domingo, 28 de dezembro de 2008

Neoclássicos versus keynesianos e a crise

Flávio Basilio
Valor Econômico (26/12/2008)

A evolução da Teoria Quantitativa da Moeda, particularmente a sua nova versão ancorada no arcabouço wickselliano, tem como conseqüência natural a proposição de que a poupança determina o investimento. Sob este referencial, o foco principal de análise é baseado na determinação dos preços, e não da renda nacional. O preço fundamental é aquele que garante o equilíbrio entre poupança e investimento, ou seja, a taxa de juros. Segue-se, portanto, que se o país cresce pouco é porque não tem poupança suficiente para estimular o investimento adicional requerido, e não tem poupança porque a taxa de juros é baixa, dando origem ao fenômeno da repressão financeira. Sob este aspecto, estratégias de redução dos gastos públicos são sempre bem vindas, mesmo em um cenário de crise, uma vez que aumenta a poupança do governo. Essa mesma teoria postula que se o país não tem poupança pública e privada suficientes para estimular o crescimento econômico, então o país deveria adotar uma estratégia de liberalização dos fluxos de capitais com o objetivo de captar poupança externa.

Do outro lado do flanco de batalha, Keynes, em sua obra magna "Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda", constrói o argumento de que a poupança, ao invés de constituir-se no pré-requisito do investimento, como propõe a economia neoclássica, é, na verdade, seu resultado. Essa mudança ocorre porque a variável central no pensamento keynesiano não são os preços e sim o produto real. Em uma economia monetária ou empresarial, a decisão de investir não depende da disponibilidade de produto não-consumido, mas de financiamento, isto é, acesso aos meios de pagamento. Para isso, o sistema financeiro, em particular os bancos, deve ser capaz de colocar nas mãos dos empresários os meios de compra necessários para que os investimentos sejam efetivados.

Dito isso, o que podemos esperar de proposições de política econômica por parte dos economistas em um cenário de crise? Os economistas neoclássicos, se forem coerentes com o referencial teórico que defendem, não terão o que falar sobre a crise financeira. Isso porque a crise não tem espaço no referencial neoclássico, uma vez que os mercados financeiros são sempre eficientes e garantem a perfeita alocação dos recursos. Sob esta lógica, se a crise financeira existe, ela só pode ser culpa do governo que interveio excessivamente na economia distorcendo o funcionamento adequado do mercado.

Infelizmente, esta afirmação não tem contraparte nos fatos. O que se evidenciou foi uma crescente liberalização dos mercados financeiros a partir da era Volker, bem como o aprofundamento da liberalização dos fluxos internacionais de capitais capitaneados pelo segundo Consenso de Washington. Curiosamente o resultado foi o aumento da fragilidade financeira das economias capitalistas. De qualquer sorte, dado que a crise financeira requer proposições de política econômica, a corrente neoclássica, obviamente, defenderá a necessidade de um forte ajuste fiscal por parte do governo com o objetivo de aumentar a poupança doméstica, liberando, dessa forma, recursos adicionais aos empresários. Acrescenta-se que a autoridade monetária deverá manter um austero controle da inflação. Para isso, é imperativo que o Banco Central mantenha a taxa básica de juros em 13,75%. Em primeiro lugar porque dessa forma, as expectativas de inflação convergem para a meta. Em segundo lugar, porque quanto maior a taxa de juros, maior será a poupança e, conseqüentemente, maior será o investimento. A corrente keynesiana, por sua vez, advogará que o governo, em um cenário de crise, deverá elevar os gastos de investimento com o objetivo de estimular a demanda agregada. Em especial, o governo deverá efetuar aportes significativos de capital, por intermédio do Tesouro Nacional, ao BNDES com o objetivo de restabelecer e fortalecer as linhas de crédito às empresas, em especial ao setor exportador, sob pena de no futuro próximo estarmos sujeitos a uma nova crise do balanço de pagamentos. Mais uma vez, o antagonismo de proposições de política econômica fica evidente. Os neoclássicos defendem a necessidade de crescimento com poupança externa, o que implica necessariamente déficit em transações correntes. Os keynesianos, por sua vez, defendem que o crescimento sustentável só é possível se o país adotar uma estratégia de crescimento puxado pelas exportações, a exemplo do que faz a China. Nesse momento, políticas sociais de redistribuição de renda também são bem vindas, na medida em que aumentam a eficácia de política fiscal por intermédio do aumento do multiplicador da demanda autônoma. Além disso é fundamental a redução de pelo menos 1 p.p na taxa básica de juros com vistas a reduzir o custo do capital, estimulando o crédito ao setor privado.

Em síntese, o governo brasileiro deve seguir o exemplo do primeiro ministro do Reino Unido e repudiar medidas heterodoxas neste momento. Deve adotar políticas coordenadas de estimulo fiscal e expansão monetária com vistas a garantir a solvência do setor privado - fragilizado pela excessiva apreciação cambial que conduziu as empresas a substituírem receita operacional por receita financeira a partir das operações de target foward - estimulando a demanda agregada e barateando o custo do capital.

Mais do que nunca, o governo tem que colocar o PAC para andar, para, pelo menos, manter o crescimento da economia. Além disso, verifica-se que os preços das commodities e, em especial o preço do petróleo, estão despencando no mercado internacional. A pressão inflacionária provocada pela elevação dos preços dos alimentos desapareceu. Os Estados Unidos já convivem com o fenômeno perverso da deflação.

Enquanto isso, a Europa e o Japão estão em recessão e a China começa a demitir trabalhadores. Com a queda do preço do petróleo a Petrobrás pode a qualquer momento reduzir o preço da gasolina, facilitando o controle da tão anunciada (sic) inflação de demanda por parte do Banco Central. Ora, em termos de balanceamento de riscos, o cenário aponta mais para recessão do que para aquecimento da economia. Não vejo nenhum economista apontando na direção desse último cenário! Conseqüentemente, não faz sentido o Banco Central manter uma política monetária restritiva para uma inflação que não acontecerá. Além disso, o governo deve se preparar para a anunciada crise do balanço de pagamentos. Para isso, deve desenhar um plano B que incorpore controle de capitais com vistas a evitar a escalada do dólar, tal como já foi defendido neste espaço por outros economistas keynesianos.

Flávio Basilio é economista, doutorando em economia pela Universidade de Brasília (UnB) e membro da Associação Keynesiana Brasileira.



Keynesianos vs. Neoclássicos na Crise

Tony Volpon
Economista filiado ao PPS


Muito bem vindo o artigo do Flavio Basílio da UnB no Valor de hoje: “Neoclássicos versus keynesianos e a crise”. Apesar do que eu considero alguns erros de representação, ele condensa bem as diferentes visões e recomendações sobre a crise atual, como os perigos, ao meu ver, de um certo pensamento que se diz keynesiano, e que esta “em alta” pela ido de Guido Mantega a Fazenda como as mudanças no IPEA que levaram muitos deles ao Instituto.

Sendo um texto “polemico” encontramos nele a mais usada, e abusada, estratégia retórica, a de simplificar a representação do seu “inimigo” para poder facilmente derrubá-lo. Veja como os tais “ são neoclássicos” retratados:

A evolução da Teoria Quantitativa da Moeda, particularmente a sua nova versão ancorada no arcabouço wickselliano, tem como conseqüência natural a proposição de que a poupança determina o investimento. Sob este referencial, o foco principal de análise é baseado na determinação dos preços, e não da renda nacional. O preço fundamental é aquele que garante o equilíbrio entre poupança e investimento, ou seja, a taxa de juros. Segue-se, portanto, que se o país cresce pouco é porque não tem poupança suficiente para estimular o investimento adicional requerido, e não tem poupança porque a taxa de juros é baixa.

Não é fácil determinar aqui sobre quem Flavio esta falando. Quando fala sobre a “nova versão” da teoria wickselliana, me faz pensar imediatamente da teoria monetária nova-keynesiana que, se inspirando em Wicksell, abandonou a abordagem centrada na quantidade/oferta de dinheiro e passou a analisar o nível de juros diretamente como determinante da inflação. Essa é hoje a abordagem “padrão”, inclusive no desenho do sistema de metas de inflação, e tem no livro-texto de Woodford (“Interest and Prices” : Foundations of a Theory of Monetary Policy”) sua mais conhecida representação.

Se fosse isso tudo bem, mas não consigo ver o que a teoria monetária nova-keynesiana tem a ver com a afirmação, um tanto (e talvez propositalmente por estratégia retórica) contraditória que para a economia crescer, tem que AUMENTAR a taxa de juros. Lendo esse texto, com usa ligação entre crescimento e taxa de juros, me lembrei também dos modelos canônicos de crescimento econômico de Solow, Ramsey, Koopmans, onde a acumulação de capital acontece se a produtividade marginal do capital esta acima do parâmetro de preferência intertemporal dos agentes, o que pode ser “interpretado” como dizendo que haverá crescimento e investimentos líquidos se o retorno sobre investimento for maior que a taxa de juros vigente, mas ambem não me parece que seja isso que Flavio esta representando.

Agora vamos ao que supostamente representaria o pensamento de Keynes:

Do outro lado do flanco de batalha, Keynes, em sua obra magna "Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda", constrói o argumento de que a poupança, ao invés de constituir-se no pré-requisito do investimento, como propõe a economia neoclássica, é, na verdade, seu resultado. Essa mudança ocorre porque a variável central no pensamento keynesiano não são os preços e sim o produto real. Em uma economia monetária ou empresarial, a decisão de investir não depende da disponibilidade de produto não-consumido, mas de financiamento, isto é, acesso aos meios de pagamento.

Digo “supostamente” porque lembro o que meu professor de Teoria Macroeconômica em Mcgill, A. Asimakopulos, ele mesmo estudante da Joan Robinson, me confidenciou, tem um pensamento econômico completo em quase cada capitulo da Teoria Geral. Mas o que dizer sobre essa afirmação?

Vemos nela o que eu acho o maior perigo desssa linha de pensamento "keynesiano". Para simplificar, ela postula que o investimento gera sua própria poupanca. Ora, assim sendo o problema sempre se resume a falta de investimentos. Não aprece existir aqui nenhuma restrição, seja de recursos disponíveis ou no âmbito externo.

A verdade é que enquanto tal idéia foi de fato articulada por Keynes, ela só representa uma verdade em uma economia já em condições depressivas, com muitos recursos sem uso. Ai sim podemos falar de ineficiência de demanda e investimento. Ai sim “financiamento” mais do que poupança é a variável chave. Tentar generalizar esse caso para qualquer outra situação é tanto perigoso como uma muito errada leitura de Keynes, como veremos abaixo.

Qual entao seria as solucoes para atual crise vindo desses paradigmas opostos?
No caso dos neoclássicos:

Os economistas neoclássicos, se forem coerentes com o referencial teórico que defendem, não terão o que falar sobre a crise financeira. Isso porque a crise não tem espaço no referencial neoclássico, uma vez que os mercados financeiros são sempre eficientes e garantem a perfeita alocação dos recursos

De novo, quem são esses crentes puro na eficiência dos mercados? O que aconteceu com toda a literatura nova-keynesiana sobre assimetria de informação nos mercados de trabalho, ou sobre estrutura de mercados não perfeitamente competitivos? De novo, é meio difícil dizer quem é esses neoclássicos...

Ai lemos isso tambem:

De qualquer sorte, dado que a crise financeira requer proposições de política econômica, a corrente neoclássica, obviamente, defenderá a necessidade de um forte ajuste fiscal por parte do governo com o objetivo de aumentar a poupança doméstica, liberando, dessa forma, recursos adicionais aos empresários. Acrescenta-se que a autoridade monetária deverá manter um austero controle da inflação. Para isso, é imperativo que o Banco Central mantenha a taxa básica de juros em 13,75%. Em primeiro lugar porque dessa forma, as expectativas de inflação convergem para a meta. Em segundo lugar, porque quanto maior a taxa de juros, maior será a poupança e, conseqüentemente, maior será o investimento

Aqui Flavio confunde duas coisas. Uma é a, ao meu ver correto, reconhecimento que nessa crise temos uma queda do produto potencial pela imposição exógena de restrições a renda e financiamento externo. Sendo assim, uma recomposição da demanda interna para privilegiar investimentos seria benéfico, o que implica cortar o consumo do setor publico onde possível. Isso tudo não tem nada a ver diretamente com a questão das metas de inflação, e absolutamente nada com a idéia que maior os juros, maior a poupança e então os investimentos.

Qual seria a proposta keynesiana?

A corrente keynesiana, por sua vez, advogará que o governo, em um cenário de crise, deverá elevar os gastos de investimento com o objetivo de estimular a demanda agregada. Em especial, o governo deverá efetuar aportes significativos de capital, por intermédio do Tesouro Nacional, ao BNDES com o objetivo de restabelecer e fortalecer as linhas de crédito às empresas, em especial ao setor exportador, sob pena de no futuro próximo estarmos sujeitos a uma nova crise do balanço de pagamentos

Como de praxe, parece que a resposta a tudo é maiores gastos públicos. (queria ver uma vez alguém dessa escola defender corte de gastos públicos em alguma situação!...) De novo, devemos perguntar: A economia brasileira esta em depressão? Com as expectativas do governo sendo um crescimento de 4% ao ano, precisamos adotar políticas feitas para economias em forte recessão?

O que fica totalmente fora de qualquer articulação aqui é a questão externa, ou quase. A queda na demanda e nos preços das importações brasileiras merece a seguinte analise:

Além disso, verifica-se que os preços das commodities e, em especial o preço do petróleo, estão despencando no mercado internacional....Além disso, o governo deve se preparar para a anunciada crise do balanço de pagamentos. Para isso, deve desenhar um plano B que incorpore controle de capitais com vistas a evitar a escalada do dólar, tal como já foi defendido neste espaço por outros economistas keynesianos.

Não fica claro no texto porque vamos ter tal crise, mas contra qualquer idéia que devemos trabalhar para ter uma política econômica que torna os equilíbrios internos e externos compatíveis, vemos a velha afirmação que basta tacar controle de capitais para resolver o problema.

Infelizmente vemos nesse oportuno texto dois vícios da escola pós-keynesiana brasileira.

Primeira, a presunção que o que vale em uma economia recessiva, vale o tempo todo, o que leva a estes sempre advogarem a mesma coisa: aumento dos gastos públicos. Segundo, a também usual afirmação que basta tascar “controle de capitais” sobre a economia para resolver qualquer problema de restrição externa. Gostaria de convidar qualquer um desses economistas a apresentar tal programa de “controle” detalhado para passar por uma boa analise. Veríamos rapidamente que este ou não funcionaria, ou teria efeitos colaterais extremamente nocivos se fosse grande e forte o suficiente para realmente “resolver” a restrição externa.

Concluo que não é por ai. Não temos dos nossos keynesianos, e esse texto é de fato uma boa e completa exposição desse pensamento, um diagnostico correto da crise atual ou um programa para enfrentá-lo.

Gol contra

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Retrospectivas de 2008 e previsões para 2009, a virada do ano impõe poucas opções e um dilema injusto. Esmagado entre o passado e o futuro, nunca sobra lugar para o presente, o hoje não tem vez. A realidade vai para debaixo do tapete embora seja nela que vivemos, nela está a verdade concreta. Irretocável.

Nas vésperas deste Natal fomos brindados com cenas pitorescas - como a do presidente da República vestido de Papai Noel no papel de promotor de vendas - bem como situações inéditas, inauditas e insólitas na mais alta câmara legislativa.

O mais dramático episódio foi o ultimato do governo federal à empresa de transporte aéreo Gol, detentora da antiga estrela da nossa aviação, a Varig. Apesar da operação "Feliz 2009", anunciada com o estrépito habitual para evitar o caos aéreo do ano passado, os últimos dias foram desastrosos: índices de atraso inaceitáveis, número inadmissível de cancelamentos, menosprezo e até mesmo violência contra o cidadão que ingenuamente comprou sua passagem certo de que em troca receberia um serviço decente.

A advertência do governo não impediu que, na quinta, feriado do Natal, e nesta sexta, obrigatoriamente tranqüila, a empresa continuasse a oferecer um atendimento precário nas duas frotas que administra. Isso não significa que a principal concorrente, a TAM, possa ser apontada como modelo de respeito e responsabilidade.

O duopólio que domina a aviação comercial brasileira é visivelmente insuficiente no seu conjunto sendo que o pólo que abocanhou o segmento maior e mais popular da sociedade é o mais deficiente. Esta é uma situação que não se resolverá com reuniões de emergência no meio de um feriadão, muito menos com ultimatos que, sabemos, jamais serão levados às últimas conseqüências. Na questão da aviação comercial o governo está completamente desmoralizado, e isto desde meados de 2006 quando a Varig corria o risco de falência com um passivo de sete bilhões de reais.

E o que fez o governo federal, teoricamente intervencionista, intransigente adepto da atuação do Estado? Entregou a Varig a um grupo empresarialmente bem sucedido é verdade, mas desprovido da necessária credibilidade para atuar num setor de ponta.

A economia mundial estava aquecida, o crédito era abundante, o País atravessava uma fase de prosperidade, o brasileiro aprendia a voar e estava gostando. No lugar de uma rigorosa intervenção estatal na Varig para saneá-la e, em seguida, devolvê-la ao mercado - como agora virou rotina no sistema capitalista global - expoentes do governo como a chefe da Casa Civil, Dilma Roussef, e o então ministro da Defesa, Waldir Pires (veementes defensores da idéia de um Estado ativo e afirmativo) preferiram a solução privatista, imprevisível e imponderável.

O grupo Gol/Varig não corre o risco de quebrar sob o ponto de vista econômico ou contábil. Mas está quebrado em matéria de confiabilidade, não merece fé, envolto em suspeição como prestadora de um serviço público estratégico. Comprometeu-se publicamente a manter a marca e a empresa Varig, mas os balcões de check-in da empresa estão esmagados pela multidão de clientes mal-servidos nos balcões vizinhos, da Gol. Acontece que as tarifas da Varig são bem mais caras. Nos aviões da Varig apenas as comissárias de bordo pertencem à empresa, a tripulação de cabine é da Gol. A aviação comercial brasileira está sendo nivelada por baixo, razão pela qual a TAM deixou de investir em qualidade. Tem a certeza de que o concorrente oferecerá sempre um serviço pior.

Este é um dado transcendental que os estrategistas do governo deveriam levar em conta. Sobretudo porque o inominável atendimento ao público é a face visível da trágica capitulação de um Estado que não confia na sua capacidade de disciplinar e sanear o mercado.

O caos aéreo é uma ameaça presente, recorrente, permanente. Depois das festas continuará ao longo das férias de verão e reaparecerá intacto no Carnaval. Começou num passado recente e dificilmente será resolvido no futuro próximo.

» Alberto Dines é jornalista

A economia Madoff

Paul Krugman
Tradução: Régis Machado e Mauricio Tonetto
New York Times News Service
DEU NO ZERO HORA (RS)

A revelação de que Bernard Madoff brilhante investidor (ou, pelo menos, era o que quase todo mundo achava), filantropo e figura conhecida da comunidade era um impostor surpreendeu o mundo, e de forma compreensível. A dimensão do seu suposto esquema Ponzi de US$ 50 bilhões é que é difícil de compreender. Certamente, não sou a única pessoa a fazer essa pergunta óbvia: qual a diferença, na verdade, entre a mentira de Madoff e a história da indústria de investimentos como um todo?

A indústria de serviços financeiros reivindica participação na sempre crescente receita da nação ao longo das gerações passadas, tornando as pessoas que administram a indústria incrivelmente ricas. Neste ponto, parece que boa parte da indústria tem destruído valores, e não criado. E não é apenas uma questão de dinheiro: a vasta riqueza alcançada por aqueles que gerenciam o dinheiro de outras pessoas gerou um estímulo à corrupção em nossa sociedade como um todo.

Vamos começar com os salários. Ano passado, a média de salários daqueles que trabalhavam com “títulos, contratos de commodities e investimentos” era mais do que quatro vezes a média de salários do resto da economia. Ganhar US$ 1 milhão não era nada especial, e mesmo rendimentos de US$ 20 milhões ou mais eram razoavelmente comuns. Os rendimentos dos americanos mais ricos estouraram ao longo da última geração, mesmo salários de trabalhadores ordinários estagnaram, e os altos salários em Wall Street se tornaram a causa principal do problema.

Mas, com certeza, aqueles superstars financeiros devem ter ganhado seus milhões, certo? Não, não necessariamente. A abundância do sistema de pagamento em Wall Street recompensa a aparência de prosperidade, mesmo que mais tarde esta aparência se revele uma ilusão. Considerando um exemplo hipotético de um corretor que alavanca o dinheiro de seu cliente assumindo muitas dívidas, então investe em alta produtividade e ativos arriscados, tais como títulos de hipotecas. Por enquanto – diz, já que a euforia continua a inflar – ele fará grandes rendimentos e receberá grandes porcentagens. Quando a euforia estourar e seus investimentos se transformarem em resíduo tóxico, seus investidores perderão muito – mas ele irá manter seus bônus.

OK, depois de tudo, talvez meu exemplo não seja hipotético.

Então, qual a diferença do que fez Wall Street a partir do caso de Madoff? Bem, Madoff supostamente pulou algumas etapas, simplesmente roubando o dinheiro de seus clientes em vez de recolher os honorários, enquanto expunha investidores a riscos que eles não compreendiam. E, enquanto Madoff estava aparentemente auto-consciente da fraude, muitas pessoas em Wall Street acreditavam em suas próprias mentiras. E ainda, o resultado final foi o mesmo (exceto pela prisão domiciliar): os corretores ficaram ricos, os investidores viram seu dinheiro desaparecer.

Estamos falando de muito dinheiro. Em anos recentes, o setor financeiro contou com 8% do Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos, acima dos menos de 5% da geração anterior. Se esse extra de três pontos percentuais foi dinheiro por nada – e isso provavelmente foi – estamos falando de US$ 400 bilhões por ano em desperdícios, fraudes e abusos.

Mas os custos da era Ponzi dos Estados Unidos foram além do desperdício direto de dólares e centavos. Nos níveis mais crus, os rendimentos ilícitos adquiridos em Wall Street corromperam e continuam corrompendo políticos, de forma bipartidária. Da administração de Bush com oficiais como Christopher Cox, presidente da Securities and Exchange Commission, que procurou outro caminho como evidência do esquema de fraude financeira, a democratas que ainda não fecharam a lacuna escandalosa de taxas que beneficiam executivos em fundos de investimentos e empresas privadas de equity, os políticos sempre vão onde está o dinheiro.

Entretanto, até que ponto o futuro da nossa nação tem sido prejudicado pelo impulso magnético ao rápido enriquecimento pessoal, que há anos tem atraído muitos dos nossos melhores e mais brilhantes jovens aos bancos de investimento, em detrimento da ciência, serviço público e sobre todo o resto?

Acima de tudo, a vasta riqueza que eles têm conquistado – ou talvez que eles deveriam ter “conquistado” – em nossa inchada indústria financeira minaram nosso senso de realidade e degradaram nossas análises. Pense como quase todo mundo importante ignorou os sinais de aviso de uma crise iminente. Como isto foi possível? Como, por exemplo, pode Alan Greenspan ter declarado, apenas há alguns anos, que “o sistema financeiro como um todo tornou-se mais resistente”, graças aos instrumentos derivados, e nada mais? A resposta, eu creio, é que há uma tendência inata por parte da mesma elite que idolatra os homens que estão fazendo um monte de dinheiro, a pensar que eles sabem o que estão fazendo.

Depois de tudo, é por isso que muitas pessoas confiavam em Madoff. Agora, quando analisamos os restos da crise e tentamos entender como as coisas podem ter ido tão mal, e rápido, a resposta é realmente muito simples: o que nós estamos olhando agora são as conseqüências de um mundo sem Madoff.

Bloco

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE
Os presidentes do PSDB, senador Sérgio Guerra (PE), do DEM, deputado Rodrigo Maia (RJ), e do PPS, Roberto Freire, preparam um grande encontro das três legendas para fevereiro, quando pretendem lançar o bloco democrático e progressista. As estrelas do encontro serão os governadores de São Paulo, José Serra, e de Minas, Aécio Neves. A idéia é discutir uma agenda comum para 2010.

Por falar em 1968

Ferreira Gullar
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / ILUSTRADA

Quando ocorreu o golpe militar de 1964, em matéria de política, eu era um energúmeno

SEM PRETENDER passar por dono da verdade, aproveito para contar coisas de que fui testemunha e até mesmo coadjuvante nos idos de 1968, de que tanto se fala agora.

Quando ocorreu o golpe militar de 1964, eu, em matéria de política, era um energúmeno, embora fosse presidente do CPC da UNE. Antes disso, integrara o Conselho Nacional das Ligas Camponesas, que não aconselhava nada e, quando tentou fazê-lo, foi desautorizado e dissolveu-se. Desapontado, fui procurado por Giocondo Dias, então secretário geral do PCB, para uma conversa que me fez ver as coisas políticas de uma nova maneira. Não entrei para o partido, mas entendi que, na revolução como na vida, apressado come cru.

O CPC contava com a assistência política do PCB, mas nem por isso deixou de cometer erros, como o de baixar a qualidade artística do que fazia, achando que assim atingiria o povão para "conscientizá-lo". Ao fazer arte ruim para poucos, errava duas vezes, na estética e na política. Quando nos demos conta disso, já era tarde: o golpe militar desabou sobre nossa cabeça.

O CPC virou Grupo Opinião e esse tipo de erro não se cometeu mais. Num contexto adverso, procuramos fazer o melhor teatro político que podíamos e, ao mesmo tempo, mobilizar a intelectualidade na luta contra a ditadura.

Ao contrário dos mais sôfregos, que escolheram o caminho da luta armada, nós acreditávamos que só o povo unido derrotaria o regime totalitário. E isso explica nossa participação em alguns episódios que marcaram aqueles anos difíceis.

Um exemplo: quando surgiu a idéia de protestar contra o regime militar em frente ao hotel Glória, onde se realizava um encontro de governantes latino-americanos, preferimos não participar. Não obstante, colaboramos na manifestação, fornecendo as faixas que foram exibidas na ocasião. Como organizadores da resistência intelectual, evitávamos aparecer.

Essa mesma cautela adotamos por ocasião da morte do estudante Edson Luiz.

Seu corpo foi levado para a Câmara de Vereadores e, enquanto as pessoas compareciam ali para solidarizar-se, líderes estudantis e intelectuais discutiam que vantagem política tirar daquela tragédia. Os líderes estudantis propunham irmos para a rua denunciar a polícia e a ditadura. Discordamos.O certo seria convocar o povo do Rio para o enterro do estudante, já que ninguém pode proibir um enterro. Argumentamos que, assim, muita gente teria coragem de aderir, já que a maioria não estava disposta a enfrentar cassetete e gás lacrimogênio. Foi a opinião que prevaleceu e o enterro se transformou numa denúncia massiva contra o regime militar.

Não foi outra nossa atitude, quando se discutia de que modo reagir aos abusos policiais, quando o comando da PM lançara uma nota ameaçando a população.

Disso resultaria a Passeata dos 100 Mil.

As lideranças antiditadura estavam reunidas no apartamento do advogado Sinval Palmeira e as propostas eram as mesmas de sempre: desafiar a polícia nas ruas.

Mais uma vez, nosso grupo ponderou que o caminho certo era tentar arregimentar as pessoas e organizações sociais que se opunham ao governo militar.

Propusemos convocar a intelectualidade para cobrar do governador Negrão de Lima os compromissos que assumira quando candidato. Em seguida, deveríamos nos reunir em um teatro e armar ali "uma barraca de protesto". A proposta foi aceita pela maioria e, no dia seguinte, o salão do palácio Guanabara estava ocupado por intelectuais e artistas de grande prestígio, que até então não haviam se manifestado contra o regime. O governador teve de prometer que conteria a violência policial. De lá fomos para o teatro Gláucio Gil, em Copacabana, para mobilizar a opinião pública e ganhar o apoio dos setores organizados da sociedade.

Enquanto discutíamos ali, o partido articulava o apoio da Associação de Mães, de sindicatos e da Igreja Católica. Conseguido isso, foi-se ao governador, que concordou em não reprimir a passeata que se pretendia realizar. Quando o resultado dessas articulações foi anunciado aos que ocupavam o teatro, a liderança estudantil negou-se a obedecer o acordo feito com o governador.

Mas conseguimos dobrá-la e a passeata se realizou com o êxito que se conhece.

Não obstante, durante a manifestação, eles insistiam gritando que "só o povo armado derruba a ditadura" e nós respondíamos afirmando: "O povo unido jamais será vencido". E, assim, depois que a luta armada foi derrotada e o povo deixou de votar nulo, a ditadura começou a fazer água e afundou.

A lógica que regerá 2009

Yoshiaki Nakano
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


A contração econômica reduz os preços de bens, serviços e ativos; prevalece a lógica da deflação

O ANO DE 2008 deverá ficar registrado na história com o início de uma grande contração econômica que ainda não sabemos quando irá terminar.

Sabemos que a grande bolha imobiliária nos Estados Unidos estourou em 2006, o que desencadeou a crise do "subprime" e que esta vem causando, desde meados de 2007, uma crise financeira global e em 2008 uma recessão econômica global. Centenas de trilhões de dólares de ativos financeiros, que foram criados durante a fase de longa expansão da economia global, geravam excesso de liquidez e sustentavam uma inflação de preços de ativos financeiros e bolhas especulativas, simplesmente "evaporaram" neste ano.

O que acontecerá em 2009? Qual a lógica econômica e financeira que regerá o primeiro ano pós-estouro das grandes bolhas e colapso global dos preços de ativos financeiros das economias dos Estados Unidos e dos países desenvolvidos?

Obviamente o ciclo econômico e financeiro já se inverteu. Com isso, a lógica da expansão econômica será substituída pela lógica da contração econômica.

Na expansão, as expectativas de elevados retornos dos investimentos produtivos estimulam o sistema financeiro a gerar ativos financeiros, dando-lhes liquidez imediata para a produção futura, e criam um ambiente de crédito barato, que estimula novos investimentos e assim por adiante. Nessa fase, os agentes econômicos expandem seus gastos sustentados pelo crédito e aumento do valor da riqueza financeira.

Quando o ciclo se reverte, a contração econômica reduz os preços de bens, serviços e ativos. Prevalece a lógica da deflação. Na deflação há grandes perdas patrimoniais. Tanto as famílias como as empresas são obrigadas a pagarem suas dívidas para não irem à falência. E a contração econômica será tão mais profunda e prolongada quanto mais exagerada for a geração de crédito e inflação de ativos.

A demanda agregada que sustenta o nível de atividade depende da renda gerada pelo emprego, mas, durante a contração, é preciso poupar, subtraindo do consumo para pagar as dívidas. As famílias norte-americanas, que não só deixaram de poupar como se endividaram para consumir mais e sustentaram uma grande expansão econômica até 2007, agora, subitamente, desde meados de 2007 até o final deste ano, tiveram perda patrimonial estimada em mais de US$ 5 trilhões.

Além disso, os economistas estimam que a taxa de poupança deverá chegar a 4% a 5% do PIB.Mesmo que não haja deflação de preços de bens e serviços, o colapso nos preços dos ativos financeiros -a deflação de ativos- muda totalmente a lógica da ação econômica das empresas e dos bancos, que têm agora também de reduzirem, a qualquer custo, as suas dívidas e recomporem os seus patrimônios para evitarem a falência.

Neste quadro, a política monetária deixa de ter efeitos e, mesmo reduzindo a taxa de juros para zero, nem as famílias nem as empresas têm estímulo para se endividarem, consumirem ou investirem.

No desespero, os bancos centrais reduzem a taxa de juros. Nos Estados Unidos, o Fed já reduziu para 0% a 0,25%, mas a economia não responde, pois ninguém está disposto a se endividar e investir. No máximo, substituem empréstimos com juros mais altos por mais baixos. É por isso que, mesmo com juros negativos, o mercado de títulos de empresas também paralisa.

YOSHIAKI NAKANO, 62, diretor da Escola de Economia de São Paulo, da FGV (Fundação Getulio Vargas), foi secretário da Fazenda do Estado de São Paulo no governo Mario Covas (1995-2001).

Adeus ano velho - e o novo?

Suely Caldas
DEU EM O ESTADO DE S. PÁULO

Os brasileiros entram em 2009 com incerteza e apreensão, por desconhecerem o que os espera, a extensão dos estragos do desaquecimento econômico, quanto tempo vai durar a crise e com dúvidas quanto ao futuro: há chances de voltar à prosperidade vivida em 2008? Se não em 2009, quando? Na onda de um otimismo artificial e falso do subprime, um capítulo à parte para a Bovespa, que iniciou 2008 com 60 mil pontos, disparou como raio a 73 mil pontos no final de maio e acabou o ano murcha, aos 36 mil pontos. As empresas se animaram, multiplicaram capital, perderam mais do que ganharam em patrimônio e hoje têm a realista sensação de que os 73 mil pontos não voltam tão cedo.

As previsões para a economia em 2009 divergem. Ninguém espera recessão, mas também não há nenhuma certeza de que o esfriamento econômico será morno ou gelado. O mercado financeiro fala em avanço de 2,6%, o Banco Central, em 3,2%, mas sem convicção, e o presidente Lula, em 4%, sem acreditar no que diz (“é apenas uma meta”). Ninguém sabe ao certo. É possível que uma recuperação no segundo semestre compense as perdas do primeiro e o ano termine com um crescimento surpreendente. Da mesma forma, é possível que a crise se estenda ao longo do ano e o resultado seja um desastre.

Por mais que o governo tente minimizar aqui os efeitos da crise, as variáveis econômicas estão fora do Brasil: se nos EUA, na Europa e no Japão a crise ultrapassar 2009 e se estender por 2010, o efeito do prolongamento será crescentemente árduo nos países emergentes. E se a China desacelerar mais do que o esperado, muito pior. Hoje o mundo é interligado, o Muro de Berlim ruiu, a Muralha da China não passa de uma atração turística e não é mais possível viver protegido em redomas.

O certo é que os brasileiros vão sentir saudades de 2008. A despedida alegre e saudável do ano se deu no final de setembro, início de outubro, com a economia crescendo a quase 7%, a arrecadação tributária batendo sucessivos recordes e os empregos com carteira assinada chegando a quase 2 milhões. Até aí só boas notícias, com destaque para duas:

Com a classificação do grau de investimento, o risco Brasil caiu para 176 pontos no início de junho e os cofres do mundo se abriram para as empresas brasileiras (hoje ninguém mais lembra disso, o risco Brasil saltou para 677 pontos no final de outubro, hoje anda pela casa dos 450 pontos e nem a Petrobrás consegue crédito externo);

O valor e o potencial das reservas de petróleo do pré-sal foram mais bem definidos, a expectativa de geração de riqueza crescia com o petróleo a quase US$ 150 o barril, criando disputa dentro e fora do governo pela apropriação do dinheiro das reservas (hoje a disputa arrefeceu, o governo aposentou a idéia de criar outra estatal para o pré-sal, o barril do petróleo desabou para menos de US$ 40, há dúvidas quanto à lucratividade de exploração e investimentos foram adiados).

Em 2008 o governo agiu como se o paraíso da prosperidade fosse eterno e fez o que o presidente Lula aconselha os brasileiros a fazer hoje: gastou. E gastou mal, comprometendo dinheiro com despesas fixas e permanentes, que não podem ser removidas nem cortadas em épocas de vacas magras, como agora. Contratou mais de 100 mil novos funcionários, inflacionou a folha de pagamentos, nada fez para reduzir o enorme déficit da Previdência, que vai crescer com o desemprego, e fez gastos dispensáveis, como a compra da França de 5 submarinos e 50 helicópteros de uso militar, numa operação fora de hora, que poderia muito bem ter sido adiada neste momento de queda da arrecadação e abalo nas finanças públicas. Serão construídos no Brasil e vão gerar empregos, argumenta o governo. Mas empregos podem ser criados com investimentos em infra-estrutura, estes, sim, indispensáveis para impulsionar o crescimento econômico.

Os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo precisam encarar a crise como todos os brasileiros: com realismo, cortando despesas adiáveis, poupando e não comprometendo dinheiro público com gastos supérfluos e dispensáveis. É importante que assumam esse compromisso com o País, porque em 2010 há eleição para presidente, governadores, deputados e senadores, evento que leva os políticos a desperdiçar verbas públicas em obras inúteis e eleitoreiras, contratar pessoal para trabalhar nas eleições, desviar recursos para eleger aliados e contrair dívidas e prometer pagá-las depois de eleitos. Eles precisam, enfim, acordar para a crise.

*Suely Caldas, jornalista, é professora de Comunicação da PUC-Rio

Nas trilhas da revolução

Mauricio Font*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Em 1º de janeiro de 1959, Fidel Castro e seus seguidores chegavam à vitória contra a ditadura de Fulgencio Batista, numa das revoluções de maior impacto do século 20. Com a derrota de suas tropas em Yaguajay e Santa Clara, Batista decidiu deixar o país em pleno réveillon, fugindo para a República Dominicana. Fidel, que controlava Santiago de Cuba, determinou então que as colunas de Che Guevara e Camilo Cienfuegos marchassem sobre Havana, onde acabariam não encontrando resistência. El Comandante entraria em triunfo na capital somente no dia 8. Para todos os efeitos, o movimento castrista lutara apenas para derrubar um regime corrupto e antidemocrático. Mas logo Fidel anunciaria que Cuba se tornara socialista. Meio século de apego cristalizado ao comunismo leva hoje à questão de como o país, agora governado por Raúl Castro, desenhará o seu futuro

As duas grandes revoluções socialistas do século 20, a da Rússia, em 1917, e a da China, em 1949, passaram por transições que alteraram fundamentalmente, ou mesmo subverteram, suas missões originais. O que anda deixando os especialistas intrigados é o fato de a Revolução Cubana não ter seguido esse caminho. De fato, o socialismo cubano resiste notavelmente mesmo a reformas moderadas como as adotadas por Moscou e Pequim.

Cuba optou pelo retorno à ortodoxia em meados da década de 80, num momento em que a União Soviética adotava a perestroika e a glasnost e os chineses começavam a abrir a economia para investidores internacionais. Fidel Castro sentiu-se plenamente justificado quando as reformas de Gorbachev foram seguidas pelo colapso do regime e por uma transformação, por vezes caótica, da União Soviética e da Europa Oriental, que acabaria em um regime político-econômico baseado em mercados e políticas competitivos. Reformas importantes, embora limitadas e no fim bastante abrandadas, só ocorreriam em Cuba entre 1993 e 1995, em pleno “período especial”, a difícil crise que se seguiu ao colapso do socialismo na União Soviética e na Europa Oriental. Entretanto, por que não aprender com as experiências graduais, mas em geral bem-sucedidas, de Deng Xiaoping no campo do mercado no contexto de um governo de partido único?

Desde que assumiram o poder, em 1959, os líderes da Revolução Cubana resistiram às políticas que poderiam ameaçar seu governo, considerando a unidade nacional sob um governo centralizado uma questão de sobrevivência. Os reformadores chineses praticamente eliminaram as idéias e os antigos dogmas de Mao Tsé-tung - apesar de continuarem a se definir como comunistas. E apesar de Stalin não ter sido bem-sucedido no intento, a era Gorbachev começou a distanciar-se dos pais fundadores, embora durante a transição os líderes da Rússia não se afastassem totalmente de Lenin e mantivessem exposto à visitação seu corpo embalsamado, na Praça Vermelha. Ao contrário da Rússia e da China, os pais da Revolução Cubana ainda estão vivos, exercendo seus cargos, e como sempre sensíveis a possíveis ameaças à ordem estabelecida. Oficialmente, Cuba continua comprometida com as idéias e valores de Fidel Castro, cujos editoriais de primeira página definem os critérios fundamentais que pautam a organização do Estado e da sociedade cubana. A infalibilidade de Fidel permanece um dogma oficial.

IMUNIDADE À TRANSIÇÃO

Mesmo assim, pode-se indagar quanto às razões da estabilidade política. Ainda que seja difícil avaliar o grau atual de apoio interno, não há como negar a enorme popularidade de Fidel Castro nos estágios iniciais da revolução e sua constante liderança nos momentos mais cruciais. Morei em Cuba, quando jovem, nos três primeiros anos da revolução, e lembro das eletrizantes transmissões por ondas curtas dos rebeldes fidelistas na Sierra Maestra, o júbilo geral com a queda do regime de Batista, no dia 1º de janeiro de 1959, e a explosão de paixão revolucionária dos primeiros meses da revolução. Os discursos de Fidel pela televisão deixavam os cubanos de todas as idades num estado de transe. A maioria da população odiava a ditadura de Batista e sua vontade de participar ou apoiar movimentos de oposição deve ser vista mais como um movimento nacional pela democracia. Fidel e os barbudos conseguiram captar esse sentimento e apresentar-se como os líderes fundadores de uma nova era na política de Cuba que derrotaria a corrupção e outros males. Em termos weberianos, a deles era uma autoridade carismática. Baseados nela, os revolucionários cubanos trataram rapidamente de consolidar sua posição política. Somente depois, mais precisamente após o fracasso dos EUA na da Baía dos Porcos, em abril de 1961, eles se declarariam socialistas e, mais tarde, comunistas.

Isso foi naquela época. O monopólio do poder e dos meios de comunicação ajudou a moldar e manter a nova ordem emergente em Cuba. Foi criado rapidamente um formidável e eficiente aparato de segurança interna, e sem dúvida isso influiu de maneira decisiva para a estabilidade política. O regime aperfeiçoou uma capacidade surpreendente de identificar, derrotar, reprimir ou neutralizar os inimigos. Em conjunto, esses fatores imunizaram Cuba contra o avanço de toda e qualquer política que seus líderes considerassem indesejável.

Além disso, a revolução estendeu o acesso à assistência médica, educação e outros benefícios básicos da previdência a muitos cubanos aos quais no passado isso era vedado. Os rebeldes revelaram-se eficientes em serviços básicos e em áreas como defesa e Forças Armadas, esportes, mobilização em massa, serviços médicos e atendimento em emergências como furacões e outras ameaças à segurança do povo. O número relativamente reduzido de mortos nos três furacões da temporada de 2008, a pior em muitos anos, comprova sua capacidade de proteger a população cubana como um todo.

As idéias são importantes, sim. E nenhuma foi e continua mais eficaz do ponto de vista político que as acusações dos líderes cubanos aos Estados Unidos por tudo que vai mal em Cuba. Tiveram nisso um sucesso fenomenal, e, mais importante, convenceram muitos cubanos de que os EUA constituem uma ameaça permanente à soberania nacional e à própria essência da identidade cubana. Fidel Castro teve pleno êxito em mostrar os EUA como uma entidade imperialista que ameaça Cuba e a humanidade. O regime também trabalhou de todos os modos para convencer os cubanos de que seus líderes são os únicos e verdadeiros defensores do nacionalismo de Cuba. Nessa perspectiva, Fidel é o grande líder da nação cubana.

O CONTEXTO GLOBAL

A famosa entrevista com Fidel Castro na primeira página do New York Times em 1957 ensinou ao líder do exército rebelde da Sierra Maestra que ele poderia usar a mídia internacional para cultivar sua imagem. Numa época em que se pensava que estivessem mortos ou derrotados, o artigo de Herbert Mathews mostrou uma imagem mítica de Fidel e seus guerrilheiros. Por um momento, a simpatia e o apoio externos tornaram-se uma dimensão importante da Revolução Cubana. Quatro filmes feitos recentemente sobre Che Guevara como rebelde emblemático do século 20, façanha que não teve iguais entre os líderes da Revolução Russa ou da Chinesa, mostram o poder, em escala mundial, do simbolismo dos rebeldes. Retrospectivamente, os poucos anos entre a chegada do iate Granma, em novembro de 1956, e o final de 1961, mas seguramente até a época da saída de Che de Cuba, em 1965, produziram as imagens duradouras dos jovens e fotogênicos rebeldes.

Fidel, Che e os barbudos da Sierra Maestra arrebataram os corações e as mentes dos latino-americanos e de um grande número de pessoas em todo o mundo. Eles exploraram o apelo romântico da juventude que lutava por seus ideais, disposta a ações corajosas e a grandes riscos na busca de um mundo melhor. Poucos contestaram sua visão do conflito com o poderoso vizinho ao norte como uma luta entre Davi e Golias. Um mundo repleto de desigualdades os considerava o símbolo da esperança dos despossuídos e oprimidos.

Durante muitos anos os líderes cubanos souberam usar habilmente sua reputação, coragem e capacidade para conquistar o vital apoio internacional. Os soviéticos forneceram uma ajuda de cerca de US$ 65 bilhões à Revolução Cubana até 1990. As alianças militares e estratégicas com os socialistas permitiram que Cuba empreendesse importantes campanhas militares em Angola e na Etiópia. No início da década de 60, a Cuba revolucionária apoiava os guerrilheiros de esquerda na América Latina, no Congo e em outras partes do mundo. Evidentemente, os cubanos superestimavam seu poder. O próprio Che ousou considerar-se um líder revolucionário na África, e então empreendeu uma tentativa desastrada e fatal de transformar a América do Sul numa Sierra Maestra. A morte, em 1967, consolidou sua imagem de figura emblemática e mártir da rebeldia idealista.

Nos anos 80, e depois nos 90, a “solidariedade internacionalista” cubana por meio de campanhas militares não foi mais possível. Os líderes de Havana mudaram para um novo internacionalismo que se baseava no envio de organizações médicas e serviços profissionais ao exterior. Na virada do século, quando a Venezuela deu uma considerável guinada para a esquerda com Hugo Chávez, Cuba cimentou esse papel. A incansável campanha ideológica que tachava os Estados Unidos de potência imperialista serviu ao regime para obter o apoio de adversários dos EUA como a Venezuela, mas também da China e agora da Rússia. Mais uma vez, o apoio internacional foi essencial para sustentar a economia cubana. Na América Latina, Cuba conseguiu ser admitida no Grupo do Rio e no Mercosul, assim como nas estruturas alternativas criadas sob a liderança venezuelana.

CRISE E MUDANÇA

A doença que levou Fidel Castro a se afastar do poder, em julho de 2006, e a transferência temporária do poder para Raúl Castro, formalizada em fevereiro de 2008 com a eleição deste para presidente, pareceu sinalizar a possibilidade de uma mudança estrutural em Cuba. Na realidade, uma série de importantes mudanças vinha ocorrendo desde a década de 90. Embora freqüentemente menosprezadas como medidas de adaptação, de pequena escala, para preservar o sistema atual, essas medidas - a liberalização das moedas fortes e das remessas, permitindo a abertura de pequenas empresas - tiveram um efeito cumulativo. Na segunda metade dos anos 90, Fidel Castro assinalou o fim do processo de reforma. As mobilizações de massa em torno do caso Elián González e a “batalha de idéias” voltaram a direcionar a atenção nacional para a mobilização coletiva em defesa do regime centralizado controlado pelo Estado, mais uma vez justificado pela batalha da nação cubana contra os EUA imperialistas. Nesse contexto, a ascensão de Raúl Castro à presidência fez com que muitos esperassem uma aceleração do processo de reforma. Em 2007, Raúl falou da necessidade de reformas estruturais. No início de 2008, foram anunciados passos relativamente tímidos. O novo chefe de Estado implementou algumas reformas - permitindo a ampliação da atividade agrícola privada, a compra de celulares e computadores pessoais.

Mas o presidente Raúl Castro está se movendo com grande cautela. Sua eleição em fevereiro de 2008 incluiu a escolha para o cargo de vice-presidente de um linha-dura pertencente à velha-guarda, leal ao projeto revolucionário tradicional. Em julho deste ano, o novo presidente, de 75 anos, reduziu aparentemente as perspectivas de mudança, embora seu governo continue pressionando por um projeto de lei que substitua a escala salarial baseada no igualitarismo por outra baseada na produtividade e no mérito. A hesitação de Raúl provavelmente decorre em grande parte da constante pressão da linha dura.

No segundo semestre de 2008, três furacões causaram prejuízos de bilhões de dólares à agricultura, às construções e à infra-estrutura. O governo substituiu três ministros - da Educação, Investimentos Externos e Agricultura. O general Ulisses del Toro, que presidiu à consolidação do setor açucareiro, foi nomeado para a pasta da Agricultura e seu vice tornou-se o responsável pelo setor açucareiro. Essas nomeações puseram o importante setor nas mãos de um general próximo de Raúl, que foi chefe das Forças Armadas desde 1959 e continua sendo o general de mais alta patente de Cuba. Na crise dos anos 90, o Exército realizou reformas agrícolas que aumentaram a oferta de alimentos. Como Cuba importa mais da metade dos alimentos que consome e cultiva apenas 45% da terra agriculturável, a reforma do setor agrícola será prioritária.

Os economistas de fora muitas vezes definiram a discussão da transição em Cuba em termos das questões normativas que surgem nas sociedades pós-comunistas, como a continuação e o alcance da estratégia de transição. Por exemplo, os dois paradigmas da estruturação das mudanças econômicas nas sociedades pós-comunistas enfatizam uma transição acelerada para uma economia de mercado baseada na concorrência (privatizações, livre trânsito de mercadorias e a menor intervenção estatal possível), como na antiga URSS, ou uma estratégia gradual, que combine a liberalização lenta com uma significativa participação do Estado e os esforços para impedir os colapsos sistêmicos que ameaçariam empregos, aposentadorias e a estabilidade da política, como na China e no Vietnã. Na atual dinâmica, parece mais provável em Cuba algo mais próximo da última alternativa. Alguns continuam considerando exageradas as expectativas de mudança, particularmente no que se refere à estabilidade do regime no sistema de partido único. No curto prazo, pelo menos, isso parece mais provável que uma única explosão de reformas políticas e econômicas rumo a uma transição rápida.

NOVO CAPÍTULO

O ano-novo deverá assinalar muito mais que um marco histórico para a revolução cubana, e seguramente trará novos desafios e oportunidades. A posse de Barack Obama na presidência, no dia 20 de janeiro, resultará em substanciais alterações de conteúdo e tom nas relações com Cuba. O candidato Obama prometeu liberalizar as viagens e o envio de remessas de dinheiro dos cubano-americanos. No contexto de linha dura seguido pelo governo de George W. Bush, isso abrirá uma janela de oportunidades para a negociação do tipo de relações que Cuba e os EUA deverão manter. Se os EUA estão prestes a ingressar em um período de considerável flexibilidade na política em relação a Cuba, a posição de Cuba é menos certa. Afinal, o embargo foi útil para a linha dura. Caracterizando-o como um "bloqueio" que confirma a agressividade imperialista dos EUA, as autoridades cubanas o usaram para manter sob controle a influência americana e dos cubano-americanos.

Além disso, as fenomenais disparidades da renda entre os cubanos da ilha e os que vivem nos EUA deverão preocupar os estrategistas cubanos quanto à reação da sociedade cubana a uma avalanche de cubano-americanos, ao aumento das remessas, ao turismo, e à influência geral dos EUA.

A crise financeira global e a recessão iniciadas em 2008 contribuirão para deteriorar a posição internacional dos EUA. Amigos e inimigos dos EUA tentarão usar os respectivos realinhamentos globais em benefício próprio, gerando novas opções para Cuba. A Venezuela de Hugo Chávez procurará manter seu recente papel, embora a queda dos preços do petróleo devam minar sua posição internacional. China e Rússia, mas também o Brasil e outros países emergentes, melhoraram ou estão planejando melhorar as relações com Cuba. Essas mudanças poderão reforçar a resistência cubana à reforma fundamental. Entretanto, a mudança dos EUA na questão da cooperação internacional e multilateral criará novas expectativas e dinâmicas que os cubanos levarão em consideração.

A resposta cubana aos desafios e às oportunidades do momento atual será uma mudança histórica que determinará o destino da sociedade e da revolução do país nos próximos anos. A dinâmica da política interna interagindo com o complexo domínio internacional, que está em constante evolução, influirá nas escolhas fatais dos líderes cubanos. No curto prazo, os reformadores deverão ganhar espaço em relação aos defensores da linha dura. Mas as principais mudanças dificilmente serão viáveis enquanto Fidel gozar de uma saúde razoável. Neste sentido, pressupõe-se que a doença de Fidel continuará cobrando seu preço, que Raúl Castro e companhia consolidarão sua posição e que a transformação do contexto internacional ampliará o alcance das escolhas com que eles se defrontam. No médio prazo, a inevitável transição da liderança depois da morte de Fidel e dos envelhecidos rebeldes da Sierra Maestra proporcionará o contexto para a definição de uma linha política pós-castrista e de uma revisão do modelo econômico. O ponto crucial será o que os jovens cubanos escolherão fazer com o legado de Fidel, incluindo o profundo nacionalismo contido nessa herança.

O caminho russo ou o chinês parecem muito improváveis para Cuba. Mas este é seguramente um momento de inovação e transformação. A alteração da dinâmica internacional, depois do início de 2009, contribuirá para definir como a sociedade cubana responderá aos desafios e tomará as decisões mais importantes ao definir seu futuro. Uma questão cada vez mais interessante é o papel que o Brasil e outros países da região optarão por desempenhar nessa conjuntura tão crítica.

*Mauricio Font, cubano radicado nos EUA, é diretor do Bildner Center for Western Hemisphere Studies e professor de sociologia na Universidade da Cidade de Nova York. É autor de Cuban Counterpoints e Transforming Brazil: A Reform Era in Perspective (ambos pela Rowman & Littlefield)