Roberto Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
Se a democracia é a questão central da construção dos novos institutos da globalização, inquieta a todos nós o tom do ministro
QUE OS velhos bolcheviques se intimidassem diante de Stálin é compreensível. Aqueles do círculo stalinista mais próximo e não tão próximo assim corriam risco de morte se dissessem a palavra errada, se dessem um passo em falso ou se incorressem num suposto "desvio". Um risco nada metafórico, como se sabe.
Diferente é o caso do ministro Tarso Genro em relação a Lula. Não corre risco algum, salvo o de perder o emprego. Por isso, é espantoso que atribua ao presidente o monopólio da fala "alternativa" na atual crise do sistema econômico e financeiro global. Disse o ministro que "nós [a esquerda em geral] estamos incrivelmente quietos.
Só Lula fala. Sejamos solidários. Falemos junto com Lula" ("Fala, D"Alema", "Tendências/Debates", 4/1). O ministro da Justiça escreveu isso como se não houvesse uma enorme movimentação política das esquerdas na cena mundial; e como se o próprio D"Alema também não fizesse parte de um esforço de reinvenção da esquerda italiana, corporificado pelo Partido Democrático, o herdeiro mais importante do velho PCI.
Mas, para o ministro, ninguém fala.
Ninguém busca perceber o "novo" ou a ele dar voz. Só Lula. Além da crise, começamos mal 2009.
Apesar de tudo, e sabujice à parte, é bom ver o ministro empenhado na defesa de um "novo republicanismo" e até mesmo na incorporação dos temas do liberalismo político ao novo horizonte utópico que propõe.
E empenhado também na proclamação dos direitos humanos, que devem ter uma aplicação efetivamente universal, sem nenhum tipo de discriminação. Aplicam-se, por exemplo, a casos "menores", como o de atletas que pretendam eventualmente se valer de competições internacionais para escapar dos seus países de origem, nos quais a liberdade de ir e vir é fortemente cerceada.
Para essa cultura de direitos, se for possível escolher para ela uma data simbólica, só poderíamos escolher a promulgação da Constituição de 1988, marco no qual alguns poucos anos depois se completaria a nossa democracia política, com a ascensão ao poder do partido ao qual pertence o ministro. Tudo dentro das regras do jogo, que também permitem uma forte intervenção pública nos rumos da sociedade e da economia.
O governo liderado pelo PT fez algumas dessas intervenções, e isso deixa o ministro compreensivelmente feliz, mas deixou de fazer inúmeras outras no controle dos juros obscenos, que sangram a capacidade de investimentos públicos e privados, no disciplinamento forte dos mercados por meio das agências reguladoras, no comportamento nada republicano do governo e do PT, envolvidos em episódios de corrupção que passaram à nossa história política com o nome de mensalão, no controle quase absoluto dos movimentos sociais pelo Estado, e na ocupação e no aparelhamento, por meio de milhares de cargos comissionados, da máquina federal.
Tudo isso não é desvio acidental de rumo, tem raízes mais profundas: um desprezo mal disfarçado pela democracia e um desrespeito pelas instituições. Nesse sentido, seria bom que o ministro explicasse um fato absolutamente decisivo: a atitude dúbia do seu partido quando da aprovação da Constituição de 88. São duas décadas -um tempo histórico razoável em que foi revelada uma cultura política antidemocrática e não republicana.
Nas palavras do Lula de então (que, de resto, nunca veio a público para se explicar cabal e formalmente; nem ele nem seu partido!), o texto constitucional era pouco mais do que imprestável e o PT deveria votar contrariamente a ele. E votou, assinando-o com muita tibieza.
Naquele momento decisivo, "Nosso Guia" só faltou dizer que estávamos diante de uma "democracia burguesa", como nos tempos daquele outro guia genial dos povos. E, por sua vez, a hipótese de que se tratava de alguma das famosas "bravatas" é ainda mais penosa.
Simplesmente não se pode brincar de "radical" quando se trata de refundar um moderno Estado democrático de Direito após um duríssimo período de eclipse das liberdades.
Se a democracia é a questão central da construção dos novos institutos da globalização -e sem dúvida o é-, inquieta a todos nós o tom do artigo do ministro. Ao mesmo tempo, o trágico déficit teórico e político das esquerdas no seu conjunto, tantas vezes envolvidas com projetos autoritários de mudança social, inclusive no presente momento e muito especialmente na América Latina, e para além das bravatas tão ao gosto do chefe, há bons temas que mereceriam desenvolvimento teórico e comportamento político coerente (o socialismo como ideia reguladora em sociedades pluriclassistas, por exemplo).
Seria interessante ver o PT e seus intelectuais como estimuladores de um campo teórico que tivesse como divisa a incorporação, sem ambiguidade, dos valores da democracia política como condição irrenunciável para ir muito além do status quo -e, dessa vez, sem guias geniais, sem ditaduras de partido único e sem caudilhos popularescos.
ROBERTO JOÃO PEREIRA FREIRE, 66, advogado, é presidente nacional do PPS (Partido Popular Socialista). Foi deputado federal e senador da República pelo PPS-PE.
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
Se a democracia é a questão central da construção dos novos institutos da globalização, inquieta a todos nós o tom do ministro
QUE OS velhos bolcheviques se intimidassem diante de Stálin é compreensível. Aqueles do círculo stalinista mais próximo e não tão próximo assim corriam risco de morte se dissessem a palavra errada, se dessem um passo em falso ou se incorressem num suposto "desvio". Um risco nada metafórico, como se sabe.
Diferente é o caso do ministro Tarso Genro em relação a Lula. Não corre risco algum, salvo o de perder o emprego. Por isso, é espantoso que atribua ao presidente o monopólio da fala "alternativa" na atual crise do sistema econômico e financeiro global. Disse o ministro que "nós [a esquerda em geral] estamos incrivelmente quietos.
Só Lula fala. Sejamos solidários. Falemos junto com Lula" ("Fala, D"Alema", "Tendências/Debates", 4/1). O ministro da Justiça escreveu isso como se não houvesse uma enorme movimentação política das esquerdas na cena mundial; e como se o próprio D"Alema também não fizesse parte de um esforço de reinvenção da esquerda italiana, corporificado pelo Partido Democrático, o herdeiro mais importante do velho PCI.
Mas, para o ministro, ninguém fala.
Ninguém busca perceber o "novo" ou a ele dar voz. Só Lula. Além da crise, começamos mal 2009.
Apesar de tudo, e sabujice à parte, é bom ver o ministro empenhado na defesa de um "novo republicanismo" e até mesmo na incorporação dos temas do liberalismo político ao novo horizonte utópico que propõe.
E empenhado também na proclamação dos direitos humanos, que devem ter uma aplicação efetivamente universal, sem nenhum tipo de discriminação. Aplicam-se, por exemplo, a casos "menores", como o de atletas que pretendam eventualmente se valer de competições internacionais para escapar dos seus países de origem, nos quais a liberdade de ir e vir é fortemente cerceada.
Para essa cultura de direitos, se for possível escolher para ela uma data simbólica, só poderíamos escolher a promulgação da Constituição de 1988, marco no qual alguns poucos anos depois se completaria a nossa democracia política, com a ascensão ao poder do partido ao qual pertence o ministro. Tudo dentro das regras do jogo, que também permitem uma forte intervenção pública nos rumos da sociedade e da economia.
O governo liderado pelo PT fez algumas dessas intervenções, e isso deixa o ministro compreensivelmente feliz, mas deixou de fazer inúmeras outras no controle dos juros obscenos, que sangram a capacidade de investimentos públicos e privados, no disciplinamento forte dos mercados por meio das agências reguladoras, no comportamento nada republicano do governo e do PT, envolvidos em episódios de corrupção que passaram à nossa história política com o nome de mensalão, no controle quase absoluto dos movimentos sociais pelo Estado, e na ocupação e no aparelhamento, por meio de milhares de cargos comissionados, da máquina federal.
Tudo isso não é desvio acidental de rumo, tem raízes mais profundas: um desprezo mal disfarçado pela democracia e um desrespeito pelas instituições. Nesse sentido, seria bom que o ministro explicasse um fato absolutamente decisivo: a atitude dúbia do seu partido quando da aprovação da Constituição de 88. São duas décadas -um tempo histórico razoável em que foi revelada uma cultura política antidemocrática e não republicana.
Nas palavras do Lula de então (que, de resto, nunca veio a público para se explicar cabal e formalmente; nem ele nem seu partido!), o texto constitucional era pouco mais do que imprestável e o PT deveria votar contrariamente a ele. E votou, assinando-o com muita tibieza.
Naquele momento decisivo, "Nosso Guia" só faltou dizer que estávamos diante de uma "democracia burguesa", como nos tempos daquele outro guia genial dos povos. E, por sua vez, a hipótese de que se tratava de alguma das famosas "bravatas" é ainda mais penosa.
Simplesmente não se pode brincar de "radical" quando se trata de refundar um moderno Estado democrático de Direito após um duríssimo período de eclipse das liberdades.
Se a democracia é a questão central da construção dos novos institutos da globalização -e sem dúvida o é-, inquieta a todos nós o tom do artigo do ministro. Ao mesmo tempo, o trágico déficit teórico e político das esquerdas no seu conjunto, tantas vezes envolvidas com projetos autoritários de mudança social, inclusive no presente momento e muito especialmente na América Latina, e para além das bravatas tão ao gosto do chefe, há bons temas que mereceriam desenvolvimento teórico e comportamento político coerente (o socialismo como ideia reguladora em sociedades pluriclassistas, por exemplo).
Seria interessante ver o PT e seus intelectuais como estimuladores de um campo teórico que tivesse como divisa a incorporação, sem ambiguidade, dos valores da democracia política como condição irrenunciável para ir muito além do status quo -e, dessa vez, sem guias geniais, sem ditaduras de partido único e sem caudilhos popularescos.
ROBERTO JOÃO PEREIRA FREIRE, 66, advogado, é presidente nacional do PPS (Partido Popular Socialista). Foi deputado federal e senador da República pelo PPS-PE.