 1913, quando o vespertino instalou uma roleta no Largo da Carioca, em frente à redação, iniciativa dos repórteres Castelar de Carvalho e Eustáquio Alves. É cantada até hoje: “O chefe da polícia / Pelo telefone / Manda me avisar / Que na Carioca / Tem uma roleta/ Para se jogar... / Ai, ai, ai / O chefe gosta da roleta, ó maninha / Ai, ai, ai”. E, depois, arremata: “O chefe da Folia / Pelo telefone manda me avisar / Que com alegria / Não se questione para se brincar / Ai, ai, ai / É deixar mágoas pra trás, ó rapaz / Ai, ai, ai / Fica triste se és capaz e verás”.


A bagunça

Pelo telefone me veio à cabeça por causa do furdúncio envolvendo a Polícia Federal e a Abin, mais grave do que o diversionismo da polêmica sobre a Lei da Anistia entre a Advocacia-Geral da União (AGU) e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que ameaça levar a confusão aos quartéis. Ministro da Justiça, Tarso Genro dita regra sobre todos os assuntos que envolve a sua pasta, mas nem sempre tem solução para os mesmos. Tenta apenas minimizar o que está acontecendo. Enquanto isso, a bagunça se generaliza. Ronda, inclusive, ao Judiciário, onde o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, e um magistrado de primeira instância da Justiça Federal, Fausto De Sanctis, se digladiam pela mídia.

Mestres do Direito e da Ciência Política ensinam que o governo é a forma mais concentrada de poder, mesmo quando há desgoverno. Afinal, o Estado exerce o papel de normatizar, arrecadar e coagir. Quando os governantes se omitem e relevam a hierarquia e a disciplina, sua inércia se encarrega de fazer com que a máquina estatal funcione sem direção, o que dá à burocracia características de “subgoverno”. Cada um faz o que quer, quando quer e como quer em sua alçada. Normatiza, arrecada ou coage, quando não junta uma coisa com a outra sob o manto da ilegalidade.

As disputas de poder na Polícia Federal já não se restringem aos interesses sindicais e corporativos. O surpreendente choque entre a Polícia Federal e a Abin, com operações que parecem sair dos romances policiais, revela que a cooperação ilegal entre os dois órgãos era maior do que se supunha. O jogo combinado entre delegados, promotores e juizes, no caso dos grampos e operações de busca e apreensão abusivos, também não começou com a Operação Satiagraha.

Na confusão, o diversionismo retórico do ministro Tarso Genro é preocupante. As trombadas do ministro da Justiça com as Forças Armadas, por mais que agradem a familiares de perseguidos pelo regime militar e movimentos de defesa dos direitos humanos, não são um bom caminho. De fato, há contradições que precisarão ser resolvidas, como é o caso da discussão sobre os arquivos dos órgãos de repressão do regime militar e a amplitude da Lei de Anistia para os agentes dos órgãos de segurança envolvidos com a tortura. A questão, porém, é saber se o governo Lula, às voltas com uma crise econômica mundial como há muito não se via, tem energia suficiente para administrar toda essa confusão e abrir novas frentes de batalhas. Duvido muito. É mais fácil a bagunça na PF e na Abin virar marchinha de carnaval.

Os três desafios de Obama


Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Foi a vitória da esperança. Mas não devemos nos enganar: é pouco provável que Obama venha a ser um bom líder para o mundo

A VITÓRIA de Barack Obama resgatou a democracia americana depois de 30 anos de exclusão interna e prepotência internacional. Dois grandes "setores" foram vitoriosos: dentro dos EUA, os pobres e os trabalhadores; fora, o mundo inteiro que, estigmatizado pela perspectiva imperial americana, apoiou o candidato democrata. Foi uma vitória extraordinária, que emocionou todos porque era a vitória da esperança. Entretanto, não devemos nos enganar: é pouco provável que Obama venha a ser um bom líder para o mundo.

São três os grandes desafios que enfrentará o novo presidente: reverter o aumento da desigualdade nos Estados Unidos; abandonar a atitude imperial de seu país em relação ao resto do mundo; e associar-se às demais nações na superação da grande crise financeira atual. No plano interno, embora em uma eleição majoritária o candidato precise limitar as definições ideológicas para conquistar o centro, creio que o governo Obama será, afinal, um governo progressista. Não só as posições que assumiu, mas, principalmente, os apoios apontam nessa direção.

Segundo a National Election Pool, Obama teve apoio de 88% dos progressistas, enquanto McCain tinha a seu favor 78% dos conservadores; o apoio de 95% dos negros e de 66% dos hispânicos, contra 55% dos brancos para McCain; de 66% dos jovens de 18 a 29 anos, enquanto McCain tinha 53% dos acima de 65 anos.

Os Estados Unidos são hoje uma sociedade atrasada: uma democracia liberal, enquanto os grandes principais países europeus já são democracias sociais. Ainda que, no exercício do poder, a influência da ordem estabelecida seja maior do que a dos eleitores, Obama terá suficiente legitimidade política para se manter fiel aos seus compromissos nessa área e reverter o aumento da desigualdade.

No plano da crise financeira internacional, tudo dependerá da autonomia do novo secretário do Tesouro em relação ao sistema financeiro e à ideologia neoliberal.

Se, de um lado, ele for capaz de fortalecer os grandes bancos em relação aos demais agentes do sistema financeiro e regulá-los muito mais cerradamente, e, de outro, não hesitar em defender os consumidores e mais amplamente a economia real, em vez de deixá-la ao sabor de um mercado pretensamente auto-regulado, poderá ser bem-sucedido. Terá ainda que enfrentar as pressões protecionistas, que não serão poucas.

Minhas expectativas, entretanto, são otimistas. O neoliberalismo e a teoria econômica ortodoxa ficaram desmoralizados com a crise financeira, abrindo espaço para políticas keynesianas pragmáticas. Já no plano das relações internacionais, não há indicação de que o nacionalismo norte-americano possa deixar de ser imperial. Em seu belo discurso da vitória, Obama falou inúmeras vezes em "nação", mas só uma em "paz", e lembrou que seu país enfrenta "duas guerras", ignorando que não são de defesa, mas de agressão.

Os americanos não compreenderam que, no início do século 21, não há mais espaço para um imperialismo do tipo que a Grã-Bretanha e a França exerciam no final do século 19.

O século 20 foi de grandes atrocidades, mas foi também o século em que: a) a democracia se tornou o regime político dominante no mundo; b) o colonialismo deixou de ser rentável e todas as colônias se tornaram Estados nacionais; c) a globalização comercial abriu todos os mercados; d) muitos países emergentes aproveitaram a oportunidade para crescer rapidamente e se tornaram concorrentes dos países ricos; e e) a criação das Nações Unidas significou um primeiro passo na direção da criação de um sistema político mundial. Todas essas mudanças fortaleceram o nacionalismo ao mesmo tempo em que deslegitimaram e inviabilizaram o imperialismo que, no fim do século 19, era ainda visto como uma forma "natural" de relação entre povos.

Os Estados Unidos, entretanto, ao se tornarem hegemônicos em 1945 e unipolares em 1989, não compreenderam que seu nacionalismo não podia ser imperial. Instituições que definam as regras do jogo competitivo e um líder político que contribua para sua definição são necessários, existindo, portanto, espaço para a liderança americana.

Mas o nacionalismo legítimo é democrático e liberal; é um nacionalismo que não pretende apontar um caminho único para o mundo, mas definir o espaço de um grande jogo em que todas as nações possam ganhar.

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 74, professor emérito da FGV-SP, é colunista do caderno Dinheiro . Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney).