quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Líderes, gerentes ou chefes

RENATO JANINE RIBEIRO
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


FHC e Lula definiram um alto padrão para a função presidencial: o de líder. É o que torna difícil imaginar Dilma na Presidência

QUATRO MANDATOS sucessivos de governantes do calibre de Fernando Henrique e Lula foram definindo um alto padrão para a função presidencial: o de líder. Esse papel é referência e modelo para quem quiser o cargo em 2010. É o que torna difícil imaginar Dilma Rousseff na Presidência. Pode ser uma boa gerente de projetos, mas não é uma líder que mobilize as pessoas. Sabe ser dura e mandar. Mas a qualidade dos dois últimos presidentes é outra: persuadir, unir, em suma, liderar.

Vamos distinguir gerente, chefe e líder. Um jornalista econômico lamentava a falta de apetite gerencial de FHC. Não concordo. Gerente pode ser o governador de São Paulo, presidenciável constante, mas a quem talvez falte a fagulha da liderança.

Um presidente tem de ir além do seu partido, e não só porque vai costurar uma coalizão, mas porque precisa lidar com um país complexo e liderar, em última análise, o próprio Brasil.

Assim foi que FHC emplacou o Plano Real, as privatizações e a posse tranquila de Lula, e Lula viabilizou uma política social mais audaz e a inclusão da esquerda entre os atores políticos aceitos no país. Fossem gerentes...

Dilma presidenta seria, apesar de seus méritos, um enorme problema para o PT. Pouco do que ela diz ou faz corresponde aos valores históricos centrais do partido. Parece mais empenhada em aumentar a produção, em articular governo e empresários.

Isso deixa um vazio de valores. É como se o meio -o crescimento econômico- se tornasse fim. E os fins -múltiplos, mesmo contraditórios- que o PT propunha? Eles somem.

Imaginemos, em seu lugar, um chefe. Fernando Haddad disputa esse papel. É o único ministro importante que tem mídia constante e favorável, graças em parte a uma ótima assessoria.

Defende uma causa nobre (educação), enquanto Dilma se dispõe, para ter energia no rio Madeira, a sacrificar bagres. Melhor educar que eliminar peixes. O plano de Haddad para a educação é bem concebido, embora reste ver se e quando será executado.

Mas um chefe não é um líder. Um chefe dá ordens, nomeia, demite. Um presidente, não. O único ministro que Lula demitiu diretamente -Cristovam Buarque, por celular- lhe custou caro.

Melhor mandar um emissário pedir o cargo. Presidentes, se forem líderes, não mandam. Falam.

Seduzem. Quem chefia um ministério pode querer que ele seja homogêneo. Já um presidente administra ministros em conflito e, além disso, precisa de pontes com a oposição.

Ouvi um político francês definir um líder: "Sua melhor qualidade é que ele descobre muito rapidamente o que as pessoas querem". Esse é um dom: o líder dá menos do que as pessoas pedem, mas isso porque elas mesmas não sabem o que desejam. Tal capacidade de escutar nada tem a ver com gerenciar ou mandar. É estratégia, não tática; é persuasão, não ordem.

Não é disciplina, é conciliação.

O Brasil não terá governos de um partido só. Estamos fadados a ter maiorias de coalizão no Congresso. O presidente da República, embora poderoso (ainda bem, senão viraria refém dos parlamentares), precisa unir da esquerda do PT até Delfim Netto.

Daí que seja tão importante ele falar.

Delega a gestão a primeiros-ministros de fato, gerentes como Sérgio Motta, Dirceu, Dilma. Eles podem dizer grosserias: "masturbação mental" (Motta), "tiro no pé" (Dilma). O presidente deve se poupar.

O PT tem um líder a propor para 2010? Difícil. Uma hipótese é viabilizar Patrus Ananias, que vive uma espantosa discrição: afinal, ele tem a pasta do Bolsa Família; mas, mineiramente calado, não se queima. Porém, a prioridade um do PT é: se este é o governo mais popular em várias décadas, por que dar a sucessão a outro partido? O PT proporá um nome de dentro, mas seu estoque é pequeno.

Por outro lado, como a prioridade dois -não do PT, mas de Lula- parece ser eleger o próprio Lula em 2014, poderia ser alguém que se contentasse com um mandato. Pois, hoje, elegemos governantes por oito anos, com um "recall" no meio. Talvez Dilma tope ficar um mandato só.

Haddad, não.

Para ele, é melhor esperar do que se queimar como Medvedev brasileiro.

A alternativa é eleger alguém de oposição. O PT sairia do governo, recuperaria as raízes, Lula seria candidato natural em 2014. Mas quem a oposição tem? Serra, seu nome óbvio, lembra Dilma. Gerente, chefe, seu forte não é a persuasão. E como FHC era bom nisso! Ele e Lula, depois e ao contrário de Collor, souberam ir além de suas identidades imediatas. Mais uma vez: esse é o papel de um líder.

Por isso, Alckmin não servia. Estava longe desse perfil elevado. Serra, com esforço, talvez se torne líder.

Haddad tem tempo para isso, mas ainda não o é. Na oposição, quem hoje parece mais talhado para líder é Aécio -que tem seu primeiro-ministro, um ótimo vice, Antonio Anastasia.

Em suma, o Brasil colocou a política acima da gerência. Acho isso bom. Custa alguma coisa deixar a gestão em segundo plano, mas custaria ainda mais gerir sem apoio político. Técnicos no poder funcionaram na ditadura. Na democracia, não bastam.

Renato Janine Ribeiro, 59, é professor titular de ética e filosofia política na USP. Foi professor visitante na Universidade Columbia e diretor da Capes (2004-2008).

Patrimônio desperdiçado

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O presidente Luiz Inácio da Silva tem 80% de popularidade, maioria absoluta no Congresso e o apoio oficial de quase todo o espectro partidário do País, à exceção de três ou quatro legendas.

Pois bem. Nada disso tem serventia na hora de negociar com o PMDB a preservação do equilíbrio ecológico no Parlamento, garantindo o cumprimento de um acerto pelo qual o maior e o segundo maior partido da coalizão governista partilham o poder no Legislativo.

A oposição morre de medo de Lula. Não ousa contrariá-lo, não se atreve nem mesmo a enfrentá-lo de peito aberto em eleições. Não fez do presidente ou de seu governo personagens das campanhas municipais de 2008 e, para 2010, já avisou que não quer confusão com ele.

O PT engole todos os sapos que lhe são servidos, independentemente do tamanho, o mundo político todo reverencia Lula, menos seu principal aliado, o PMDB, que faz dele o que quer.

Obrigou o presidente a assumir a entrada na briga pelas presidências da Câmara e do Senado, pela primeira vez nos dois mandatos, e impôs o roteiro.

Michel Temer, candidato a presidente da Câmara, avisou que não iria ao encontro marcado com o partido porque não lhe interessava misturar a eleição da Câmara com a do Senado. Foi recebido em particular.

José Sarney, no papel de bucha de canhão, adia à conveniência do partido uma conversa com o presidente da República mediante a mais batida das desculpas (gripe forte) e Lula não tem jeito a não ser esperar e ainda mandar sua assessoria espalhar que ao Planalto sabe bem a hipótese de o PMDB acumular as duas presidências.

Claro que não é verdade, mas é a versão cabível na situação. Qual situação? De absoluto constrangimento. Não para o partido, cuja tarefa é esta mesmo: ampliar espaços, influir na eleição de 2010 para se engajar no próximo governo.

Uma maneira confortável de assegurar acesso à máquina pública sem se dar ao trabalho de disputar o poder na conquista da maioria do eleitorado nacional.

Se resolvesse pagar para ver, o presidente Lula correria maiores riscos e teria mais trabalho. Mas talvez ganhasse a parada por um motivo simples: se o governo precisa do PMDB, o partido ainda precisa muito do governo.

Há dois anos de mandato pela frente, cinco ministérios, presidências, diretorias de estatais importantes e inúmeros cargos federais ocupados. Todos devidos aos votos conquistados por Luiz Inácio da Silva nas urnas.

Tentativa e erro

A direção da Câmara recuou de dois atos erráticos, mas nem por isso se pode dizer que tenha acertado ou que seja louvada a decisão de anular a criação de R$ 48 milhões em novas gratificações e a contratação de plano de saúde (sem licitação) para assessores por indicação política.

Certa a direção da Câmara estaria se não tivesse tomado nenhuma das duas decisões; se não tivesse aceitado a presença de um lobista da empresa de medicina privada na reunião privativa de deputados; se tivesse tomado as atitudes corretas.

É bom lembrar que a tal reunião da semana passada que ensejou óbvias críticas, era para decidir um corte de despesas, uma medida de organização de gastos. Os deputados integrantes da Mesa encontraram-se no recesso para estabelecer novas normas de ressarcimento nos tratamentos médicos, impor limites, evitar abusos tais como o custeio de despesas em spas.

Ao fim do encontro haviam inventado novos gastos e plantado a semente de um escândalo. É difícil acreditar que suas excelências não tivessem noção do que estavam fazendo, bem como é inaceitável que tenham voltado atrás pelas razões alegadas: contestações na Justiça por parte dos funcionários concursados.

Se é como dizem, pior, demonstração cabal de que tomam decisões de forma leviana. Desinformados, cedem a qualquer lobby que lhes pareça interessante.

Portanto, que não se perca o senso de realidade: a Mesa da Câmara recuou não por reconhecimento de um equívoco esporádico. Recuou porque já não tem como administrar impunemente a persistência no erro.

Cada qual

A tentativa de Anthony Garotinho de se filiar ao PSDB, depois da perda de espaço no PMDB do Rio para o governador Sérgio Cabral, obrigará o tucanato a uma definição.

Precisará escolher se terá a imagem de Fernando Gabeira, cuja candidatura à prefeitura em 2008 foi patrocinada pelo PSDB de olho na eleição de 2010, ou se assumirá o perfil de Garotinho.

Por mais larga que seja a extensão, não há muro que abrigue as duas hipóteses, por excludentes.

Por dentro

A ministra Dilma Rousseff ficou mais bonita mesmo com a nova programação visual. Falta agora uma remodelada no temperamento a fim de torná-lo mais benevolente à convivência com os mortais.

Somos presos comuns

Stepan Nercessian
DEU EM O GLOBO


Em Copacabana o cidadão me para, declara-se meu eleitor e dispara: - E aí, meu vereador, posso confiar que este ano sai o Código de Ética?

- Vamos trabalhar para isso, vamos trabalhar.

Vale lembrar que um pouco antes das últimas eleições, em um longo julgamento no STF, do qual participaram onze ministros, seis decidiram liberar os candidatos que respondem a processos na Justiça - os chamados "fichas sujas", para que pudessem concorrer nas eleições municipais.

Temos aqui na Câmara um projeto em andamento. O que mais se escuta é que, tal como está, receberá muitas emendas e um semestre mais se passará sem que seja votado.

Pensamos, muitos vereadores, em criar a Comissão de Ética antes do código e nortear a ação dessa Comissão por preceitos escritos em decreto que prevêem punições e sanções até razoáveis "enquanto seu lobo não vem".

Essa é uma parte do enredo, mas tem outras importantes de serem estudadas:

1. Vereador não tem imunidade parlamentar, assim como nenhum político deveria ter. Ao contrário dos deputados, senadores e ministros, vereador pode ser processado e preso em qualquer das 24 horas do dia sem autorização de ninguém.

2. Para ser vereador é necessário ser filiado a um partido político. Não tem vereador avulso, e inclusive o mandato pertence ao partido.

3. Os partidos têm regimento interno, estatuto e a maioria deles sua comissão de ética.

4. Para ser candidato o partido precisa promover o registro de cada um na Justiça Eleitoral, que tem um rol de exigências, documentos e certidões que são um verdadeiro raio X da vida pregressa do candidato a candidato.

5. A Justiça Eleitoral aceita o registro e promove as eleições apenas com nomes aprovados por ela.

6. O povo elege.

7. A Justiça Eleitoral diploma e empossa.

8. A Câmara tem regimento interno. O Município tem Lei Orgânica e o vereador eleito é obrigado a conhecê-la e respeitá-la.

9. A Constituição Federal, em seu art. 5º , inciso LVII, dispõe: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória." Dessa forma, a nossa lei maior garante o princípio da presunção de inocência.

Para não virar dez mandamentos fico nos nove.

Acredito que a discussão é mais profunda, pois o sujeito, antes de assumir, passa por diversas "peneiras", que poderiam muito bem depurar a situação civil e criminal do postulante ao cargo público.

Existe o alistamento eleitoral, a filiação partidária, a convenção nos partidos para a escolha dos candidatos, a eleição, a diplomação e a posse. Chega a ser risível que só depois desse processo todo se descubra que o indivíduo é incapaz para exercer o cargo, salvo tenha cometido o crime ou delito no transcurso de uma dessas etapas.

O verdadeiro Código de Ética da Câmara Municipal deve ser escrito a muitas mãos. Não é voo solo. Por isso acredito que os partidos devem escolher melhor e com mais rigor seus candidatos; os eleitores, em quem votam; e os tribunais, a quem diplomam.

As portas deste Palácio estarão sempre abertas para a participação popular e para que a Justiça cumpra seus mandados de prisão sem precisar de autorização do plenário. Por enquanto, ao contrário das Câmaras estadual e federal, vereador ainda é parecido com o povo em geral, somos presos comuns, sem direito a prisão especial. Aproveitem.

STEPAN NERCESSIAN é ator, vereador (PPS) e atual vice-presidente da Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

Definição, quase certa, de Sarney no Senado reforçará papel autônomo do PMDB em 2010

Jarbas de Holanda

Malgrado sujeita ainda a contramarchas que podem voltar a embolar o jogo, adiando a decisão para o final do segundo tempo ou até para a prorrogação, afirma-se a tendência de escolha de José Sarney como candidato do PMDB e do Palácio do Planalto à presidência do Senado. Com o esvaziamento da alternativa partidária da proposta de reeleição de Garibaldi Alves, colocada em termos de confrontação com o Executivo e juridicamente questionável. E com uma progressiva inviabilização da candidatura petista de Tião Viana, em face da recusa do presidente Lula de assumi-la para valer por preferir um acerto com o centrista Sarney ao risco de derrota do governo num confronto com uma aliança entre a bancada do PMDB e a oposição. Apesar de resistências desses dois postulantes, já é quase certo que o ex-presidente da República e do próprio Senado poderá contar com o cenário que armava e ao qual subordinava sua indicação – unidade da bancada majoritária do PMDB, o respaldo de Lula e o apoio dos dois grandes partidos oposicionistas, o PSDB e o DEM.

Reação de José Dirceu – Em manifestação feita segunda-feira em seu blog e transcrita ontem em reportagem do Valor – “José Dirceu pede a petistas que se rebelem contra peemedebistas” -, o ex-ministro recomenda ao PT que resista à perspectiva de controle do PSDB das duas casas do Congresso. Ele avalia que as eleições para os presidentes e as mesas diretoras delas tornaram-se “uma ante-sala do pleito presidencial de 2010”, com uma rearrumação excludente do PT e indicativa de “que o PMDB está dividido entre os projetos tucano e do governo Lula”. Propondo uma forte reação na Câmara dos partidos menores e do PT contra a definição pró-Sarney que se configura entre os senadores, José Dirceu diz que se “o PMDB não quer Tião Viana no Senado, o PT precisa levar isso em conta. Não pode simplesmente fazer de conta que não está acontecendo nada”. E questiona: “Até quando o PMDB, o governo e o PT vão manter essa disputa em silêncio e como se nada estivesse acontecendo”.

O ex-chefe da Casa Civil, que segue tendo muita influência na direção do PT, de fato tem razão: a escolha já praticamente garantida de Michel Temer para a presidência da Câmara, combinada com a de Sarney para o comando do Senado, ao reforçar significativamente o peso político e institucional do PMDB prefigura a montagem das peças-chave de um tabuleiro legislativo da sucessão presidencial à vista bem diverso daquele em que Lula dava as cartas na disputa da reeleição em 2006 – com a presidência da Câmara ocupada por um indicado seu, Aldo Rebello, e a do Senado por um peemedebista então estreitamente vinculado a ele, Renan Calheiros. E esse contexto melhorou ainda mais para o Executivo na primeira metade do segundo mandato lulista, com a adesão do conjunto do PMDB em troca apenas de mais espaço na máquina governamental (embora bem menor que o do PT) e ampla subordinação do partido aos projetos político-eleitorais do presidente.

Tal relacionamento PMDB/governo Lula começou a mudar de qualidade no final de novembro e ao longo de dezembro de 2008. Repetindo avaliação feita aqui nesse período, o projeto que o colegiado dirigente do PMDB anunciou então para a conquista do comando das duas casas do Congresso baseou-se na vitória da legenda nas eleições municipais e em uma releitura pragmática das perspectivas da sucessão presidencial de 2010. Aspectos básicos dessa releitura: 1) Em fim de mandato, preservando alta popularidade mas sem poder transferi-la a candidato de seu partido, e tendo à frente um horizonte de crise econômica, com previsível desgaste político e social, o presidente Lula passa a depender muito mais de um PMDB fortalecido no pleito municipal e majoritário nas duas casas do Legislativo federal. 2) A manutenção e até um aumento do papel do partido no governo serão melhor garantidos se ele controlar a presidência das duas instituições. 3) O exercício desse papel não excluirá a exploração de outras alternativas em 2010, além da de apoio ao nome indicado por Lula: a de aliança em torno da candidatura oposicionista do governador de São Paulo, José Serra, ou da proposta reformista “pós-Lula” do governador mineiro Aécio Neves, se ele vier a ser o indicado, pelo PSDB, o que hoje é improvável, e a de candidatura própria, se Aécio correr o risco de aceitar reiterados convites de dirigentes do PMDB para troca de legenda.



Freio de arrumação

Mércio Pereira Gomes
DEU EM O GLOBO

Por maioria expressiva de oito votos, o STF reafirmou a legalidade constitucional do decreto presidencial que homologou a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, localizada na parte mais setentrional do Brasil, em Roraima, onde vivem 19.000 índios ingaricós, macuxis, vapixanas, taurepangues e patamonas. Manteve os limites estabelecidos e ordenou a retirada dos invasores arrozeiros.

É a consagração do indigenismo brasileiro criado pelo Marechal Rondon em 1910, cujos resultados estão concretizados na demarcação de 550 territórios indígenas que perfazem 1,1 milhão de hectares, ou 12,9% do território nacional. O Brasil dá mais um passo em busca da reconciliação com os povos indígenas, sobre cujas terras originais se constituiu como nação. Os ministros do STF votaram com o coração na mão, cientes de que estavam proferindo as bases do reconhecimento dos direitos mais profundos daqueles índios. Reafirmaram a validade do processo de reconhecimento de terras indígenas e acolheram a visão rondoniana de que a realidade indígena está inserida integralmente na nacionalidade.

Nas ressalvas, os ministros deram resposta a todos os disputantes. Aos militares, concederam o direito de entrar em terras indígenas sem ao menos consultar os índios, caso seja do interesse nacional; aos servidores, estabelecram a legitimidade de ação do Estado. Aos índios, foi-lhes reafirmada a proibição de arrendar terras a não-índios, por terem o usufruto exclusivo.

Enfaticamente, o STF se pronunciou sobre o princípio de que o direito indígena não se sobrepõe ao direito da defesa nacional e da proteção do meio ambiente. Afirmação juridicamente desnecessária, apenas para politicamente posicionar a Constituição brasileira acima da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, promulgada pela ONU, que fala em seu artigo 3º que os índios têm direito à autodeterminação. Adicionalmente, propôs novos parâmetros para regular a demarcação de novas terras indígenas, parâmetros que vão requerer a anuência de estados e municípios sobre o reconhecimento dessas terras.

Por tudo isso, o STF deu um freio de arrumação no indigenismo brasileiro. Agora caberá ao Executivo e ao Legislativo interpretar essa decisão histórica, agir na reformulação da política indigenista, sem comprometer os princípios rondonianos, e assim postar-se à altura dos novos tempos.

Mércio Pereira Gomes é antropólogo e foi presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai).

A pequena política

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. O inesperado problema enfrentado por Timothy Geithner para sua aprovação no Congresso como secretário do Tesouro e a resistência bipartidária à liberação da segunda parcela do pacote de U$350 bilhões já aprovado são exemplos das dificuldades políticas que o futuro presidente, Barack Obama, encontrará quando assumir a Casa Branca, dificuldades que o sentimento de fazer história com sua eleição não evitará, mesmo que o clima de festa volte a dominar o país dentro de poucos dias, no que será a maior e mais cara cerimônia de posse de um presidente nos últimos anos.

A tentativa de fazer um governo de apoio suprapartidário chega ao cúmulo de Obama ter se reunido para jantar na noite de terça-feira com um grupo de jornalistas conservadores de várias publicações, e ontem pela manhã ter se reunido com outro grupo, dessa vez de jornalistas liberais.

A obsessão pelo governo de união nacional pode criar embaraços para políticas oposicionistas sem fundamentos, mas não está impedindo que a pequena política de Washington esteja sendo exercida em sua plenitude, aquela mesma política que Obama prometeu mudar ao ser eleito.

E a pequena política começa pelo seu próprio partido que, mesmo tendo uma grande vantagem numérica sobre os republicanos, não quer abrir mão de qualquer naco do poder e tem se esmerado em enviar recados ao futuro ocupante da Casa Branca.

O fato de a Comissão de Finanças do Senado não ter conseguido, graças à atuação dos senadores republicanos, marcar a audiência de Timothy Geithner para antes da posse de Obama é apenas uma pequena demonstração de força que a minoria está dando, pois não há indícios de que a nomeação do futuro secretário de Tesouro esteja ameaçada.

O próprio Geithner está tendo que telefonar pessoalmente para cada um dos senadores explicando seu engano na declaração de imposto de renda, de todo modo já sanado com o pagamento do devido, acrescido de multas.

Enquanto luta pela sua aprovação, Geithner vai permitindo que um companheiro de equipe econômica conhecido por ser espaçoso ocupe o lugar de destaque nas discussões da futura política econômica.

O ex-secretário de Tesouro Larry Summers, nomeado para chefiar o Conselho Nacional de Economia justamente para não ter que se submeter a uma sabatina no Senado, hoje é o porta-voz da equipe econômica, e, enquanto ele discute com as lideranças políticas e empresariais o futuro pacote de recuperação da economia, Geithner discute seus problemas pessoais.

Temia-se que os problemas que Summers teve quando presidente da Universidade Harvard, de onde teve que sair depois de ter provocado uma polêmica com grupos feministas e o corpo de professores ao afirmar em uma palestra que as mulheres têm menos capacitação para o ensino de ciências exatas, como a matemática, pudessem atrapalhar sua aprovação no Senado, e o Conselho Nacional de Economia foi um lugar proeminente o suficiente para abrigá-lo sem exigir negociações políticas.

Além do fato de que a situação econômica parece a cada dia pior, sem uma previsão de quando se chegará ao fundo do poço, já se discute como será o mandato de Barack Obama com a expectativa de que os resultados da economia não serão melhores nos próximos dois ou três anos.

A folgada maioria que os democratas hoje têm no Congresso, fruto do desgaste do governo Bush e da simbologia da candidatura de Obama, poderá ser revertida na eleição dentro de dois anos.

Bill Schneider, analista da CNN, fez uma interessante análise sobre como presidentes que assumiram o cargo com o país em crise reagiram às dificuldades. Quando Ronald Reagan e Bill Clinton chegaram ao poder, o desemprego estava na faixa de 7%, a mesma taxa com que Obama chegará à Casa Branca.

Os primeiros dois anos foram difíceis, o desemprego aumentou, e em consequência o Partido Republicano perdeu 26 cadeiras na Câmara, mas manteve a mesma representação no Senado. No final de seu primeiro mandato, o desemprego voltara à mesma situação da posse, mas a inflação foi controlada, e Reagan conseguiu se reeleger facilmente.

Já Bill Clinton conseguiu reduzir o desemprego nos primeiro dois anos de seu mandato, mas mesmo assim os Democratas perderam a maioria no Congresso nas eleições de meio de mandato, por conta de outros problemas internos, como planos de saúde e impostos.

Mas a economia acabou melhorando bem no final de seu primeiro mandato e ele conseguiu se reeleger. A conclusão é que a economia tem uma parcela ponderável na aprovação presidencial, mas as eleições parlamentares são travadas dentro de outros parâmetros que podem mudar o controle do Congresso.

A eleição de um candidato democrata sempre pareceu uma consequência natural da falência do governo Bush, mas uma crise como a atual, sem precedentes desde a Grande Depressão, ajudou a consolidar a posição de Barack Obama.

Se, ao contrário do anseio generalizado, o novo governo não conseguir, como tudo indica, normalizar a economia nos primeiros anos de seu primeiro mandato, a frustração quase certamente afetará o Partido Democrata nas eleições de 2010, mesmo que mais adiante Obama consiga se recuperar.

É por isso que os políticos estão jogando duro nesse início de legislatura, democratas tentando evitar erros do futuro governo que coloquem em risco seu poder, enquanto republicanos farejam a retomada do poder dentro de dois anos.

A hora do prejuízo

Ricardo Melo
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Não adianta ministro espernear e o presidente reclamar. Mantidas as regras do jogo, o volume de demissões daqui para frente só tende a crescer. Na lógica do mercado, a conta é simples: se as vendas caem, o crédito diminui e a crise internacional corre solta, a ordem do dia em qualquer empresa é cortar custos. E, na contabilidade fria dos executivos e dos consultores que sobrevoam o chão de fábrica, emprego é custo, e estamos conversados. A Fiesp que o diga: aceita reduzir salário e jornada, mas não oferece garantia de emprego.

Bafejado pelo vento supostamente a favor da economia mundial, o governo Lula pôde acender uma vela a Deus e outra ao diabo nestes últimos anos. Manteve os juros lá em cima para alegria dos banqueiros, engordou a conta bancária do empresariado graúdo e, ao mesmo tempo, distribuiu o Bolsa Família para tirar milhões de brasileiros da condição de miséria absoluta.

O desafio é mexer nas regras do jogo, e para que lado. Até agora, Brasília só tem beneficiado o pessoal de cima. Menos imposto, mais prazo para pagar tributos, injeção de dinheiro do BNDES, malabarismos financeiros para salvar bancos -o pessoal da avenida Paulista não tem muito do que se queixar.

Depois que a bolha furou e as vacas emagreceram, o governo pode manter a linha de deixar privatizar lucros e mandar socializar prejuízos, como vem prevalecendo até aqui. Mas pode também forçar o pessoal endinheirado a colaborar um pouco na travessia do deserto.

As montadoras bem que podiam dar o exemplo. Uma olhada nos dados da Anfavea indica que, excluída a rubrica de máquinas agrícolas e automotrizes, o setor, em 1991, empregava cerca de 110 mil pessoas para produzir 960 mil veículos. Já no ano passado, com praticamante o mesmo número de funcionários, as empresas fabricaram nada mais, nada menos que 3,2 milhões de unidades. O ganho espantoso de produtividade, tenha certeza, não foi parar no bolso dos trabalhadores.

Ressacas da grande festa

Maria Clara R. M. do Prado
DEU NO VALOR ECONÔMICO


De tudo o que se tem ouvido sobre a crise e o pós-crise, poucas avaliações merecem leitura cuidadosa na certeza de que há ali algo de profundo e coerente.

Por sorte, alguns dos poucos grandes economistas brasileiros existentes, refratários que são às luzes da ribalta e à incômoda eventualidade da crítica, emergem de vez em quando de seus retiros para elucidar fatos e melhor organizar o entendimento das relações entre causas e efeitos dos fenômenos econômicos.

Assim se encaixa o recente escrito de André Lara Resende, apresentado em seminário na Casa das Garças em dezembro e muito apropriadamente intitulado "Em Plena Crise: Uma Tentativa de Recomposição Analítica". Ele fala da confiança exagerada no desenvolvimento das políticas macroeconômicas e no bom funcionamento dos mercados e de como essa confiança explica os excessos das últimas décadas, além da incapacidade de compreender os riscos incorridos.

A recomposição analítica de André - autor em 1985, junto com Pérsio Arida, do plano Larida, que anos mais tarde foi o embrião teórico do Plano Real - parte dos quatro elementos constitutivos do que consensualmente era visto como boa gestão macroeconômica: 1) política monetária ativa, com BC independente e metas de inflação; 2) livre movimento internacional de capitais; 3) câmbio flutuante, com mínima intervenção e 4) política fiscal que mantenha em torno de 50% a relação dívida/PIB.

A confiança de investidores internacionais é a argamassa dos quatro pilares. Mas isso não foi suficiente para evitar as várias crises ocorridas nas últimas três décadas nos países periféricos. Aqui entra o que André chama de confiança condicional, aquela que se referencia à instabilidade inerente à sua adoção.

"A razão dessa instabilidade é que a teoria determina que para se ter os dois primeiros elementos, isto é, para poder ter simultaneamente uma política monetária ativa e o livre movimento de capitais, é necessário adotar também o terceiro, o câmbio flutuante. Ocorre que, especialmente para as economias que não têm confiança irrestrita, o câmbio flutuante é fonte de instabilidade e de perturbações. O ideal seria ter um câmbio administrado para garantir baixa volatilidade, maior previsibilidade e menores perturbações, tanto sobre o preço e o controle da inflação, como sobre o bom andamento dos fluxos do comércio internacional", diz ele.

E segue: "se o quarteto (os quatro pilares) é potencialmente instável, e se sem ele não há confiança, o resultado são crises recorrentes (nos países periféricos)". Como se uma espécie de incongruência latente se impusesse aos países em desenvolvimento, instados que foram a adotar todos os pilares da boa gestão macro mas sempre sujeitos à desconfiança inerente à função do câmbio flutuante na equação.

Uma vez desencadeada a crise, a instabilidade do quarteto macro adquire um aspecto perverso que agrava os elementos recessivos do fim do ciclo de expansão.

Nesse ponto, André Lara Resende amplia sua análise para o contexto da crise global ao chamar a atenção para o fato de que os ciclos econômicos "não são internacionalmente sincronizados". A adoção de uma política monetária restritiva para controlar pressões inflacionárias internas em ambiente de baixas taxas de juros internacionais valoriza a moeda até que o desequilíbrio externo passa a ser percebido como insustentável. E vice-versa. Resulta daí, em ambas as situações, uma pressão perturbadora sobre a taxa de câmbio.

A situação difere nos países centrais, detentores de moeda-reserva (EUA, Japão e zona do Euro, além de Inglaterra e Suíça) onde a confiança é irrestrita, não havendo portanto instabilidade na adoção do câmbio flutuante. Ali, "a desvalorização da moeda deixa de ser um fator agravante de uma eventual crise para se converter em parte da solução do problema".

Os emissores de moeda-reserva (ou moeda com conversibilidade plena) não têm restrição externa ao crescimento da demanda, uma vez que a única restrição efetiva é o risco de inflação. Nos países periféricos a restrição relevante é externa, via balanço de pagamentos. Por isso o câmbio é tão fundamental para a periferia.

Lembra que nos países centrais a restrição interna se dá via Curva de Phillips, que em seu original prevê duas opções estanques: mais emprego com mais inflação ou menos inflação com menos emprego. Trata-se da célebre dicotomia entre crescer e estabilizar. A relação foi aperfeiçoada com a chamada Hipótese das Expectativas Racionais, que abriu caminho para o conceito de metas inflacionárias a partir do início dos anos 90.

Todos são conceitos e fórmulas que lidam com a inflação na sua concepção tradicional, resultado da variação dos preços dos bens e serviços. André chama atenção nesse ponto para a inflação dos ativos, que não é captada por nenhum índice convencional de preços. Daí, provavelmente, a complacência do Fed dos Estados Unidos, criticado por André em seu texto: "o Fed de Greenspan, embalado na credibilidade conquistada, esqueceu-se da máxima de William McCheney Martin Jr (presidiu o Fed entre 1951 e 1970): o papel do Banco Central é tirar a jarra de bebida quando a festa começa a ficar animada", escreve.

Para André, a crise global é o resultado do contágio pela "generalização das festas". Dedica um capítulo ao tema. Também trata da deflação e coloca pertinente foco na perigosa política das autoridades norte-americanas de injetar dinheiro na economia por meio da compra de ativos privados podres. Por fim, trata dos riscos do gradualismo e levanta um ponto crucial: se será possível aos EUA passarem de forma gradual, sem descontinuidades, da deflação para uma pequena inflação, necessária para acelerar a digestão das dívidas? O grande e ainda não concretizado risco seria o de uma brusca desvalorização do dólar.

No final, André deixa um alerta a quem interessar possa: "o realismo da análise, sem o qual não há como bem agir, não deve ser afastado em nome do otimismo, nesse momento, mais incompetente do que ingênuo", diz, concluindo que "a capacidade de compreender o quadro mundial e nossa especificidade é mais importante do que a tentativa de fazer previsões".

Maria Clara R. M. do Prado, jornalista, é sócia diretora da Cin - Comunicação Inteligente e autora do livro "A Real História do Real". Escreve quinzenalmente, às quintas-feiras.

PS: O texto de André Lara Resende foi publicado no meu Blog, sexta-feira 9/1/2009.

Economia da AL desaquece e Brasil perde exportações

Raquel Landim, de São Paulo
DEU NO VALOR ECONÔMICO


As economias da América Latina desaceleraram bruscamente e as vendas do Brasil para a região caíram. O apetite por produtos manufaturados brasileiros diminuiu a partir de outubro, quando a crise global piorou. Em dezembro, as exportações tiveram redução expressiva de 12,4%. Nos três primeiros trimestres, o desempenho foi excelente: alta de 24,5%. No último, chegou a pouco mais que um terço disso, ou 8,4%.

A situação é mais grave na Argentina, o segundo maior mercado para os produtos brasileiros. No quarto trimestre, as vendas para o vizinho do Mercosul declinaram 6%. Além de enfrentarem menor disposição de compras motivada pela queda dos preços das commodities, principal fonte de divisas da região, as empresas brasileiras se deparam com o aumento do protecionismo, mais visível na Argentina e Venezuela.

Para especialistas em comércio exterior, O dano para a balança comercial pode ser significativo. Os manufaturados respondem por mais de 80% das vendas do Brasil para a América Latina.

"Os negócios caíram violentamente de um dia para o outro. Os clientes dizem que o consumidor simplesmente parou de comprar”, afirma Danilo Marcon, diretor comercial da Cerâmica Vila Rica, fabricante de utensílios domésticos que exporta para a Argentina. O mercado argentino consumia 30% das exportações da empresa, que estão 30% menores desde outubro. Para Milton Cardoso, diretor-executivo da Vulcabras, que comercializa as marcas Azaléia e Reebok, os clientes argentinos pararam de comprar em novembro e chegaram a cancelar pedidos para o Natal. Ainda assim, os estoques estão acima do esperado, o que dificulta as vendas neste início de ano. A situação é parecida na Venezuela, no Chile, Equador e Peru, diz Cardoso.

A queda significativa na venda de veículos na região levou as montadoras a dar férias coletivas bem antes do Natal. Exportações fracas afetaram a atividade na fábrica da General Motors em São José dos Campos, que anunciou demissões na segunda-feira. Grande parte dos veículos que saem da unidade são voltados à exportação para a América Latina, como o Corsa, que é preparado em kits para ser montado depois nas unidades da GM em outros países da região.

Caem exportações de manufaturados para a América Latina

As exportações do Brasil para os vizinhos da América Latina estão em queda. Empresas de diferentes setores relatam redução nos embarques para a região a partir de outubro, quando estourou a crise global. A economia desses países está desacelerando bruscamente, o que diminui seu apetite por produtos manufaturados brasileiros.

As exportações totais para os latino-americanos começaram a fraquejar em outubro e novembro (altas de 12,4% e 11,1% em relação aos mesmos meses de 2007) e caíram 12,4% em dezembro. De janeiro a setembro, as exportações tiveram desempenho excelente, com alta de 24,5% ante igual período de 2007. No quarto trimestre, o aumento foi de 8,4%, um ritmo bem menos vigoroso. Os manufaturados respondem por mais de 80% das vendas do Brasil para a América Latina.

A situação é mais grave na Argentina, segundo principal destino das vendas brasileiras. As exportações para o país vizinho e sócio do Mercosul se reduziram em um terço em dezembro em relação ao mesmo mês de 2007 pelo critério da média diária. Depois de crescer 33% de janeiro a setembro, as compras argentinas de produtos brasileiros caíram 6% no quarto trimestre do ano.

Com a baixa dos preços das commodities, principal riqueza da região, a América Latina dispõe de menos divisas para importar sem provocar estrago grave nas contas externas. Outro problema para as empresas brasileiras é o aumento do protecionismo em países como Argentina e Venezuela, que tentam blindar seus mercados da crise.

Para os especialistas em comércio exterior, o dano para a balança comercial pode ser significativo, pois a a pujança das compras latino-americanas vinha garantindo as exportações de manufaturados. As vendas para os Estados Unidos - outro importante cliente da indústria - estavam bem mais fracas e cresceram apenas 8% em 2008.

Na Cerâmica Vila Rica, fabricante de utensílios domésticos, as exportações para a Argentina cederam 30% a partir de outubro. "As vendas caíram violentamente de um dia para o outro. Os clientes dizem que o consumidor simplesmente parou de comprar", disse Danilo Marcon, diretor-comercial. O país vizinho responde por 30% das exportações da empresa e o mercado crescia 10% ao ano desde 2003.

"A crise, sem dúvida, afetou mais a Argentina do que o Brasil", disse Milton Cardoso, diretor-executivo da Vulcabras, que comercializa as marcas Azaléia e Reebok. Ele disse que os clientes argentinos pararam de comprar em novembro e cancelaram pedidos para o Natal. Mesmo assim, os estoques estão acima do esperado. Para o executivo, a situação é parecida na Venezuela, Chile, Equador e Peru.

A Vulcabras adquiriu uma fábrica na Argentina no ano passado e pretende manter os investimentos no país. Segundo Cardoso, o governo argentino restringiu as importações chinesas ao exigir licenças de importação, o que beneficia as empresas brasileiras instaladas no país. Apesar da crise, ele acredita que as exportações de calçados devem melhorar no segundo semestre com a ajuda do real mais fraco.

Para o economista do J. P. Morgan, Júlio Callegari, a "virada" na economia da América Latina foi muito forte após a contaminação da crise global. As estimativas do banco indicam que o Produto Interno Bruto (PIB) da região caiu 2,8% no quarto trimestre anualizado depois de subir 4,4% no terceiro. O J.P Morgan projeta estagnação para o continente em 2009, depois de crescer 4,1% no ano passado. "O real se depreciou, o que é positivo para as exportações, mas não dá para ser otimista, porque o PIB dos países está encolhendo", disse Callegari. Ele acrescentou que o ajuste vai ser mais doloroso na Argentina, cuja economia crescia mais de 8% e deve cair 1% em 2009. O banco projeta estagnação para o México e desaceleração para a Venezuela, com altas de apenas 0,6% e 1,5% no PIB, respectivamente.

A crise global também atingiu as compras de bens de consumo duráveis e bens de capital na América Latina. As montadoras de veículos começaram a dar férias coletivas bem antes do Natal em dezembro no Brasil por conta da brutal queda de demanda de veículos na região. Também foram as exportações fracas que afetaram a atividade da fábrica da General Motors, em São José dos Campos, onde foram demitidos 744 trabalhadores.

Uma grande parte dos veículos que sai de São José dos Campos é voltada à exportação para a América Latina. Trata-se do modelo Corsa, que é preparado naquela fábrica em kits desmontados, para ser depois montado nas fábricas da empresa em outros países, principalmente latino-americanos. Mesmo modelos fabricados em outras fábricas da montadora, se forem exportados em partes e peças, passam pela unidade de São José dos Campos.

A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) não quer fazer previsões de exportações para 2009 porque entende que não é possível ainda saber como ficará o câmbio não apenas no Brasil como também nos países que importam os carros brasileiros. A América Latina absorve quase 60% das exportações de veículos produzidos no Brasil. "Precisamos averiguar a volatilidade da moeda em todos os países", afirma o presidente da Anfavea, Jackson Schneider.

Na fabricante de bens de capital Romi, os efeitos da crise foram exacerbados pelas medidas protecionistas dos países vizinhos, disse Hermes Lago, diretor-comercial de máquinas ferramentas. A Argentina começou a exigir em novembro um certificado que, na prática, burocratiza e prejudica as importações. Na Venezuela, que pratica controle de divisas para compras externas, as licenças para a entrada de máquinas brasileiras, que já saíam a conta-gotas, diminuíram ainda mais. A América Latina absorve 18% das exportações da Romi.

As vendas da fabricante de ônibus Marcopolo na América Latina ainda não foram prejudicadas pela crise. Segundo o diretor-comercial para mercado externo, Paulo Andrade, os pedidos realizados até setembro cobriram as entregas do ano. Ele relata, no entanto, que as encomendas para o primeiro trimestre de 2009 estão 10% abaixo do mesmo período de 2008. Apesar da crise, Andrade espera manter o volume de exportações este ano, pois os governos da região não sinalizaram mudanças em seus projetos de melhoria do transporte urbano. (colaborou Marli Olmos, de Detroit)


Demissões provocam atrito entre ministro e empresários

Adauri Antunes Barbosa, Lino Rodrigues e Geralda Doca
DEU EM O GLOBO


Lupi quer punição para quem recebeu verba pública e demitiu. Fiesp reage

Um dia após o fechamento do acordo entre a Força Sindical e empresários paulistas para redução de jornada e de salários como forma de evitar demissões, o presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, e o ministro do Trabalho, Carlos Lupi, trocaram farpas. O ministro diz que empresas que receberam incentivos fiscais e crédito do governo estão ameaçando demitir. "Estamos analisando que tipo de sanção aplicar e como isso pode ser feito." Skaf desafiou: "Quero saber a lista das empresas que estão sendo salvas. Não é hora de demagogia." A Força propôs redução de salário de 15%, mas empresários querem 25%.

Demissões da discórdia

Fiesp diverge de trabalhadores e entra em atrito com Lupi sobre acordo para evitar cortes

Aenas um dia após patrões e empregados selarem, em São Paulo, um acordo inédito para evitar demissões em massa na esteira da crise, o entendimento começou a gerar atritos. Paulo Skaf, presidente da Fiesp (federação que reúne 133 setores da indústria), rebateu as críticas feitas na véspera pelo ministro do Trabalho, Carlos Lupi, que desaprova o acordão, alegando que as empresas têm sido beneficiadas pelo governo e não devem cortar vagas. Skaf pediu menos demagogia. Lupi reagiu prometendo sanção. Já no campo das negociações, as primeiras propostas apresentadas pela Força Sindical e pela Fiesp divergem quanto ao corte na renda do trabalhador em caso de redução da jornada e suspensão dos contratos. Após reunião do Conselho Superior Estratégico da Fiesp, que reiniu 33 dirigentes das maiores empresas do país, Skaf desafiou Lupi:

- Quero saber a lista das empresas que estão sendo salvas e a origem desses recursos (de desonerações e financiamentos de bancos oficiais). Se forem os empréstimos do Banco do Brasil, que cobra juros de 43% ao ano para capital de giro, não são recursos públicos. Não é hora de fazer demagogia.

Oficialmente, o ministério não se pronunciou. Porém, segundo uma fonte, Lupi determinou que seja feito um levantamento de todas as empresas que receberam dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). E vai divugá-la assim que estiver pronta.

Cedo, ao embacar para o Chile, Lupi reafirmou sua posição:

- Nossa função, além de ajudar empresas a passarem por essas dificuldades, é garantir os empregos. Estamos analisando tecnicamente que tipo de sanção (pode ser aplicada) e como isso pode ser feito.

O conflito entre Fiesp e governo deve se entender às discussões entre patrões e empregados. Representando 4,8 milhões de trabalhadores, a Força Sindicial fechou uma proposta-base para as negociações pela qual pede estabilidade no emprego pelo dobro do período em que o contrato de trabalho for suspenso, reivindicação que Skaf diz que as empresas tendem a não aceitar.

Em outro ponto, a entidade patronal defende que a redução de jornada e de salários seja de 25% - em proposta aprovada unanimemente pelo Conselho. A Força quer limitar o corte da renda a 15%.

- É preciso separar bem a questão da estabilidade. Se houver entendimento em reduzir a jornada e o salário em 25% por um tempo determinado, me parece coerente que haja manutenção dos empregos no tempo que isso ficar acordado. Mas não estamos falando em garantia ou estabilidade dos empregos - advertiu Skaf.

- Estabilidade quem tem é funcionário público. Queremos só a garantia do emprego por um determinado período pós-acordo. Passado esse tempo, a empresa pode demitir. Esperamos que a crise passe e ninguém seja demitido - explicou o presidente da Força, Paulo Pereira da Silva, o Paulinho.

No caso de suspensão do contrato de trabalho, a proposta sindical é que a empresa complemente o seguro-desemprego até atingir o valor líquido do salário. A Fiesp entende que o pagamento deve se restringir ao auxílio bancado pelos recursos do FAT.