quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

A fala de Tarso

Roberto Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Se a democracia é a questão central da construção dos novos institutos da globalização, inquieta a todos nós o tom do ministro

QUE OS velhos bolcheviques se intimidassem diante de Stálin é compreensível. Aqueles do círculo stalinista mais próximo e não tão próximo assim corriam risco de morte se dissessem a palavra errada, se dessem um passo em falso ou se incorressem num suposto "desvio". Um risco nada metafórico, como se sabe.

Diferente é o caso do ministro Tarso Genro em relação a Lula. Não corre risco algum, salvo o de perder o emprego. Por isso, é espantoso que atribua ao presidente o monopólio da fala "alternativa" na atual crise do sistema econômico e financeiro global. Disse o ministro que "nós [a esquerda em geral] estamos incrivelmente quietos.

Só Lula fala. Sejamos solidários. Falemos junto com Lula" ("Fala, D"Alema", "Tendências/Debates", 4/1). O ministro da Justiça escreveu isso como se não houvesse uma enorme movimentação política das esquerdas na cena mundial; e como se o próprio D"Alema também não fizesse parte de um esforço de reinvenção da esquerda italiana, corporificado pelo Partido Democrático, o herdeiro mais importante do velho PCI.

Mas, para o ministro, ninguém fala.

Ninguém busca perceber o "novo" ou a ele dar voz. Só Lula. Além da crise, começamos mal 2009.

Apesar de tudo, e sabujice à parte, é bom ver o ministro empenhado na defesa de um "novo republicanismo" e até mesmo na incorporação dos temas do liberalismo político ao novo horizonte utópico que propõe.

E empenhado também na proclamação dos direitos humanos, que devem ter uma aplicação efetivamente universal, sem nenhum tipo de discriminação. Aplicam-se, por exemplo, a casos "menores", como o de atletas que pretendam eventualmente se valer de competições internacionais para escapar dos seus países de origem, nos quais a liberdade de ir e vir é fortemente cerceada.

Para essa cultura de direitos, se for possível escolher para ela uma data simbólica, só poderíamos escolher a promulgação da Constituição de 1988, marco no qual alguns poucos anos depois se completaria a nossa democracia política, com a ascensão ao poder do partido ao qual pertence o ministro. Tudo dentro das regras do jogo, que também permitem uma forte intervenção pública nos rumos da sociedade e da economia.

O governo liderado pelo PT fez algumas dessas intervenções, e isso deixa o ministro compreensivelmente feliz, mas deixou de fazer inúmeras outras no controle dos juros obscenos, que sangram a capacidade de investimentos públicos e privados, no disciplinamento forte dos mercados por meio das agências reguladoras, no comportamento nada republicano do governo e do PT, envolvidos em episódios de corrupção que passaram à nossa história política com o nome de mensalão, no controle quase absoluto dos movimentos sociais pelo Estado, e na ocupação e no aparelhamento, por meio de milhares de cargos comissionados, da máquina federal.

Tudo isso não é desvio acidental de rumo, tem raízes mais profundas: um desprezo mal disfarçado pela democracia e um desrespeito pelas instituições. Nesse sentido, seria bom que o ministro explicasse um fato absolutamente decisivo: a atitude dúbia do seu partido quando da aprovação da Constituição de 88. São duas décadas -um tempo histórico razoável em que foi revelada uma cultura política antidemocrática e não republicana.

Nas palavras do Lula de então (que, de resto, nunca veio a público para se explicar cabal e formalmente; nem ele nem seu partido!), o texto constitucional era pouco mais do que imprestável e o PT deveria votar contrariamente a ele. E votou, assinando-o com muita tibieza.

Naquele momento decisivo, "Nosso Guia" só faltou dizer que estávamos diante de uma "democracia burguesa", como nos tempos daquele outro guia genial dos povos. E, por sua vez, a hipótese de que se tratava de alguma das famosas "bravatas" é ainda mais penosa.

Simplesmente não se pode brincar de "radical" quando se trata de refundar um moderno Estado democrático de Direito após um duríssimo período de eclipse das liberdades.

Se a democracia é a questão central da construção dos novos institutos da globalização -e sem dúvida o é-, inquieta a todos nós o tom do artigo do ministro. Ao mesmo tempo, o trágico déficit teórico e político das esquerdas no seu conjunto, tantas vezes envolvidas com projetos autoritários de mudança social, inclusive no presente momento e muito especialmente na América Latina, e para além das bravatas tão ao gosto do chefe, há bons temas que mereceriam desenvolvimento teórico e comportamento político coerente (o socialismo como ideia reguladora em sociedades pluriclassistas, por exemplo).

Seria interessante ver o PT e seus intelectuais como estimuladores de um campo teórico que tivesse como divisa a incorporação, sem ambiguidade, dos valores da democracia política como condição irrenunciável para ir muito além do status quo -e, dessa vez, sem guias geniais, sem ditaduras de partido único e sem caudilhos popularescos.

ROBERTO JOÃO PEREIRA FREIRE, 66, advogado, é presidente nacional do PPS (Partido Popular Socialista). Foi deputado federal e senador da República pelo PPS-PE.

Por que Lula não lê jornais

EDITORIAL
O ESTADO DE S. PAULO

As opiniões que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva externa sobre a imprensa brasileira são de há muito conhecidas. Ele próprio diz que elas não mudaram desde que chegou ao Planalto - o que faz lembrar a anedota do jornalista irritado com um colega: “Não me venha com fatos novos, que já tenho as minhas ideias formadas.” E, decerto por tê-las e por querer poupá-las do contágio com eventuais novidades no comportamento da mídia capazes de pôr em perigo crenças assim viscerais, Lula afirma que se dispensa de ler jornais, revistas, sites e blogs. “Porque eu tenho problema de azia”, alegou, tentando exercitar o sarcasmo, numa entrevista publicada na edição deste mês da revista Piauí. (A crer nas suas palavras, ele tampouco assiste a telejornais, nem sequer aos da TV Brasil, nesse caso “por falta de tempo”.)

A imprensa lhe faz mal ao fígado, queixou-se. A mesma imprensa à qual creditou, como já fizera, a sua ascensão à Presidência da República. Foi “produto direto da liberdade de imprensa”, repetiu, alheio à incoerência entre essa constatação irrefutável e a sua visão gástrica do jornalismo. Paradoxos, aliás, não faltam quando Lula é instado a falar do assunto - sintoma, quem sabe, de que não o digere com facilidade. O presidente que se guarda de acessar as novas mídias porque também essas, a exemplo das tradicionais, lhe causariam desconforto estomacal, não hesita em saudar a diversidade de comentários disponível em “300 blogs”. “Hoje a informação é mais plural”, acredita. “Isso democratiza a imprensa, aumenta a capacidade do cidadão de interpretar o que lê.”

Lula, ao que diz, não só não lê, não ouve e não vê o noticiário, como recomenda “a qualquer presidente” que se afaste da imprensa - e ainda dos políticos - nos fins de semana. A mídia, insiste, não lhe faz falta. “Um homem que conversa com o tanto de pessoas que eu converso por dia deve ter uns 30 jornais na cabeça todo santo dia”, argumenta. “Não há hipótese de eu estar desinformado.” Só há. “O tanto de pessoas” que conseguem escalar o gabinete presidencial evidentemente não pediram audiência para criticar o seu titular; têm, todas, interesses a defender, o que aconselha os seus porta-vozes a guardar para si as verdades inconvenientes de que tenham conhecimento sobre o desempenho do anfitrião. Além disso, Lula se informa nas sessões matinais de meia hora com o ministro da Comunicação do Governo, Franklin Martins, que o põe a par do noticiário do dia.

“Quando sai alguma coisa importante, a Clara (a assessora especial Clara Ant) e o Franklin me trazem o artigo ou mesmo o vídeo de uma reportagem de televisão”, conta. Lula talvez não saiba, mas certa vez o presidente americano, George W. Bush, deu uma explicação semelhante para o fato de só bater os olhos nas manchetes - “eu raramente leio as matérias”, admitiu, também numa entrevista. Ele se basta com os briefings diários do seu chefe de gabinete e do assessor de segurança nacional, “que provavelmente (sic) leram eles próprios as notícias”. A diferença é que Bush, embora observando que muitas vezes as opiniões se misturam às notícias, não deixou de manifestar o seu “grande respeito” pela imprensa. “Nossa sociedade é uma boa, sólida democracia”, disse, “porque temos uma boa, sólida mídia.”

Eis a questão de fundo, mais ainda do que saber como o presidente da República se informa ou se é verdade que o jornalismo brasileiro lhe dá azia a ponto de ele manter uma distância profilática de jornais, revistas, sites e blogs. Líderes nacionais que conhecem a função não apenas informativa, mas, principalmente instrutiva da imprensa escrita não dispensam a sua leitura, como faz Lula - que, aliás, não lê nada. Quaisquer que sejam as suas mágoas em relação aos órgãos de comunicação de seus países e qualquer que seja a procedência das suas críticas ao modo como eles os tratam - e está para nascer o governante que não se sinta injustiçado pela mídia -, têm a devida noção da importância de sua contribuição, para a preservação e o aperfeiçoamento da democracia.

Desde o discurso de posse de 2003, a toda hora Lula se refere à sua escassa escolaridade em tom de quem se vangloria da facilidade com que aprende as coisas “de ouvido”. Na verdade, não é o “problema da azia” que o afasta da leitura dos jornais, É, isso sim, a aversão natural que ele tem a qualquer espécie de leitura.

Serra e PSDB iniciam montagem de palanques regionais para 2010

Raymundo Costa, de Brasília
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Assentada a poeira da eleição municipal, o PSDB engatou a primeira marcha da sucessão presidencial e já articula a montagem de palanques regionais fortes para a eleição de 2010, além de procurar consolidar a aliança com o Democratas, vitoriosa em São Paulo mas que enfrenta problemas em outros Estados. Dos seus dois principais pré-candidatos, o governador de São Paulo, José Serra, é o mais envolvido na maquinação de palanques - o governador de Minas Gerais, Aécio Neves, aposta numa prévia partidária e pretende viajar aos Estados, a partir de março, para discutir um programa de governo do PSDB.

A decisão de Aécio deixou otimista a direção do PSDB. A cúpula tucana avalia que, ao entrar no jogo pela indicação do partido, Aécio sinaliza que não pretende trocar o PSDB por outra legenda, como o PMDB ou o PSB, na hipótese de perder para Serra a candidatura tucana. Nesse caso, ele se conformaria em ser candidato a uma das duas vagas ao Senado por Minas Gerais. Mas, no governo há outra expectativa em relação ao governador mineiro. Como a direção do PSDB pretende evitar a realização de prévias, isso daria o pretexto para o governador trocar de camisa.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já definiu que a ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) será a candidata do PT à sucessão. Só não será Dilma se ela se mostrar inteiramente inviável eleitoralmente, coisa que Lula não acredita: quando ela se tornar a "candidata do presidente", a expectativa no governo é que a ministra rapidamente ganhe pontos nas pesquisas de opinião. Mas, se os fatos não ocorrerem como planejados, uma das alternativas hoje discutidas é a indicação de um nome de fora do PT. Entre os citados estão Ciro Gomes (PSB) e o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), mas também o governador Aécio Neves, que iria para o PMDB e concorreria em aliança com o PSB.

Desde antes da eleição municipal Lula faz sondagens com vistas à construção de palanques regionais fortes em 2010, algo em que só agora o PSDB e Serra, especialmente, passaram a investir de maneira mais sistemática. Paralelamente, os tucanos também trabalham para consolidar a bem sucedida aliança com o Democratas, em São Paulo, estendendo-a para todo o país. No Paraná, por exemplo, o DEM vai compor o secretariado de Beto Richa, reeleito prefeito de Curitiba. No Rio Grande do Sul o vice-governador Paulo Feijó, que faz oposição à governadora Yeda Crusius, foi isolado pelo próprio DEM.

A situação que melhor retrata a atual movimentação do PSDB é a da Bahia, pois ela contém todos os ingredientes presentes nas discussões para a armação dos palanques em outros Estados. Os tucanos articulam a filiação ao partido do ex-governador Paulo Souto (DEM). O movimento conta com a concordância de líderes do Democratas local, como o deputado Antonio Carlos Magalhães Neto, mas ainda esbarra na resistência do presidente nacional do Democratas, Rodrigo Maia, que vê em Souto uma oportunidade de o partido recuperar o governo baiano, durante anos controlado pelo carlismo.

Souto iria para o PSDB para concorrer ao governo estadual e assegurar um palanque forte à candidatura José Serra na Bahia, Estado governado pelo PT e no qual o presidente Luiz Inácio Lula da Silva bate recordes de popularidade. Jutahy Júnior, o principal líder tucano local, também concorda com a solução, principalmente se ela efetivamente servir de suporte a Serra, que atualmente lidera as pesquisas para presidente na Bahia.

Mas os tucanos já discutem uma outra possibilidade para tornar o palanque da oposição no quarto maior colégio eleitoral do país ainda mais atrativo: uma aliança com o ministro Geddel Vieira Lima (Integração Nacional), que é do PMDB, para o governo estadual, o DEM para a vice e Paulo Souto para o Senado. Jutahy será ministro na hipótese de Serra ser presidente e também caso Aécio é que seja o eleito (pelo PSDB, evidentemente).

Uma preocupação é o Rio Grande do Sul, mas os tucanos passaram a contar com a recuperação da governadora Yeda Crusius, que diz ter saneado as contas do Estado. Mas não afastam a possibilidade de apoiar, para o governo, o prefeito de Porto Alegre, José Fogaça - Yeda concorreria ao Senado, se a atual crise econômica atrapalhar a recuperação do governo gaúcho: o PMDB é aliado de Yeda.

Em São Paulo, a aliança com o DEM é sólida. A maior dificuldade é a disputa interna do PSDB. Os tucanos não têm um nome forte para a sucessão de Serra. O grupo de Geraldo Alckmin reivindica a indicação, se ele ficar no partido. Mas Alckmin está internamente enfraquecido desde que disputou a prefeitura e não se classificou para o segundo turno. Em Minas, Aécio, mesmo não sendo o candidato, tem condições de montar um amplo palanque para o PSDB, como teve - e não fez - em 2002 e 2006.

Muito além do panfleto

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Não é um debate na acepção da palavra. Nem uma discussão. Para o primeiro faltam as ideias e, para a segunda, há carência de contraditório. Chamemos, então, de palco o ambiente em que evoluem os candidatos às presidências da Câmara e do Senado.

É um cenário, com paredes falsas onde nada tem consistência nem conteúdo. O principal candidato ao comando da Câmara, deputado Michel Temer, informa que tem “propostas sérias de reestruturação da Casa”.

Quais? Ontem deu notícia de uma delas: “Vou acabar com essa história de baixo clero e alto clero.” Igualdade na fraternidade, pois.

O principal candidato ao comando do Senado, senador Tião Viana, divulgou uma carta de duas páginas e meia em que uma única vez diz direta e objetivamente a palavra “proponho”. O quê?

“Construirmos o Legislativo do tempo presente.” Como?

Mediante a adoção de uma “agenda ousadamente positiva”. Com qual finalidade?

“Sobrepor-se à agenda da crise e impedir que o Parlamento fique a reboque dos acontecimentos.” Uma locomotiva em ritmo de Brasil grande, presumidamente.

E assim, em tom de panfletagem eleitoral, se desenrolam as preliminares das eleições de fevereiro. Concepções genéricas sobre a afirmação da “altivez” do Legislativo, chavões sobre a “judicialização” da política não atendem “as crescentes demandas da sociedade em torno de um Congresso Nacional afirmativo e propositivo”, como o senador Viana considera necessário em sua carta aos eleitores da corporação.

Atendem, quando muito, ao que demanda a performance dos candidatos na batalha do voto a voto, a fim de se compor o cenário com algo mais que os acertos interpartidários, estes sim as reais referências na troca de comando do Parlamento.

A preocupação dos personagens é a de arregimentar apoios ao custo que for. Inclusive o da compostura. Como faz o Executivo em relação ao Legislativo, que incorpora o pior e não presta atenção no melhor dos outros dois Poderes. Ao contrário, ataca o ativismo do Judiciário no lugar de buscar ser tão ou mais ativo.

O presidente da República tem 37 ministérios e milhares de cargos de confiança à disposição para lotear na formação de sua maioria parlamentar. Aos presidentes da Câmara e do Senado cabem duas dezenas de cargos das Mesas Diretoras para entregar aos partidos ali representados e, assim, tentar obter a maioria dos votos dos colegas.

Antigamente a coisa não era assim tão escancarada. Hoje, no caso da Câmara principalmente, faz-se a divisão de maneira desabrida, sem pejo: é a primeira secretaria para um partido, a segunda para outro, as suplências para os menos cotados, as vice-presidências para os mais importantes e está feita a receita.

Se resulta em boa coisa, não interessa. Exatamente como a lógica do Executivo: arma-se a maioria, mas não necessariamente se faz um bom uso dela. Se Michel Temer assegura a vitória com essa prática de loteamento, não é o que está em questão. Pode até perder como vários outros candidatos “do poder” já perderam.

Lamentável é o processo. Este por si só já consolida a degradação do Poder Legislativo e invalida quaisquer manifestações contra alegadas injustiças de avaliação cometidas contra a instituição.

Não existe maior prova da degenerescência que o ambiente na antessala da escolha dos novos presidentes das duas Casas do Congresso Nacional.

Faz algum sentido um candidato a presidir a Câmara dos Deputados abraçar a causa da extinção do “baixo clero e do alto clero?” Nenhum, a não ser como exercício de demagogia. E autorreferida, como se o Congresso fosse um grêmio recreativo e não a entidade de representação popular com todas as responsabilidades públicas inerentes a este papel.

Viana, Temer, Aldo Rebelo, Garibaldi Alves e todo o plantel de candidatos dispõem de uma gama de assuntos para ser abordados que passam pelo aprimoramento do processo legislativo e vão muito além do panfleto.

Isonomia

Se não é eticamente adequado que um presidente de partido acumule essa função com a chefia de um ministério - conforme indicam a regras da Comissão de Ética Pública da Presidência da República -, não é aconselhável também que um político presida ao mesmo tempo um partido e a Câmara dos Deputados.

O conceito de conflito de interesses (mesmo presumido) é o mesmo. Daí o plano inicial, já abandonado, de o presidente do PMDB, Michel Temer, se licenciar do posto caso venha a se eleger presidente da Câmara.

Temer é um jurista e desses bastante referidos no formalismo, várias vezes cotado para o cargo de ministro da Justiça. Por essas e muitas outras mais, certamente saberia muito bem ao paladar geral, e ao decoro legislativo em particular, a retomada da ideia original do afastamento.

Mais não seja como medida preventiva a eventuais questionamentos de conduta.

Do Gueto de Varsóvia ao Gueto de Gaza

Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO


O Gueto de Varsóvia foi o maior enclave judaico estabelecido pelos alemães na Polônia, durante a ocupação nazista. Chegou a atingir a marca de 380 mil habitantes, ou 30% da população de Varsóvia, e ocupava 2,4% de seu território, separado da cidade por muros. A partir da construção do muro, em novembro de 1940, e pelo ano e meio seguinte, os judeus poloneses das cidades e vilas menores eram levados para lá - depósito dos judeus que iriam para o campo de extermínio de Treblinka e que podiam ter a sorte de escapar das câmaras de gás se morressem antes de tifo ou fome, ou simplesmente fossem atingidos nas ruas, como animais, caça dos soldados nazistas. Lá dentro, três grupos, no entanto, resistiram com pistolas, bombas caseiras e coquetéis molotov - um deles até com umas armas um pouco melhores, fornecidas pela resistência polonesa que as contrabandeava para dentro dos muros - dizem que até por túneis.

Depois de seis meses de resistência, os judeus poloneses do gueto foram transferidos maciçamente para Treblinka ou simplesmente assassinados em Varsóvia.

Ao longo da história, vários guetos confinaram judeus. Existiram guetos judaicos na Alemanha e na Península Ibérica no Século XIII; o Gueto de Veneza é do Século XIV. Dependendo da circunstância histórica, eram mais ricos, ou mais pobres, mas todos eles traziam o sentido metafórico do isolamento, da exclusão, do preconceito.

A primeira vez que ouvi a expressão "Gueto de Gaza" foi na minha casa. É uma expressão forte - e invertida. Nesse caso, a população judaica está fora do gueto, não dentro. Quem me chamou atenção para essa terrível inversão foi o meu companheiro, descendente de judeus poloneses. De nossa vida em comum, ostentamos, com orgulho, filhos brasileiros de descendência 50% árabe, 50% judaica, e sempre cultivamos a convicção de que seríamos - com outros tantos casais que fizeram a mesma "mistura" - os precursores de um mundo moderno, de paz, laico, em que a religião fosse apenas uma decisão de foro íntimo que não agredisse vizinhos ou causasse guerras.


Tenho acompanhado a angústia de meu companheiro nos últimos dias, no seu frenético procurar por imagens apertando botões da televisão a cabo, doendo por dentro pelas mortes de crianças palestinas, mulheres palestinas, centenas de anônimos palestinos, e tentando entender o que aconteceu com o inconsciente coletivo judaico daquele Israel do qual se sentiu parte quando, aos 18 anos, foi trabalhar num kibutz. É o Estado militarizado, explica: uma cultura entranhada da morte, uma dessensibilização para com a vida do outro, uma radicalização. Como deve ser difícil aos próprios israelenses que não concordam com a guerra entender isso: como a vida do outro pode ter se tornado acessória, como a humanidade pode ter se desumanizado. Lembro Primo Levi, nos seus pequenos e pesados livros em que tentou entender, de sua saída de um campo de concentração até a sua morte, a desumanização imposta pela guerra. "E isso é um homem?", é o título de seu melhor livro, em que descreve um cru percurso de volta ao lar, depois da guerra, quando a sobrevivência tornou cada um daqueles que erravam pelas estradas animais. Isso não é um homem, diria, se aquela pesada literatura necessitasse de uma resposta.

Li no site da "Carta Maior" artigo de Shulamit Aloni, que foi ministra do governo Itzhak Rabin, publicado originalmente no "Israel News", que é um chute no estômago. Escreve ela, em "Sangue em nossas mãos": " O Hamas exigiu a libertação de prisioneiros, e nós argumentamos que muitos deles têm sangue em suas mãos; nós somos muito mais capazes do que eles, mesmo que essa capacidade chegue a matar e leve a assassinatos. Nas primeiras 24 horas da operação matamos mais de 300 pessoas, inclusive duas meninas inocentes, para não mencionar as vítimas que matamos entre essa operação e outras anteriores. Por que nosso tão bem organizado exército, com sua excelente capacidade de inteligência, recusou a libertação de prisioneiros palestinos, quando poderíamos mandá-los de volta para casa e mais tarde assassiná-los no calor da batalha?


Afinal de contas, já estamos sendo usados para assassinatos por ar, mar, em abrigos ou em bairros populosos. Assassinato - isto é, matar e assassinar. Além do mais, as pessoas que jogam nossas bombas não ficam manchadas com sangue. Nosso sistema é simples: não há necessidade de evidência para um julgamento. Uma vez que decidamos que alguém é alvo, jogamos uma bomba e ele se foi. Recentemente, o exército adquiriu permissão para matar civis que estejam próximos de alguém escolhido com alvo; isso foi publicado na imprensa há umas duas semanas, próximo à foto de uma sorridente comandante do exército".

Li também na "Carta Maior" um artigo do secretário-geral da Iniciativa Nacional Palestina, Mustapha Barghouthi, em que a noção de gueto está lá também, cravado na pele: "Quem é mais anti-semita, aqueles que viciaram Israel ano após ano durante sessenta anos, até desfigurá-lo ao ponto de fazê-lo o país mais perigoso do mundo para os judeus, ou aqueles que os advertem de que o Muro marca um gueto de dois lados? É anti-semita reler Hannah Arendt hoje, em que nós, os palestinos, somos a escória da terra; é anti-semita voltar a iluminar essas páginas sobre o poder e a violência?"

A distância da guerra nos dá uma chance de não nos desumanizarmos. Mas a indiferença também desumaniza.

Errei, de novo

Estou incorrendo num péssimo hábito de cometer erros com nomes de autoridades. Já fiz isso antes, tornei a fazê-lo. Ministro Gilmar Mendes, desculpe-me. Tratei-o por "Gilberto Mendes" na primeira linha de minha coluna de 18 de dezembro. Embora eu tenha corretamente me referido ao senhor como Gilmar Mendes no restante da coluna, ainda assim considero que o erro na primeira linha é quase imperdoável. Mas espero que, mesmo assim, usando de sua generosidade, o senhor me perdoe.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

Um instigante laboratório político

Cândido Grzybowski
DEU EM O GLOBO

Após quatro anos, o Brasil volta a sediar um encontro central do Fórum Social Mundial, desta vez em Belém (PA). Em sua nona edição, o Fórum segue para a Região Amazônica, compartida por nove países da América Latina, povos e culturas muito diversos - território em disputa, tanto no acesso e uso de seus recursos naturais como de rumos e sentidos; um dos pulmões do Planeta. Temos muito a dizer sobre a Amazônia, que, de 27 de janeiro a 1º de fevereiro, transforma-se, em realidade, em um instigante laboratório político, ao abrigar o maior evento da sociedade civil organizada.

Em um momento em que mergulhamos em múltiplas crises (entre elas, a financeira), é bom olhar para onde ainda existe esperança: a Amazônia, a nossa Região. Como participante ativo do Fórum Social desde sua primeira edição em Porto Alegre, em 2001, penso que o encontro deste ano convida a nos abrirmos à problemática amazônica e a nos inspirarmos nos diferentes povos e seus territórios, como guardiões que são de um ecossistema fundamental para eles mesmos e para a Humanidade. E nos coloca como desafio, sobretudo, ousar pensar em alternativas ao desenvolvimento, confundido, tantas vezes, com taxas de crescimento a qualquer custo.

Esta é uma tarefa de criação teórica e cultural, mas sobretudo política. Repolitizar a economia e a própria vida, com uma perspectiva democrática radical, de participação, justiça social e ambiental, é o caminho possível para começar a formular um pensamento gerador de alternativas estratégicas. No Fórum Social Mundial aprendemos, entretanto, que não se trata de formular um pensamento único como alternativa. A reordenação do poder e das economias, para que sirvam aos seres humanos, garantido todos os direitos a todos, sem discriminações, precisa estar pautada pela diversidade, de acordo com necessidades e possibilidades dos territórios de cada povo.

A nova arquitetura do poder político é, por si só, a tarefa mais premente: estamos diante da necessidade de uma espécie de refundação em novas bases. Como? Sem dúvida, de ponta-cabeça, do local ao mundial, partindo do princípio que é necessário "democratizar a democracia e a economia". É fundamental valorizar a soberania cidadã, identificando, nesse movimento, o que precisa ser gerido de forma subsidiária por um poder democrático mundial, tendo como base um multilateralismo ativo e solidário, com busca de consensos ao invés de imposição pela força.

O Fórum Social, como espaço aberto, propicia e estimula exatamente esse tipo de atitude, de ousar e dispor-se a estabelecer o diálogo franco, entre as múltiplas organizações da sociedade civil, mas também chefes de Estado e organismos multilaterais. Por tudo isso, o Fórum na Amazônia, neste momento da História mundial, é bem-vindo e inspirador.

CÂNDIDO GRZYBOWSKI é sociólogo e diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Consenso necessário

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. O presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Obama, está teoricamente na posição idealizada por qualquer governante em início de mandato: tem autorização da sociedade americana, e a torcida do mundo, para gastar tanto quanto for preciso para recolocar a economia dos Estados Unidos nos trilhos novamente. Quando ele diz que seu programa de recuperação econômica estará no topo das estimativas, mas não será tão grande quanto muitos economistas sugerem, para não aumentar ainda mais o déficit público, está indicando que o pacote será de no máximo US$800 bilhões, não chegando a US$1 trilhão.

Não foi por outra razão que Obama chamou a atenção para o fato de que o déficit público chegará a US$1 trilhão este ano, quando as previsões mais pessimistas durante a campanha eleitoral calculavam a metade disso. Um déficit público de US$490 bilhões era o número com que trabalhava o futuro diretor de Orçamento do futuro governo, Peter Orzag, considerado um técnico experiente e rigoroso com as contas públicas.

Há, no entanto, a previsão de que o déficit pode ser maior ainda, atingindo US$1,3 trilhão, ou 10% do PIB depois do pacote do novo governo.

Até o momento, as previsões do setor do Congresso que analisa o orçamento são as de que o déficit público já é proporcionalmente o maior desde a Segunda Guerra Mundial, de cerca de 8,8% do PIB.

A dívida externa americana, que chegou a US$10 trilhões antes da crise financeira iniciada no meio de setembro, está a ponto de superar 100% do PIB com os sucessivos pacotes de liquidez já aprovados.

Segundo o CNN Money, o dinheiro aprovado no conjunto pelo Congresso, pelo Departamento do Tesouro e pelo Banco Central americano (Fed) soma a espantosa cifra de US$7,2 trilhões desde o começo da crise financeira.

Com o pacote da nova administração, o total de socorro pode chegar a US$8 trilhões.

Os diversos programas de ajuda atingem vários setores da economia: US$29 bilhões para o Bear Stearns, US$345 bilhões para o Citigroup, US$600 bilhões que o Banco Central americano colocou para garantir os depósitos de poupança nos bancos.

Além dos US$200 bilhões do governo para assumir os gigantes semiestatais do sistema hipotecário no início de setembro, Fannie Mãe e Freddie Mac, o Departamento do Tesouro e o Banco Central uniram esforços para colocar na AIG de seguros US$152,5 bilhões, mais US$325 bilhões no Citigroup e US$23,4 bilhões na indústria automobilística.

O Tesouro também aprovou no Congresso um plano de US$700 bilhões. Além do programa de garantias aos depósitos de poupança, houve o pacote de US$1,4 trilhão para o mercado de commercial paper; US$200 bilhões para um programa de empréstimos ao consumidor; outro de US$500 bilhões de hipotecas.

O aumento do déficit público e da dívida externa leva a que alguns analistas considerem que, a longo prazo, pode estar chegando o momento em que o dólar não será mais a única moeda de reserva do mundo, acontecendo o mesmo fenômeno que atingiu a libra inglesa.

Segundo o historiador Niall Ferguson, as grandes dívidas que a Inglaterra fez para financiar suas guerras pelo mundo, e a desaceleração do crescimento da economia nas décadas do pós-guerra, foram as razões para a mudança.

O processo da transição da hegemonia da Inglaterra para os Estados Unidos, porém, levou décadas, e o dólar continuou disputando o espaço com a libra por quase 60 anos.
E, no momento, não há nenhuma moeda que possa se contrapor ao dólar em termos internacionais, inclusive porque a Europa está em uma situação econômica tão difícil ou pior que os Estados Unidos, o que enfraquece o euro em relação ao dólar.

Apesar de ter sido o detonador da maior crise financeira das últimas sete décadas, os Estados Unidos continuam atraindo os investidores, e não há sinais de que a procura pelo bônus do governo americano, mesmo com o juros chegando a zero, esteja se enfraquecendo, o que dá um fôlego para o governo Obama.

Mas, como as expectativas que ele está gerando desde que foi eleito são muito grandes, e ele sabe que não poderá preenchê-las integralmente, Obama está fazendo um movimento político que pode atrasar a aprovação do seu plano, mas pode dar-lhe o apoio consensual de que precisa para levar adiante os primeiros dois anos de seu governo sem uma oposição ferrenha por parte dos republicanos.

Mesmo com 59 das 100 cadeiras do Senado de posse dos democratas, o que praticamente garante a aprovação de qualquer futuro plano, Obama está decidido a obter o apoio de pelo menos 80% do Senado, o que significa dizer que quer o apoio de pelo menos 20 senadores republicanos.

Essa busca de um consenso político reflete não apenas a disposição de fazer um governo suprapartidário, ou pelo menos bi-partidário, mas o reconhecimento de que a dívida que assumirá nos próximos anos será impagável se as forças políticas não se sentirem responsáveis conjuntamente pelo plano de soerguimento da economia americana.

Barack Obama: os desafios

Kenneth Maxwell
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BARACK OBAMA será um tipo diferente de presidente nos Estados Unidos. Ele é produto de origens multiculturais e suas raízes políticas também são multiculturais. Chicago é a base de sua carreira política, mas suas origens são mais amplas. Ele foi criado no Havaí. Seu pai era um médico queniano que se divorciou da mãe de Obama quando o menino tinha dois anos. A mãe do presidente eleito era o protótipo da mulher dos anos 60, obstinada e independente. Obama foi criado por seus avós, e durante quase dez anos frequentou a exclusiva Punahou School, na época quase inteiramente branca.

Ele fez faculdade na Califórnia e também estudou em Nova York antes de chegar a Harvard, onde se tornou presidente da "Law Review". Depois, se assentou no South Side de Chicago, onde fortaleceu seus elos com a comunidade negra dos Estados Unidos. Casou-se com Michelle, uma advogada negra, e tem duas filhas. Foi na política de Illinois que ele fez carreira, com trabalhos comunitários em nível local e mais tarde como membro do Legislativo estadual; posteriormente, se elegeu para o Senado federal, em Washington.

Nada disso garante que ele venha a ter mais sucesso do que seu predecessor ou que demonstre mais competência para enfrentar os assustadores desafios que terá de encarar como presidente.

Mas ao menos haverá uma espécie inovadora e diferente de indivíduo na Casa Branca. Os dilemas que terá de enfrentar serão formidáveis, para dizer o mínimo. A necessidade de estimular uma economia moribunda; mercados financeiros devastados; guerras no Oriente Médio, tudo isso requer liderança e mão firme. Mas a prioridade precisa ser estimular a economia. É quanto a isso que emergirão dificuldades para o novo presidente.Não existem soluções simples.

Nos Estados Unidos, o preço médio das casas caiu em toda parte. O crédito está muito apertado. As consequências mais amplas desses desdobramentos só agora começam a se fazer sentir, especialmente para a classe média, que tem na propriedade de moradias um de seus principais ativos. O declínio dos preços afetará as pessoas diretamente.

Barack Obama terá de reassegurar à vasta maioria da população de que o seu principal investimento manterá o seu valor. Mas o fiasco do mercado hipotecário deixa pouca margem de manobra. O mercado de habitação está repleto de imóveis não vendidos e abandonados, especialmente no sul da Califórnia e no sul da Flórida.

Barack Obama precisará oferecer medidas concretas de assistência aos cidadãos comuns. Será um de seus mais formidáveis desafios.

Kenneth Maxwell escreve às quintas-feiras nesta coluna

Simples assim: pela paz!

Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - Só fui a Israel uma vez, como turista. Visitei do norte, na fronteira com o Líbano, até o extremo sul, entre Egito e Jordânia, rodando pela Cisjordânia nos limites com a Síria. O que mais impressiona é que judeus e árabes vivem lado a lado, bairro a bairro, numa proximidade inimaginável.

Olhando Jerusalém do alto, é possível distinguir, pela disposição e pela nuance de cores, onde moram uns e outros. E, de baixo, cruza-se o tempo inteiro, ora com as famílias muito claras dos judeus, ora com as famílias morenas dos árabes, ambas geralmente numerosas.

Um judeu ali pelos 70, engraçado e falando várias línguas, levou meu grupo de apenas quatro pessoas a um restaurante árabe. A chegada foi esfuziante, com abraços e sorrisos de velhos conhecidos. Daí a pergunta: "E numa guerra?". Do nosso companheiro, sem titubear: "Ou eles me matam, ou eu mato eles".

A milhares de quilômetros dessa história, dessa cultura e das dores do Oriente Médio, convém evitar defesas ou acusações apaixonadas e o erro de reagir aos atuais ataques a partir só de 1947, de 1967 ou de 2005, cortes que nos empurram para um lado ou para outro, inevitavelmente. A questão vem de muito antes, é daquelas em que todos têm razão e ninguém tem razão, enquanto potências movem peças de acordo com suas conveniências.

O que podemos e devemos é discordar tanto dos foguetes inconsequentes do Hamas quanto da "reação desproporcional" de Israel -como acusam os governos, inclusive o do Brasil, que apita pouco, mas não se omitiu e tem sido coerente com sua política externa.

Agiu contra a unipolaridade norte-americana e sua tendência pró-Israel. E respaldou a ação combinada da França e do Egito -os dois países que Celso Amorim primeiro procurou- pelo cessar-fogo e pela reabertura de canais de negociação.

Ou seja, pela paz. Que, aliás, é justamente o que nos cabe fazer nesse momento de sangue e de dor.

Eleições inflamáveis

Vinicius Mota
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - A retirada das colônias judaicas de Gaza e a criação do partido Kadima, para unir moderados à direita e à esquerda, foram cartadas surpreendentes do então premiê Ariel Sharon -que adoeceu e saiu da vida pública a seguir.

A iniciativa, promissora, sofreu corrosão acelerada. Três anos depois, o governo do Kadima declarou "guerra total" contra o Hamas, entre outros motivos, para tentar evitar o triunfo da direita radical de Binyamin Netaniahu nas urnas.

No intricado jogo do Oriente Médio, quando alguém mexe uma peça, deflagra reconfiguração em todo o tabuleiro cujo sentido final está fora de seu controle e às vezes contraria seu interesse. Israel vota em fevereiro; Irã e Líbano, em junho.

A ofensiva de Israel em Gaza veio a calhar para a plataforma eleitoral dos movimentos islâmicos extremistas naqueles dois países. No Líbano, o temor é que o Hizbollah, grupo xiita patrocinado pelo Irã e pela Síria, obtenha vitória estrondosa e desequilibre o precário balanço de forças na política libanesa.

Seria o golpe de misericórdia no movimento moderado e modernizante que, em 2005, pôs fim a três décadas de tutela síria no Líbano. No Irã, os bombardeios sobre Gaza dão pretexto para que a linha dura -insuflada pelo alucinado Mahmoud Ahmadinejad, que tentará a reeleição- aperte o cerco contra os reformistas. Um grande jornal desta tendência foi fechado pelo regime na última semana de dezembro.

Dias antes, o escritório da ativista de direitos humanos Shirin Ebadi, Nobel da Paz em 2003, havia sido fechado e devassado pelo governo.

Numa atitude inusual nos quase 30 anos do regime fundamentalista xiita, o líder supremo do país se inclina para um dos lados da disputa presidencial: o aiatolá Ali Khamenei dá declarações de apoio a Ahmadinejad. Nome mais forte entre os reformistas, o ex-presidente Mohammad Khatami sofre pressões para não anunciar candidatura.