sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O começo do jogo das sete estações

César Felício
DEU NO VALOR ECONÔMICO

O ano político de 2009 enfim começou esta semana, graças a três protagonistas: o governador de São Paulo, José Serra (PSDB), que cooptou o colega e rival tucano Geraldo Alckmin para sua equipe; o ex-presidente e senador José Sarney (PMDB-AP), que lançou-se candidato à presidência do Senado em um empreendimento praticamente impossível de ser batido; e o ministro do Trabalho Carlos Lupi, que ao atrelar o PDT ao jogo do PT na disputa pelo comando das Mesas do Congresso Nacional implodiu o bloco de esquerda.

São três eventos que apontam para uma única direção: a polarização antecipada da eleição presidencial de 2010 entre Serra pelo PSDB e a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, pelo PT, tendo o PMDB como fiel de balança, em um cenário de disputa em turno único.

O apoio pedetista aos candidatos patrocinados pelo PT às presidências da Câmara e do Senado tem clara inspiração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A sinalização é óbvia: impedir uma candidatura alternativa da base governista à Presidência em 2010. O cálculo de que a existência de dois nomes do Planalto para enfrentar o candidato tucano poderia ser mais interessante por forçar o segundo turno não existe entre os operadores petistas entusiastas da candidatura de Dilma. "O que vai contar em 2010 é capacidade de aglutinação. O governo precisa estar representado por um candidato único. Dilma vai ter que ficar em primeiro lugar no primeiro turno", comentou o deputado mineiro Virgílio Guimarães (MG), defensor há longa data da postulação da ministra. "O Lula nunca engoliu o bloco e a própria dinâmica da crise tende a polarizar a eleição entre dois candidatos que representem modelos distintos de gestão: PSDB e PT. Não há, infelizmente, espaço para meio termo", opinou o ex-deputado Sérgio Miranda, que foi candidato a prefeito pelo PDT em Belo Horizonte no ano passado. Mediante a negociação do apoio às reeleições dos governadores Eduardo Campos em Pernambuco e Cid Gomes no Ceará, Lula tem como desativar a candidatura de Ciro Gomes dentro do PSB. Muito mais fracos que os integrantes do PSB, PDT e PCdoB tendem a entrar na órbita petista ainda antes.

A eleição de Sarney para a presidência do Senado e do deputado Michel Temer para o comando da Câmara são quase certezas. Sobretudo a do primeiro. O comando duplo do PMDB no Legislativo enfraquece o PT e sobe o poder de barganha pemedebista em 2010 ao paroxismo. O partido torna-se tão forte aos olhos tanto dos petistas quanto dos oposicionistas que ambos apostam na tradicional ambigüidade do ex-presidente para reduzir o custo da negociação no próximo ano. "Sarney na presidência do Senado pode ser bom para Lula, porque breca a atração exercida por Serra. O PMDB só irá para os tucanos aos pedaços", opina Virgílio. "Com a sua candidatura, o Sarney mostrou que não vai fazer o jogo petista", afirmou um cacique do DEM, que aposta na neutralidade do ex-presidente na eleição de 2010.

O peso de Sarney no equilíbrio pemedebista aumenta em razão da falta de centro político do partido. Já está certo que o PMDB não irá completo para qualquer lado em 2010. O apoio pemedebista a uma chapa encabeçada pelos tucanos é virtualmente impossível em Estados como o Pará, Paraíba, Goiás e no próprio Maranhão de Sarney, por motivos regionais. Mas o partido já está comprometido com o PSDB em São Paulo. E pode vir a fazê-lo, em breve, na Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul.

O ingresso de Alckmin na base serrista lança dúvidas sobre o destino do rival de Serra pela candidatura presidencial em 2010, o governador mineiro Aécio Neves. Os aliados de Serra consideram Aécio um adversário já batido na busca pela cabeça de chapa, mas temem a reação do eleitorado mineiro. "Ali estão 10% dos eleitores do país. Dilma Rousseff nasceu em Minas. Se o eleitor mineiro achar que Aécio foi "tratorado" por Serra, vamos perder em Minas e a eleição estará em risco", afirmou um dos articuladores da candidatura de Serra no DEM. A questão não equacionada para os serristas é como convencer Aécio que eleger Serra em 2010 será mais positivo para a trajetória política do mineiro do que a alternativa.

Serra, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e os caciques pemedebistas trabalham com tanto afinco para que este quadro altamente favorável para todos se concretize que às vezes fazem esquecer que a eleição só ocorrerá dentro de 21 meses. São dois invernos, duas primaveras, dois outonos e outro verão pela frente em que o presidente da República, o governador de São Paulo e o partido que deverá controlar a Câmara e o Senado terão que agir para que o quadro desenhado neste fim de janeiro prevaleça. Tempo demais pela frente. E é com este gigantesco intervalo que lideranças aparentemente isoladas como Aécio Neves e Ciro Gomes podem contar para virar o jogo.

César Felício é repórter de Política. A titular da coluna, às sextas-feiras, Maria Cristina Fernandes, está em férias

Direito de dispensa

Almir Pazzianotto Pinto
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Deixe-se a hipocrisia de lado para admitir que o rompimento antecipado de contratos é prática comum no universo dos negócios jurídicos. O ideal seria que findassem de morte natural, com o encerramento do prazo de vigência ou a conclusão da obra contratada. O desejável, porém, nem sempre acontece. Casos de rescisão prematura são comuns nas construções de imóveis, em compras e vendas de veículos, entre locadores e locatários, no meio futebolístico e até no matrimônio, considerado sacramento pela Igreja Católica, mas tratado na lei civil como modalidade singular de contrato.

O contrato de trabalho pertence à esfera dos negócios jurídicos vinculados ao direito privado. Ao regulamentá-lo, entretanto, o legislador observou que empregadores e empregados não se encontram em posição de equilíbrio e igualdade. É por isso que a legislação social assegura numeroso rol de garantias aos assalariados, como salário mínimo, limitação da jornada, descanso semanal, férias anuais e 13º terceiro salário. Normas específicas, por sua vez, acentuam a proteção devida à mulher, à maternidade, ao menor, à saúde e à segurança. Entre as garantias constitucionais ganham destaque o direito de greve e a liberdade de organização sindical, embora esta se encontre subordinada ao modelo corporativo fascista, copiado pela Carta de 1937.

Em períodos de recessão, quando os mercados ficam debilitados e as empresas passam a experimentar repetidas perdas de receitas, uma das perguntas que se fazem é sobre o destino da força de trabalho. A resposta habitual, não obstante amarga, tem consistido no rompimento unilateral de contratos, recorrendo-se às demissões coletivas.

A legislação autoriza a demitir. A estabilidade no emprego é garantia prevista, mas em caráter excepcional e por tempo limitado, como se dá com a gestante, com o acidentado, com o dirigente sindical. A regra geral está lançada no artigo 7º, I, da Constituição federal, cuja combinação com o artigo 10, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, legitima a rescisão sem justa causa mediante indenização compensatória.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), no texto original, assegurava estabilidade àquele que completasse dez anos de serviços efetivos na mesma empresa. Para este a demissão só seria aceita na rara hipótese de força maior ou pela prática de falta muito grave, apurada em inquérito judicial.

A longa experiência com a estabilidade não surtiu bons resultados. Para substituí-la criou-se o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), instituído pela Lei nº 5.107, de 1967. A primeira reação do movimento sindical foi forte, mas de curta duração, como relatou o falecido senador baiano Luiz Viana Filho no livro O Governo Castelo Branco. Com o tempo os aspectos positivos do FGTS se sobressaíram e o moderno instituto passou a ser encarado como conquista dos trabalhadores, vindo a ser incluído no elenco dos direitos constitucionais em 1988.

A crise que o Brasil atravessa, como reflexo da débâcle da economia mundial, recoloca em pauta o problema das dispensas. Nas últimas semanas repetiram-se, de forma assustadora, informações sobre desligamentos coletivos, já consumados ou apenas programados, em todos os países industrializados. Entre nós, foram ensaiadas algumas tentativas de negociação entre associações patronais e centrais sindicais, logo interrompidas por insuperáveis divergências de pontos de vista.

O governo bem que tentou subestimar a gravidade da recessão. De início procurou nos convencer de que não passava de reles "marola", incapaz de realizar a "travessia" do Oceano Atlântico. Pressionado pelos fatos, passou a cogitar de ações preventivas, na forma de financiamento aos empresários. Alimentou infundadas esperanças, no final do ano, determinando à população que fosse às compras. De concreto, entretanto, tivemos apenas, no campo das reformas, a ortográfica, cujos objetivos permanecem insondáveis, mas têm certamente que ver com interesses de grandes editoras.

Não percebo como fugir às demissões coletivas. O setor automotivo, considerado carro-chefe no mercado de trabalho, enfrenta graves dificuldades decorrentes da retração dos consumidores e do acúmulo de gigantescos estoques de veículos novos, seminovos e usados. Problemas semelhantes afetam os demais setores da economia.

A CLT limita-se a disciplinar as demissões personalizadas. Nesse sentido, quando não houver justa causa, assegura, além do aviso prévio, a liberação dos depósitos do Fundo de Garantia, acrescidos da multa de 40% calculada sobre o valor atualizado; ordena o pagamento de férias e 13º proporcionais aos meses trabalhadores; e, em determinada situação, o empregado receberá um salário adicional, a título de indenização especial.

Dos desligamentos coletivos, em épocas de crises econômicas, não trata a velha Consolidação. É como se inexistissem ou não fossem mais do que mero somatório de despedidas isoladas.

O amparo ao dispensado, no Brasil, é bastante razoável, porque, além dos valores de conteúdo indenizatório, será ele beneficiado pelo seguro-desemprego, pago por período que irá de três a cinco meses.

Mais de 20 anos desfilaram diante do Congresso Nacional desde que foi promulgada a Constituição de 88. O dispositivo que cuida de proteger o empregado contra demissões arbitrárias ou sem justa causa (artigo 7º, I) permanece, como tantos outros, no aguardo de regulamentação. Quando e como virá, se for aprovada? Ninguém pode prever. Até lá, não há como recusar ao empregador o direito de demitir um, dez, cem ou todos os empregados.

Pode parecer trágico, mas é a nossa dura realidade.

Almir Pazzianotto Pinto é ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, aposentado

So help me God

Fernando Gabeira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


RIO DE JANEIRO - Durante semanas os americanos discutiram o dia da posse. Até o juramento alguns colocavam em dúvida. Radicais no passado já protestaram contra a presença de Deus no texto.

O mais discutido na véspera foi o teor do discurso. Especialistas em falas presidenciais passaram a semana dando conselhos. Roosevelt? Só devemos temer o nosso medo. Kennedy? Não pergunte o que o país pode fazer por você... E toda essa coisa.

Uma canção brasileira bastaria para inspirar Obama. Levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima. E, no início do discurso, reconheceu a queda e não desanimou, exatamente como manda a letra.

Curioso que já usamos esta canção, quando Volta Redonda estava no buraco. O slogan era: Volta Redonda, volta por cima.

Como os EUA não são Volta Redonda, Obama faz bem em contar com a ajuda divina. Jornais observam como tudo mudou desde o início da campanha. Parece uma década. A GM estava bem, não havia uma grave crise no ar. A própria necessidade de demonstrar que era contra a guerra no Iraque, mas não contra todas as guerras, o levou a conservar Robert Gates na Defesa.

Como Obama vai tratar os inúmeros problemas imediatos e conduzir as questões de médio e longo prazo? A combinação exata é difícil. Como descer das nuvens da grande expectativa para a realidade sem causar frustração? Quer seguir os passos de Roosevelt e conversar muito com o país. Esta é uma transição delicada. Quando vi o casal entrar na Casa Branca, pensei: tempos interessantes. Desses, tão complexos, que os chineses não desejam para ninguém. No discurso, uma indicação: entre a segurança e os nossos ideais, escolher os dois. No dia seguinte, um ato: suspensão dos processos de Guantánamo.

O êxito de Obama será um fio de esperança contra o cinismo na política.

Serrinha paz e amor

Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - José Serra costuma dizer que é "mais aplicado do que inteligente". E tem sido aplicadíssimo, além de surpreendente, ao armar seu jogo superando a fama de egocêntrico e desagregador.

Seu último lance foi o anúncio de Geraldo Alckmin para a Secretaria do Desenvolvimento, que tem orçamento de R$ 1,41 bilhão e, na prática, reintroduz o ex-governador no palco e na própria cena da sucessão do Bandeirantes em 2010.

Num repouso forçado em Pindamonhangaba, depois de peitar Serra e perder a Presidência para Lula e a prefeitura para Kassab, Alckmin ficaria pairando nos bastidores de uma eventual dissidência paulista pró-Aécio Neves. Sob a secretaria, ele praticamente fecha São Paulo com Serra e deixa Aécio falando só para mineiros e para setores menos cotados do PSDB.

Outro lance serrista foi a aliança com Quércia. Disputado a tapa por todos e em particular pelo PT na eleição municipal, ele acabou com Kassab e completando o círculo PSDB, DEM, PMDB e PPS no Estado de maior economia e de maior eleitorado. O que pesa, e muito, na balança peemedebista de 2010.

E há aquele lance intrigante da ponte "administrativa" ou "republicana" entre Lula e Serra, com milhões de reais para o setor automotivo, para a compra da Nossa Caixa pelo BB, para o encontro de contas do funcionalismo paulista. Enfim, para manter o barco, ou os barcos, navegando em meio às "marolinhas" da crise.

Além do conteúdo, a forma: não faltam fotos de Lula e Serra em salões, reuniões e lançamentos, e em pose de amigos, não de adversários.

As deduções são livres. Por ora, a única conclusão é a de que nenhum dos dois quer briga.

Serra gera fatos, ocupa espaço na mídia, engole tabus, doma o temperamento, tudo para subir a rampa do Planalto. Aprendeu com FHC e Lula e tenta virar o "Serrinha, paz e amor". A dúvida é o quanto isso está custando à sua úlcera.

De sedutores e ilusionistas

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Para todos os efeitos, PT, PMDB e PSDB atuam nas eleições das presidências da Câmara e do Senado já na condição de protagonistas da campanha eleitoral de 2010.

Mas as ações em curso não se entendem com a lógica da sucessão presidencial. Vejamos o PSDB, tido como o fiel da balança no Senado.

Diz que apoia o nome de José Sarney a fim de assegurar o apoio do PMDB ao candidato tucano a presidente da República e de não dar a presidência da Casa ao PT para não reforçar o adversário de daqui a dois anos.

Ora, se o candidato for o governador José Serra, como parece hoje, Sarney não ficará com ele em nenhuma circunstância. Ou, se ficar, será por conta dos ditames do poder, o que independe dos votos tucanos na disputa de agora.

Além disso, a adesão a Sarney não agrada, para dizer o mínimo, ao grupo do PMDB dito "da Câmara" - de vínculos estreitos com o tucanato - pelo potencial de prejuízo que essa candidatura pode causar aos planos de Michel Temer, presidente do partido, de se eleger à presidência da Câmara.

Por que interessaria ao PSDB pôr em risco os projetos da ala amiga para agradar à inimiga? Seria se arriscar a perder o certo e não ganhar o duvidoso.

Quanto ao apoio ao PT, não seria novidade nem teria necessariamente o condão de produzir desdobramentos.

Em 2007 muito se especulou a respeito do apoio do PSDB, notadamente dos governadores José Serra e Aécio Neves ao petista Arlindo Chinaglia para a presidência da Câmara.

O PSDB alegava respeito ao princípio da proporcionalidade, sendo que o PMDB era a maior bancada da Casa. Os tucanos ponderaram, então, que seguiam o acordo firmado entre PT e PMDB para um rodízio futuro.

Ninguém acreditou. A interpretação à época foi a de que Aécio queria mesmo é ter a primeira vice-presidência, na figura do deputado Nárcio Rodrigues, e que Serra já se ajeitava com o PT com vistas a amenizar conflitos e, no ensejo, levar o PSDB à presidência da Assembleia Legislativa da Bahia, onde dispunha de dois deputados. Uma ode à proporcionalidade, não?

O futuro chegou e aquele rodízio tão celebrado anda na corda bamba. O PMDB resolveu levar os termos do acerto ao pé da letra e ignorar que nas entrelinhas estava implícita a inclusão do Senado no acordo pelo qual a vez agora caberia ao PT na presidência.

Se não mudar de ideia nos próximos dez dias, o PSDB estará linha contrária ao compromisso que dizia seguir dois anos atrás.

Se decisão é mesmo produto de duas intenções - não fortalecer o PT, adversário em 2010, e reforçar os músculos do PMDB com o intuito de conquistar para a candidatura Serra o partido em geral e o grupo de Sarney em particular -, então era falsa a conclusão sobre os agrados de Serra ao PT com vistas a 2010.

Ou a estratégia de 2007 não resistiu ao tempo e à imposição das circunstâncias. Do mesmo modo como as jogadas de agora podem não sobreviver aos fatos.

Se é que o fato no horizonte é mesmo a sucessão presidencial e não uma mera disputa de poder no âmbito do Congresso.

O método

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra chega aos 25 anos, carcomido pelo desgaste. É uma sombra do que já foi, um best-seller do passado, quando chegou a amealhar 70% do apoio da população nas pesquisas de opinião.

Muito da situação minguante se deve ao governo Luiz Inácio da Silva, o mais leniente com as ilegalidades do MST e companhia, mas o mais indiferente às reivindicações do movimento.

Talvez porque o conheça por dentro e sabe que não há reivindicações de fato em jogo. O que há é uma maneira de confrontar o Estado e a sociedade sob a ótica do conflito pelo conflito.

Objetivamente, a indulgência traduzida na indiferença resultou em perdas: redução brutal dos assentamentos, do número acampamentos, das verbas federais carreadas para a sustentação do movimento por iniciativa do governo Fernando Henrique Cardoso, compelido pelo PT a tratar com fidalguia os "movimentos sociais". Ainda que ilegais, sem razão social nem reconhecimento jurídico para escapar da responsabilidade legal.

Seria um mérito, não tivesse sido alcançado ao custo da parceria do Estado com a agressão sistemática às leis. Considerando que os fins não justificam os meios, no balanço de perdas e ganhos saiu derrotado o Estado de Direito.

Assim é

A nomeação de Geraldo Alckmin para a Secretaria de Desenvolvimento de São Paulo não significa necessariamente a abertura da porta de acesso à candidatura para o governo do Estado em 2010.Até poderá vir a ser, embora seja difícil. Por enquanto, quaisquer que tenham sido os termos das conversas entre o governador e o ex-governador, por enquanto Alckmin foi convidado para não criar confusão antes da hora. E, de preferência, muito menos na hora H.

PPS feliz

Leandro Mazzini
DEU NO INFORME DO JORNAL DO BRASIL

Do deputado Arnaldo Jar- dim (PPS-SP), sobre a entrada de Geraldo Alckmin no governo paulista: "Serra foi genial, adquiriu força com a entrada do Alckmin e manteve sob controle a sucessão".

Acredite se quiser

A oposição também quer uma grande coalizão para 2010 em torno da candidatura do PSDB, seja com Serra ou Aécio Neves. O PPS conversa com o PV e o PMN. Jardim disse que até o PSB está nos planos.

Mais afagos ao governador

Isabella Souto
DEU NO ESTADO DE MINAS

Deputado do PSDB paulista, integrante do comando nacional do partido, vem a Belo Horizonte conversar com Aécio e garante que nome tucano para a sucessão de 2010 sairá por meio de prévia

Mais um integrante do tucanato paulista esteve em Belo Horizonte para mostrar que o governador Aécio Neves (PSDB) não está isolado em seu partido. Ontem foi a vez do deputado federal Carlos Sampaio defender a realização das prévias para a escolha do candidato a presidente da República nas eleições de 2010 e fazer vários afagos ao mineiro. Aécio e o governador de São Paulo, José Serra, apresentam-se como nomes para a sucessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

“A Executiva Nacional vem pregando as prévias há bastante tempo com a concordância de ambos (Aécio e Serra). É o espaço onde todos vão se colocar perante a Executiva Nacional. Não vejo nenhuma discordância interna, 90% disso é fantasia de quem não quer que a coisa flua bem”, afirmou o parlamentar, que integra o comando nacional da legenda e garantiu que veio à capital para discutir as articulações para a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados.

na quarta-feira já havia estado na capital mineira o presidente nacional do PSDB, senador Sérgio Guerra (PE), e o deputado federal Paulo Renato (PSDB-SP). O discurso oficial adotado por ambos foi o mesmo de Carlos Sampaio: o convite feito por Serra para que Geraldo Alckimin assuma a Secretaria de Desenvolvimento do governo paulista é uma tentativa de unificar a legenda no estado.

Mas a medida é vista como uma estratégia para fortalecer a candidatura de Serra no PSDB – especialmente em São Paulo. É fato que até bem pouco tempo Aécio Neves tinha em Geraldo Alckmin um importante aliado. No dia seguinte à sua posse no Palácio dos Bandeirantes, Alckmin comentou que Serra seria um “importante” candidato. Serra negou qualquer conotação eleitoreira em seu ato.

Para apagar o incêndio, ocorre uma romaria de tucanos paulistas a Minas Gerais desde quarta-feira. “Não existe hipótese de o governador Aécio Neves ser isolado. Não existe presidente da República, não existe cargo algum dentro do PSDB sem que se consulte, sem que se coloque em pauta o governador como sendo o possível candidato ou referendando um possível candidato”, argumentou Carlos Sampaio.

A partir de março, Aécio inicia uma série de viagens pelo país – especialmente pelos estados do Nordeste, onde é menos conhecido. Estratégia semelhante deverá ser adotada por José Serra.
Independentemente da realização das prévias, o parlamentar avalia como positivo para a “democracia interna” e trará mais “transparência” para o processo de definição do candidato a presidente. A Executiva Nacional ainda vai se reunir para discutir qual será o colégio eleitoral das prévias, que deverão ocorrer até o fim deste ano.

O tamanho da marola

DEU NA COLUNA DE ANCELMO GOIS
O GLOBO

A ONU acaba de projetar o crescimento mundial em 2009 e (conservadoramente) prevê 2,9% para o Brasil.

Comparando com os 5,1% que crescemos ano passado, a diferença dá uma idéia do tamanho da onda que afetará o país: 2,2 pontos percentuais.

Só que...

A grande surpresa está na comparação com os outros.

O impacto aqui será muito maior que na China (só 0,7), na Índia (0,5) e na média dos emergentes (1,3). Será pior que na média dos países ricos (1,6), epicentro da crise.

O maior cheque especial da história

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Lula estatiza a seca de crédito ao criar linha de R$ 100 bi, que deve cobrir o risco de falta de financiamento neste ano

O GOVERNO Lula criou ontem o maior cheque especial da história brasileira. Colocou à disposição das empresas um limite de até R$ 100 bilhões, que podem ser emprestados por meio do BNDES. O BNDES terá, então, cerca de R$ 166 bilhões para emprestar em 2009, uns US$ 75 bilhões a mais do que emprestou no ano passado.

O governo Lula lançou, pois, um programa de empréstimos a custos provavelmente subsidiados que deve cobrir e segurar quase toda a baixa estimada na disponibilidade de financiamento privado em 2009. O governo estatizou a seca de crédito.

A linha de crédito de R$ 100 bilhões representa, por exemplo, 8% da dívida mobiliária federal. Em 2008, o estoque de crédito para as empresas aumentou cerca de R$ 96 bilhões (considerado só o crédito dito "livre", privado, e excluídos o leasing e o crédito livre rural). No mercado de capitais, as empresas captaram uns R$ 70 bilhões (nos 12 meses até novembro, contado o dinheiro captado em ações, debêntures e notas promissórias).

Isto é, a linha de crédito estatal criada ontem representa cerca de 60% do incremento de fundos para empresas em 2008. Sim, a conta tem algo de alhos com bugalhos (mas nem tanto) e de "conta de chegada", mas serve para dar uma dimensão da medida de ontem.

O dinheiro do "checão especial" virá do Tesouro (do superávit financeiro, poupança que não foi gasta no Orçamento nem no abate de dívida) e de dívida externa. Em tese, o dinheiro do Tesouro custa a Selic (12,75%). O governo vai cobrar 8,75% do BNDES (TJLP mais 2,5%). No dinheiro da dívida externa, o custo para o BNDES será o da captação (uns 6,5% ano ano). Nada saberemos sobre o custo para as empresas, que é "sigiloso". Aí começam o rolo e o risco de privilégio. Não saberemos ainda se, com o "auxílio", as empresas vão investir mais, se vão manter projetos ou se apenas vão trocar linhas caras por crédito estatal.

Há várias modalidades de empréstimo no BNDES. A "básica" tem custo de TJLP mais "spread" básico (do BNDES) mais "spread" de risco (dos bancos intermediários). Tudo somado, pode sair a um custo de 13%, 14% ao ano. Ainda salgado para quem até 2008 captava no exterior.

Uma vantagem de o governo gastar via BNDES (e vai gastar, pois há subsídio) é que BNDES e empresas são mais ágeis que o governo, vide o lerdo PAC. Outra vantagem é que o dinheiro estará lá para a empresa que achar que deve investir -pelo menos, o governo não vai gastar em "pirâmides". A "pressão competitiva" do BNDES pode, ainda, fazer com que os bancos privados se mexam mais, dado o risco de perder algum bom negócio. Um risco é o de estimular investimentos inviáveis neste cenário recessivo (o que implica risco maior de calote privado). O governo terá como garantias ações de empresas na carteira do BNDES.

Comparado aos pacotes que têm sido divulgados pelo mundo, é um negócio infinitamente mais seguro para o setor público brasileiro (mas o Brasil não está na lama crítica do mundo rico). Mas, com R$ 100 bilhões no checão especial, o risco de promiscuidade público-privado cresce bem. Quanto a "garantir emprego": dá para apostar que é quimera e não haverá fiscalização crível.

Voo às cegas

Míriam Leitão
DEU EM O GLOBO


Se escaparmos da crise global, teremos uma crise feita pelo governo Lula. O governo está aumentando o risco fiscal com medidas como a anunciada ontem. Vai transferir dinheiro de dívida interna e externa do Tesouro para o BNDES, que tem tomado decisões sem transparência e discutíveis sob vários aspectos. O gasto público não tem rumo, não tem projeto. É um voo às cegas.

Numa crise há dois riscos: um governo paralisado e um governo hiperativo. No caso brasileiro, estamos incorrendo nos dois riscos ao mesmo tempo. O governo está paralisado diante daquilo que ele deveria fazer, como redução dos custos trabalhistas e tributários das empresas; e hiperativo em ações que aumentam a exposição dos contribuintes ao risco. E não demonstra ter um plano de voo.

O país corta o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia quando o país mais precisa de investimento em inovação e em ciência, por inúmeros motivos, e ao mesmo tempo transfere montanhas de dinheiro para a estatal de petróleo, que é a empresa com maior capacidade de captação que existe no país. A Petrobras limpou o caixa da Caixa e agora receberá R$20 bilhões do BNDES.

O Tesouro vai aumentar a dívida pública para dar um cheque de R$100 bilhões ao BNDES, para ele financiar empresas. Mas a primeira pergunta a ser feita em época de recursos escassos é: qual é o critério de alocação de recursos do banco que recebe tal cheque do Tesouro? Tomemos, por exemplo, a operação anunciada esta semana. O BNDES viabilizou a operação da compra da Aracruz pela VCP. As duas empresas tinham algo em comum, além do papel e celulose que produzem. Tiveram enormes prejuízos com derivativos cambiais. Juntas, uniram os prejuízos que o mercado calcula em torno de R$10 bilhões. O negócio foi feito com a ação da Aracruz sendo comprada por R$18 quando valia R$5,60. E o BNDES não foi apenas o financiador, ele já era sócio e aumentou sua participação numa empresa que, agora, terá um prejuízo maior.

Numa entrevista a Guilherme Barros, da "Folha", o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, deu uma explicação robusta para ter viabilizado a operação: "Não podemos ficar de braços cruzados e deixar as empresas se estourarem. Em vez de deixar as empresas se espatifarem, o nosso objetivo é que elas tenham um papel objetivo no contexto global." A propósito: as empresas se espatifaram por escolha própria.

O economista Alexandre Marinis, que acompanha com lupa e preocupação as contas públicas, discorda inteiramente da operação que está sendo montada para essa megainjeção de dinheiro no BNDES.

- Eu questiono abertamente a intenção do governo de utilizar empréstimos do BNDES para amenizar o impacto da crise no Brasil. Todos sabem que o BNDES empresta o grosso dos seus recursos para grandes empresas, que têm melhores condições de levantar recursos, mesmo em meio a uma crise de liquidez, do que as micro, pequenas e médias empresas.

O economista Armando Castelar lembra que setores que mais empregam, como comércio e serviços, estão longe de serem os que recebem mais recursos do BNDES. Ele lembra que algumas grandes empresas, que têm acesso ao banco, estão capitalizadas, como a Vale. Mas como o crédito está caro, vai ser mais fácil e barato recorrer ao BNDES, que vai transferir recursos, como sempre, para as grandes empresas. Ele diz também que a queda do investimento não é por falta de crédito, mas sim porque há falta de demanda.

De cara, pelas contas de Castelar, a medida anunciada ontem tem um custo fiscal de R$4 bilhões. O Tesouro vai se endividar a custo mais alto (12,75%) do que o que receberá do banco (8,75%). Isso sem falar no risco de crédito que vai incorrer se o BNDES consolidar a linha neo-hospital que adotou para salvar empresas que podem se "espatifar".

O economista José Márcio Camargo acha que a grande pergunta não está sendo feita.

- O que deve ser perguntado é se essa é a forma mais eficiente de usar o dinheiro público para evitar a crise. Estudos dos últimos 60 anos provam que a forma mais eficiente de incentivar o consumo é reduzir a carga tributária sobre empresas e pessoas. Um plano de investimento, mesmo se for bem-feito, mesmo se houver demanda, vai demorar pelo menos uns sete meses para ser iniciado.

As dúvidas são muitas cada vez que o governo tira alguma ideia mirabolante da cartola. As medidas de redução de impostos adotadas até agora foram sempre benefícios a setores escolhidos, o que é um incentivo injusto e discricionário.

- O governo tem a ilusão de que as grandes empresas manterão o emprego e elas não farão isso. Os jornais já mostram que os setores que mais demitiram foram os que mais receberam recursos do BNDES. Todo mundo sabe que as principais geradoras de mão-de-obra são as micro, pequenas e médias empresas, justamente as mais desabrigadas no meio da crise, sem acesso a crédito, sem recursos do BNDES, sem benefícios do governo - diz Marinis.

O Brasil foi atingido por uma crise que veio de fora. Pode, agora, aprofundá-la com medidas insensatas com o pretexto de evitar a crise.

Valores mais altos

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. Todas as decisões tomadas ontem pelo presidente Barack Obama com relação ao combate ao terrorismo têm a mesma raiz: fazer valer a letra da lei, não colocar a busca da segurança nacional acima dos direitos humanos essenciais a uma democracia. Fechar a prisão de Guantánamo, mesmo que num prazo de um ano, é a decisão mais visível, mas acabar com as prisões secretas que a CIA mantêm pelo mundo afora é reforçar a tese de que nem mesmo o combate ao terrorismo justifica que agentes do governo americano ajam fora da lei.

Expedir uma "ordem executiva", o equivalente a um decreto-lei brasileiro, proibindo a tortura, é espantoso em uma democracia, mas fez-se necessário porque outra "ordem executiva" do ex-presidente George W. Bush permitia o uso de "técnicas aprimoradas de interrogatório" nas prisões secretas e também nas oficiais Guantánamo e Abu-Gahbri, técnicas que seriam consideradas torturas se utilizadas dentro do território nacional.

Um programa secreto da CIA, a agência de espionagem americana, começou a ser implantado logo depois dos atentados de setembro de 2001, e somente mais de cinco anos depois, em 2007, foi suspenso oficialmente pelo governo americano, devido a uma decisão da Suprema Corte.

Mas suspeita-se que algumas prisões ainda estejam em funcionamento, por isso a "ordem executiva" de Obama, fechando as que eventualmente ainda funcionem, e proibindo suas técnicas de interrogatório.

Esse programa permitia que acusados de terrorismo fossem detidos indefinidamente em prisões secretas, chamadas de "buracos negros", onde as regras da Convenção de Genebra não eram respeitadas por uma decisão pessoal do presidente Bush.

Todos os prisioneiros dessas prisões foram teoricamente transferidos para Guantánamo, e por isso agora a nova administração terá um ano para encontrar uma maneira de alojá-los enquanto aguardam julgamento por tribunais americanos, ou de enviá-los para outros países.

Há casos em que um prisioneiro como Majid Khan, residente em Baltimore, foi mantido em isolamento durante três anos, sem mesmo acesso a um advogado. O isolamento dos prisioneiros era considerado um dos pontos-chaves da política antiterror anteriormente em vigor.

A jornalista Jane Mayer, da revista "The New Yorker", é uma das principais denunciantes do sistema ilegal de combate ao terrorismo montado no governo Bush, sob a orientação do vice-presidente Dick Cheney.

Ela lançou, ano passado, um dos melhores livros sobre o assunto - "O lado negro" -, onde detalha as denúncias que havia feito em diversas reportagens nos últimos anos. Segundo seu relato, corroborado mais tarde pela divulgação de um relatório do Senado, a criação de um grupo dentro da CIA para "caçar, capturar, deter ou matar" acusados de terrorismo foi autorizada uma semana depois dos atentados.

Embora a CIA não tivesse treinamento para esse tipo de ação, as exigências fizeram com que se buscasse nos arquivos as experiências de guerras anteriores. Os programas vieram das guerras da Coreia e do Vietnã, com especialistas militares já aposentados que tinham experiência em treinamento de soldados para resistir às torturas caso caíssem prisioneiros do inimigo.

O programa, chamado Sere - de "Sobrevivência, Evasão, Resistência e Escapada" -, ensinava a resistir a torturas como o afogamento simulado, privação de sono, resistir a permanecer em locais abafados, humilhação religiosa e sexual.

Todas essas técnicas acabaram sendo utilizadas em prisões como Guantánamo e Abhu-Gahbri pelos militares americanos, e causaram perplexidade no mundo ao serem reveladas, inclusive com fotografias.

O que, a princípio foi atribuído a um grupo de militares com distorções de comportamento acabou revelando-se um programa oficial do governo dos Estados Unidos, o que trouxe mais danos ainda à imagem internacional do país.

Quando o novo presidente assume garantindo ao mundo que não há incompatibilidade entre a guerra ao terror e o respeito à dignidade humana, e, mais que isso, no segundo dia na Casa Branca toma medidas concretas para acabar com essas práticas e dar transparência à política de segurança nacional, tudo se encaixa num mesmo modelo de governo que pretende prestigiar os antigos valores morais da democracia.

Da mesma maneira que, ao indicar negociadores especiais para questões internacionais que estão na ordem do dia, como o Oriente Médio, o novo governo mostra que não está perdendo tempo para encarar seus desafios.

Os primeiros dias foram dedicados à política externa, mas isso não significa que a questão econômica esteja fora das prioridades. Ao contrário, o plano de recuperação econômica que já está sendo negociado no Congresso tem indicações claras de como o novo governo pretende encarar a tarefa mais imediata de criar empregos

O que o presidente Obama tenta é encontrar um ambiente político de convergência para que a recuperação do país, que será longa e penosa, possa ser alcançada em clima de união nacional.

O que não se sabe ainda é se os republicanos aceitarão esse pedido de trégua da pequena política para dar partida à recuperação nacional, ou se tentarão emparedar o novo governo com vistas às próximas eleições de 2010.

O novo enfoque da segurança nacional pode ser um calcanhar-de-aquiles para o governo Obama, se houver alguma percepção da sociedade, mesmo que infundada, de que o país está mais vulnerável a novos ataques.

Obama – O primeiro lider global

DEU NO CORREIO DO ESTADO (MS)
Fausto Matto Grosso
Engenheiro e Professor da UFMS

Surfando uma imensa onda de esperança, Obama chegou à Casa Branca. Na sua posse afirma que o mundo mudou e que os Estados Unidos vão se ajustar a esse mundo novo retomando a inspiração fundadora dos ideais da Revolução Americana.

O novo Presidente americano ganhou as eleições em todos os países do mundo globalizado e na sua posse além dos milhares de americanos presentes, outros milhões de homens e mulheres, dos mais distantes rincões do mundo, tomaram posse do presidente americano, como líder.

Pela primeira vez, está posta a possibilidade de um líder global, que baseia sua força, não no arsenal bélico que comanda, mas na sintonia com o tempo em que vive e na liderança moral que foi construindo na sua campanha, lavando a alma de jovens, de excluídos, de celebridades do mundo das artes, de cientistas, de ambientalistas, de libertários e humanistas de todos os matizes, do mundo inteiro.

Antes isso não seria possível, o mundo novo permitiu esse espaço, o mundo da multipolaridade. A seu tempo, talvez só o líder Gorbatchov tenha conseguido tamanho consenso na opinião pública mundial, mas o mundo ainda era o velho mundo da Guerra Fria, que ele conseguiu desarmar. Apesar disso caiu derrotado pelo conservadorismo do Estado Soviético, e pelas máfias já incrustadas nas estruturas de poder. Isso aponta um alerta para o novo presidente americano.

Por seu lado, Obama, por enquanto, conseguiu derrotar, eleitoralmente, as forças mais reacionárias dos interesses americanos, especialmente as da indústria da guerra, fazendo uma campanha memorável de 10 milhões de endereços eletrônicos, de militância de milhares de jovens voluntários, de engajamento das ONGs, de personalidades do mundo da cultura e dos movimentos sociais. Se mantiver a sustentação interna e externa, pode o novo Presidente, estabelecer um novo estilo de liderança dos Estados Unidos no mundo.

A possibilidade de existir um primeiro líder realmente mundial está colocada, esse é o desafio do Presidente norte-americano. Vencerá a crise econômica sem jogar a conta para países pobres? Conseguirá o recolhimento dos seus exércitos do Iraque e do Afeganistão? Fechará Guantánamo? Modificará a posição dos Estados Unidos em relação a Cuba? Esses são os primeiros “rubicões” que terá que atravessar depois da posse rodeada de jovens esperançosos, dos shows gratuitos de grandes bandas, U2 à frente, e dos 50 grandes bailes.

Fora as questões internas da crise econômica, do desemprego, do deficiente sistema de proteção social e à saúde, ao longo do mandato terá imensos desafios globais a enfrentar. Reposicionará estratégicamente os Estados Unidos no mundo multipolar? Ajudará a criação de uma nova ordem econômica mundial, inclusive com maiores controles sobre o sistema financeiro? Apoiará a reformulação do sistema das Nações Unidas? Levará seu país a uma posição mais responsável diante da crise ambiental mundial?

O bom é saber que ele não está sozinho no front interno. Antecedendo à posse, a serviço dessa obamamania militante que o elegeu, importantes organizações progressistas americanas, que apoiaram sua campanha, já articularam uma plataforma de apoio às mudanças e à mobilização da opinião pública para que o sentido de “união nacional” necessário para o enfrentamento da crise não subverta os compromissos com as mudanças. Essa governabilidade ampla, na sociedade, pode fazer toda a diferença, e se constituir na garantia do cumprimento da promessa de mudanças.

Todas as mudanças anunciadas são possíveis e o mundo inteiro torce por elas. Estará o líder americano à altura dessas expectativas e desafios? Agora sim, vai ser testado se Obama pode. Se a sociedade americana pode. Se o mundo está, mesmo, diante do primeiro líder global.

Entrevista com Paul Krugman: Sem grandes ilusões

Por Robinson Borges
DEU NO VALOR ECONÔMICO


A esperança não venceu o medo do economista americano Paul Krugman. Considerado um dos mais severos críticos do governo de George W. Bush, o vencedor do Prêmio Nobel de Economia do ano passado diz se sentir aliviado com a mudança na Casa Branca, mas confessa estar intranqüilo com o cenário que se desenha para a economia americana. "Na verdade, no curto prazo, estou muito nervoso. Não acho que, mesmo com o novo governo, que está quase pronto para fazer o que é necessário, isso vá ocorrer", disse Krugman em entrevista concedida anteontem ao Valor. "Espero estar errado sobre isso, mas acho que provavelmente vamos ter um plano de recuperação da economia nos próximos meses que será insuficiente, mais uma vez", prosseguiu o célebere colunista do "New York Times".

Árduo defensor de mais regulação dos mercados e de gastos públicos intensos, Krugman considera que as propostas divulgadas pela equipe econômica do recém-empossado presidente Barack Obama são tímidos para enfrentar a dimensão da crise atual. "Todas as soluções apresentadas me parecem meias medidas", criticou o professor de Princeton. "O pacote fiscal parece limitar o avanço do desemprego, mas não preveni-lo. O plano de socorro aos bancos parece que serve para evitar catástrofes, mas não é suficiente para recuperar o sistema."

Em sua perspectiva, os efeitos colaterais da crise atual serão terríveis: "O PIB dos EUA vai começar a crescer um pouco no fim do ano, mas o desemprego deve continuar muito alto nos próximos dois ou três anos. Provavelmente, o desemprego vai começar a cair no ano que vem, mas permanecerá alto."

De linhagem progressista, há tempos Krugman dá sinais do seu temor sobre o perigo dos excessos cometidos pelo mercado. Há dez anos, ele acendeu o farol amarelo da academia quando lançou um livro com o provocativo título "O Retorno da Grande Depressão". Em menos de 200 páginas, ele analisava as crises internacionais que assolaram a América Latina e Ásia na década de 90 e advertia: a dramática queda da atividade econômica dos países emergentes não era um fenômeno isolado. Ao contrário do que pregavam seus colegas ortodoxos, argumentava que havia uma exagerada confiança nas políticas macroenconômicas, e que elas não seriam capazes de banir o fantasma da grande depressão da economia global. Krugman enxergava nos episódios dos países emergentes o presságio "funesto de que os problemas da depressão não haviam desaparecido".

Uma década depois, com um Prêmio Nobel nas mãos e a maior recessão econômica nos EUA desde a Grande Depressão na cabeça, Krugman encontrou uma boa oportunidade para relançar o livro com uma edição revista e atualizada. Rebatizado de "A Crise de 2008 e a Depressão Econômica" (Campus/Elsevier), o título com prefácio do economista André Lara Resende chega às livrarias na próxima semana com um inevitável tom profético. "Tive um pouco desse sentimento de "não avisei?" No entanto, gastei os últimos dez anos me preocupando com a crise que enfrentamos hoje. É importante ver que isso tudo não é completamente sem precedentes, que é possível observar as lições do Japão, da Argentina e da Ásia", disse Krugman.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Depois de oito anos criticando severamente o ex-presidente George W. Bush, como o sr. se sente agora que a Casa Branca é ocupada por Barack Obama?

Paul Krugman: É um grande alívio. Do ponto de vista político, nossa democracia sobreviveu aos oito anos de Bush. Agora temos pessoas muito inteligentes no novo governo, o que é uma boa coisa. O problema é a dimensão da crise que Obama tem de enfrentar. Isso significa que a celebração não deve durar muito, especialmente do lado econômico, mas não apenas nesse aspecto. Há muitos outros a serem contornados. Não estou tão otimista quanto gostaria de estar.

Valor: A esperança não venceu seu medo?

Krugman: Na verdade, no curto prazo, estou muito nervoso. Não acho que, mesmo com o novo governo, que está quase pronto para fazer o que é necessário, isso vá ocorrer. Espero estar errado sobre isso, mas acho que provavelmente vamos ter um plano de recuperação da economia nos próximos meses que será insuficiente, mais uma vez. Mas, no final das contas, vamos fazer o que é necessário. Enquanto isso, seremos extremamente afortunados se escaparmos de uma taxa de desemprego de 9% ou mais nos Estados Unidos... Não sei como dizer isso... Todas as soluções apresentadas me parecem meias medidas. O pacote fiscal parece limitar o avanço do desemprego, mas não preveni-lo. O plano de socorro aos bancos parece que serve para evitar catástrofes, mas não é suficiente para recuperar o sistema.

Valor: É uma questão de dose, isto é, seria preciso pôr mais dinheiro, ou está se fazendo a coisa errada?

Krugman: A escala dos planos é menor e muito distante das necessidades reais. A injeção de US$ 350 bilhões no setor financeiro, que para muita gente é muito dinheiro, não é. O valor necessário de injeção de capital no sistema bancário no curto prazo seria de US$ 1 trilhão. A perda do valor de ativos problemáticos ao longo dos últimos meses basicamente superou o dinheiro que estamos injetando. Também temos um problema: é muito difícil injetar capital em bancos fundamentalmente insolventes. E agora parece que este é o caso. Certamente, estou analisando grandes bancos como o Citigroup. Não está claro como os compradores de ações podem fazer seu trabalho nessas circunstâncias, porque me parece que um banco exige algo muito mais radical para ser salvo. O problema da crise é que ela é tão grande que o que se assemelha a uma grande resposta, na verdade, se transforma em uma resposta insuficiente.

Valor: O sr. já disse que o governo americano teme a palavra nacionalização. Seria essa uma solução para o problema dos bancos?

Krugman: Acho que, no final das contas, é a única alternativa disponível. Há muitos problemas com a nacionalização dos bancos, e temos de entender que ninguém quer ver o governo administrando o sistema bancário. Mas, se você observar a situação das maiores instituições financeiras, é muito difícil ver como podem continuar funcionando sem uma aquisição total. Elas não estão numa posição de cobrir todas as suas perdas para continuar. Se não houver uma nacionalização, isso significa que essas perdas ficarão para os acionistas. Não vejo uma saída e eu não estou feliz com a perspectiva.

Valor: Uma das razões para que as propostas de socorro de Barack Obama sejam "tímidas", segundo qualificação do sr., não é seu temor de aumentar o déficit? Ele não deve ter esse medo?

Krugman: Há uma preocupação real com isso, obviamente. Estamos falando dos Estados Unidos e de um grande déficit. Se alguém dissesse que vamos ter um pacote de US$ 3 trilhões, até eu diria: "Meu Deus, eu não sei se temos condições de gastar isso." Mas acho que podemos gastar US$ 1 trilhão. No entanto, na verdade, não sei se esse é o problema real para a expansão do plano. Acho que isso ocorre por causa de uma combinação de fatores, como a dificuldade em lidar com projetos a serem pagos no futuro e a precaução dos políticos. Eles realmente não querem ter um plano de US$ 1 trilhão. Acho que o que limita o plano de Obama é a precaução política.

Valor: Quanto tempo o sr. avalia que durará esta recessão?

Krugman: Acho que o PIB dos Estados Unidos vai começar a crescer um pouco no fim do ano, mas o desemprego deve continuar muito alto nos próximos dois ou três anos. Provavelmente, o desemprego vai começar a cair no ano que vem, mas permanecerá alto.

Valor: O sr. parece não gostar da expressão "problemas estruturais" e parece não achar que eles tenham de entrar na receita para combater problemas graves e imediatos, como a crise atual. Mas há quem diga que os Estados Unidos gastam demais e a China, de menos, e que o esquema de países emergentes financiarem o déficit americano com enormes reservas está na raiz dos desequilíbrios atuais. Como consertar isso?

Krugman: Também é uma preocupação, mas não acho que deva ganhar centralidade na crise atual. Poderia argumentar que esses desequilíbrios têm muito a ver com as bolhas, mas, mesmo assim, não vejo como esses desequilíbrios façam diferenças fundamentais na estratégia de recuperação da economia. Precisamos salvar o sistema financeiro e expandir a demanda em todos os lugares. Isso não tem a ver com o desequilíbrio dos Estados Unidos com a China. Trata-se apenas de um pedaço da foto.

Valor: No livro, o sr. analisa diversas outras crises econômicas, passando pelas da Argentina, do México, da Rússia, da Ásia e chega até as bolhas da internet e da habitação nos Estados Unidos. Quais são os pontos de conexão entre todas elas?

Krugman: Há dois aspectos que unem todas essas crises. Um deles é que, de uma forma ou de outra, em todas houve um colapso financeiro, que envolve problemas com instituições, essencialmente problemas bancários. Não falo de bancos segundo o modelo tradicional, mas de bancos numa versão moderna, algo mais complexo. O segundo ponto é que, nesses episódios, os instrumentos simples de política fiscal e monetária não funcionaram. O que quero dizer quando trato de depressão econômica é justamente a incapacidade das ferramentas-padrão, que não servem para nos tirar da crise. Outra coisa é que há, por exemplo, uma similaridade reconhecível entre a forma como a crise na Rússia em 1998 levou a uma crise do real brasileiro e a forma como a crise da habitação americana atual levou a um problema na Islândia.

Valor: O sr. diz que a depressão econômica ocorre quando a política monetária perde seu poder de ação e as taxas básicas de juro são próximas de zero. Nesses casos, planos de socorro seriam fundamentais para estimular a economia. No Brasil, entretanto, nós temos as taxas de juros mais altas do mundo. O sr. acha que sua redução seria suficiente para mitigar o impacto da atual crise econômica? Isso significaria que a depressão econômica não chegou aqui?

Krugman: Vocês têm um diferente tipo de depressão, embora não seja tão severa quanto em outros lugares. Há duas razões para que você considere que a política monetária não está funcionando. Uma é aquela em que a taxa básica de juros é igual a zero, caso dos Estados Unidos hoje. Nessas condições, não há nada mais que você possa fazer. A outra é aquela em que você não corta a taxa de juros porque tem medo da desvalorização de sua moeda. Isso teria efeitos financeiros severos, por causa da dívida externa. O Brasil tem um pouco do segundo problema, mas não muito. O Brasil tem um dos casos menos ruins no cenário mundial. Não tenho lido muito sobre o Brasil ultimamente, mas me lembro que, quando o real se desvalorizou, em 1999, havia um temor generalizado de que seria uma catástrofe, como a da Indonésia, no ano anterior, e mesmo como a da Argentina, três anos depois. Na verdade, a desvalorização de 1999 não foi tão ruim porque o Brasil não tinha tanta dívida denominada em dólar nem estava tão frágil do ponto de vista financeiro como os outros. Hoje, o Brasil está numa situação melhor do que os países do Leste da Europa, que contam com empréstimos do exterior para abastecer suas economias emergentes. Eles têm muitas dívidas em euro e por isso não podem desvalorizar suas moedas. Estão numa armadilha por causa do estouro da bolha.

Valor: É isso o que sr. chama de mãe de todas as crises cambiais? E no Brasil, que desde que o Lehman Brothers quebrou, em setembro, o real se desvalorizou mais ou menos 25%?

Krugman: O Brasil não é o pior caso no momento. A queda da moeda brasileira não está criando o mesmo tipo de crise que outras desvalorizações. O Brasil é um país exportador de commodity [a queda das commodities é um dos fatores que explicam a expressiva desvalorização do real]. A crise de moeda realmente horrível é a da periferia européia, como já disse. Vemos países como Rússia, Estônia, Hungria, Ucrânia, Estônia, Polônia, Lituânia. Todos sofrem de crises cambiais. São crises como a da Argentina em 2002, mas de uma forma muito pior. O cenário pode se agravar, mas ainda há muitas peças de dominó para cair. Não vemos uma queda de impacto nas moedas dos Bálcãs. Só começamos a ver a severidade da crise no sudeste europeu. Claro que o problema do setor bancário está se tornando mais grave. Ainda estamos no meio da crise.

Valor: Voltando um pouco, o sr. acha que a redução das taxas de juros deve ser o principal mecanismo para o Brasil enfrentar a crise?

Krugman: Certamente haveria um efeito de expansão. Compreendo que o Brasil também tem inflação e que as coisas não são fáceis. Mas diria que o Brasil não é um caso clássico de país com depressão econômica. Vocês não são o Japão nem a Argentina, os dois tipos mais representativos de depressão econômica. Vocês devem se considerar felizardos por isso.

Valor: O sr. disse, numa entrevista recente, que saber o que ocorria na economia do G-7, grupo dos sete países mais ricos do mundo, na época da faculdade, era suficiente para entender a economia mundial. Mas hoje o cenário é diferente. As economias emergentes têm importância no mercado global. Como o sr. avalia que será a composição de forças no futuro, mesmo com a crise?

Krugman: Sim, hoje todos falamos dos Brics [Brasil, Rússia, Índia e China]. De alguma forma, o que ocorre agora são alguns ecos dos anos 30, quando um canal importante entrou em recessão, como ocorreu com os Estados Unidos na Grande Depressão, e essa recessão levou ao colapso das rendas dos países em desenvolvimento. O que vemos hoje é um colapso no comércio mundial, um dos pontos principais desta crise. E os países emergentes são centrais no comércio mundial. Realmente, estamos numa crise global. A China é uma preocupação especial, uma vez que se tornou um dos principais mercados. É uma das questões que me preocupam no momento. Estamos cautelosos ao observar essas economias emergentes. Como você disse antes, saber apenas o que ocorria nos países ricos era suficiente, mas agora os Brics são parte da história.

Valor: Em seu livro, fica bem claro que o sr. considera que os mecanismos de mercado têm limitações. O texto, de alguma maneira, procura provar isso com esta crise e outras tantas nas última décadas. Como o sr. acha que será o desenho do capitalismo a partir de agora?

Krugman: Estamos muito distantes de dizer que estamos nos despedindo do capitalismo. A forma como observo esta crise é que tivemos meio século, a partir da Grande Depressão, sem crises financeiras severas. Tivemos tempos ruins, mas nada comparado com o que vivemos nos anos 90 e, sobretudo, agora. Aquilo ocorreu por causa de um sistema bancário regulado e de um número razoável de controles. Eles não eram perfeitos, mas eram suficientes para manter o mundo como um lugar mais calmo. Podemos fazer isso novamente. O mundo está mais complicado, os controles terão de ser mais extensivos, a cooperação internacional terá de ser mais importante agora do que era no passado. Mas a história sugere que é possível moderar o capitalismo. Temos de voltar àquele modo tradicional, mas de forma atualizada para o século XXI.

Valor: Como escreveu o livro em 1999 e muito dos alertas registrados ali podem ser, de alguma forma, confirmados agora, o sr. teve uma sensação do tipo "não avisei?", ao relançar o livro?

Krugman: Tive um pouco desse sentimento de "não avisei?", sim. No entanto, gastei os últimos dez anos me preocupando com a crise que enfrentamos hoje. O importante é ver que isso tudo não é completamente sem precedentes, que é possível observar as lições do Japão, da Argentina e da Ásia.

Cidade das metáforas

Demétrio Magnoli
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO (ONTEM)

A guerra de cem anos entre judeus e árabes na Palestina existe em duas dimensões distintas: a histórica e a ideológica. A primeira, com suas verdades precárias e suas múltiplas sombras, desenrola-se como um drama de dois nacionalismos conflitantes, embebidos por signos religiosos e situados no terreno de disputas geopolíticas entre as potências mundiais. A segunda, iluminada por certezas intensas, implacáveis como o sol do deserto, tolda a compreensão da primeira.

Cada uma das explosões de violência da guerra sem fim amplifica o ruído produzido pelos ideólogos e estreita um pouco mais o espaço de análise histórica do conflito. A guerra real converte-se em pretexto para a mobilização das forças de outra guerra, travada na esfera das narrativas, que bombardeia todos com os obuses do maniqueísmo. Jerusalém, a cidade, torna-se Jerusalém, a metáfora.

Sob a perspectiva dos ideólogos pró-Israel, Jerusalém é a metáfora de um posto avançado do Ocidente na terra dos bárbaros. Toda a narrativa da guerra reflete um confronto épico entre a ordem democrática e o terror. Segundo seu cânone, Israel é uma democracia - a única do Oriente Médio - e essa condição lhe confere uma legitimidade especial, que abrange inclusive o direito de ocupar os territórios palestinos e continuar a expandir assentamentos israelenses em meio a processos de paz.

Os árabes da Palestina, dos beduínos errantes figurados pela mitologia sionista, passaram a constituir uma nação de terroristas, o que se atesta pelo fato de seus dirigentes políticos serem, invariavelmente, apresentados como líderes de organizações terroristas. Ontem, Yasser Arafat foi designado como interlocutor inviável, por colaborar com o terror. Hoje, o Hamas é apontado como interlocutor ainda mais inaceitável, por funcionar como o ventre do qual emerge o terror. A democracia tem um direito ilimitado de reagir ao terrorismo, mesmo à custa das vidas de centenas de civis palestinos, e a crítica moral aos atos de Israel equivale a uma cooperação tácita com as forças ocultas do terror.

Como o cinema, a narrativa ideológica emerge do truque da montagem. Israel, efetivamente, é uma democracia - e nos jornais israelenses se encontra a mais dura crítica moral à guerra em Gaza. Mas é uma estranha democracia, tisnada pelo fundamentalismo judaico, pelo impulso expansionista do sionismo e pela prática sistemática da tortura em prisões comandadas pelo serviço secreto. O terror é, de fato, um expediente que exige condenação incondicional e quase todas as principais organizações palestinas praticaram atos de terror. O expediente abominável, contudo, foi utilizado, sempre com efeitos contraproducentes, pelos mais distintos movimentos nacionalistas, inclusive pelos judeus que se estabeleciam no mandato britânico da Palestina.

A decisão de David Ben Gurion de afundar um navio carregado de armas que se destinavam a uma organização terrorista sionista representou a verdadeira inauguração do Estado de Israel, um mês depois da independência formal. No seu dia, o Estado Palestino terá de passar pelo mesmo teste de fogo, pois o monopólio da violência legítima é o atributo mais crucial da soberania. Mas os terroristas provavelmente se tornarão líderes políticos respeitados e, como aconteceu com o israelense Menachem Begin, algum deles talvez venha a ocupar a chefia de governo.

Sob a perspectiva dos ideólogos pró-palestinos, Jerusalém é a metáfora da resistência à opressão imperialista: o lugar do heroico martírio de um povo submetido ao tacão combinado dos judeus e dos EUA. Aqui, a narrativa da guerra funciona como uma represa onde se misturam as águas sujas do antissemitismo clássico e do antiamericanismo contemporâneo. No fim das contas, esta narrativa celebra a aliança entre os regimes árabe-muçulmanos autoritários e uma esquerda decomposta que nada aprendeu e nada esqueceu.

De acordo com ela, Israel não é o fruto de um movimento nacionalista e do holocausto promovido pelo nazismo, mas um enxerto artificial na terra árabe e, além disso, um peão dos EUA no Oriente Médio petrolífero. A despossessão dos palestinos não é o resultado das estratégias fracassadas conduzidas pelos regimes árabes, mas o fruto inevitável de uma conspiração judaico-americana. O Estado judeu mimetiza e perpetua o nazismo, engajando-se em massacres gratuitos de civis e, mais amplamente, no genocídio do povo palestino. Uma nota oficial do PT sobre a guerra em Gaza se articula em torno dessas linhas - as mesmas que orientam os discursos oficiais do Irã e da Síria.

A narrativa ideológica emana de uma manipulação seletiva da história. Os sionistas originais eram socialistas que almejavam construir uma nação igualitária numa imaginada terra sem povo. Moscou foi o destino da visita oficial inaugural de Golda Meir, a primeira chanceler de Israel. A URSS deu apoio a Israel nos difíceis anos iniciais, quando os EUA mantinham uma posição de neutralidade. O nacionalismo palestino é um fenômeno ainda mais recente que o Estado de Israel - e só se consolidou como reação à ocupação israelense da Cisjordânia, de Gaza e de Jerusalém Leste. Sob o Fatah ou sob o Hamas, os palestinos não terão democracia nem liberdade, mas unicamente as opções de um regime autoritário, corrupto e violento ou de uma teocracia islâmica na qual a lei derivará de uma interpretação literal dos textos sagrados.

A guerra ideológica nutre incessantemente a guerra real travada na Palestina. A falência sucessiva dos projetos de paz não decorre de divergências práticas sobre o traçado das fronteiras, mas do impasse de fundo gerado pelas duas metáforas sobre Jerusalém. Cada uma delas representa uma condenação histórica da outra nação e condensa uma vontade quase explícita de aniquilação. A paz na Terra Santa depende, antes de tudo, da denúncia das metáforas exterministas inventadas pelos ideólogos.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.