quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Battisti, uma questão italiana

Roberto Cotroneo *
Por:
L'Unità & Gramsci e o Brasil.

Não há nada a fazer, o caso Cesare Battisti não é mais um problema diplomático entre Itália e Brasil, está se tornando algo muito mais grave. Hoje [27 de janeiro], o embaixador italiano no Brasil voltará à Itália para consultas. É um ato duríssimo e sob certos aspectos clamoroso. Neste momento, a tensão entre os dois países, com uma longa tradição de boas relações diplomáticas, parece pelo menos surpreendente. Nesta altura, Batisti certamente terminará como refugiado político no Brasil, porque nenhum país no mundo expõe-se com um parecer do seu presidente e depois recua das suas decisões. E é francamente impensável, sendo o Brasil uma das maiores potências do mundo, que a Itália interrompa as relações diplomáticas.

Mas não é no Brasil que a partir deste momento se joga a partida, mas sim na Itália. Porque o caso Battisti vai reexpor o nó da solução política sobre o terrorismo dos anos setenta na Itália. E é um nó que ninguém é capaz de cortar ou desatar. O que fazer? Aceitar que um país soberano e importante conceda e legitime os homicídios de Battisti, reconhecendo que aqueles homicídios eram só a parte mais extrema e violenta de uma guerra civil, de um projeto político? Não era assim e não pode ser assim. O único argumento seria este: passados trinta anos, tendo mudado de vida, tornando-se um senhor que vive como escritor, que sentido tem reabrir um caso do gênero? Pode-se não estar de acordo, mas tem uma lógica.

Pena, e aqui está de fato o problema, que Battisti não peça uma solução política com base numa reflexão dolorosa e lúcida sobre a luta armada. Todos sabemos que jamais disse uma só palavra sobre suas vítimas, jamais pediu desculpas aos familiares, mas de algum modo, por conta deste caso, tornou-se um testimonial da inevitabilidade da luta armada na Itália e do fato de que esta luta armada podia levar ao homicídio.

Tudo isso é realmente inaceitável, e o é ainda mais porque avalizado por um país soberano, importante, entre os maiores do mundo. Aceitar esta decisão significa uma derrota para todos nós, e talvez algo mais: implica a idéia de que pegar em armas contra um país, contra toda uma sociedade civil, contra cidadãos comuns, pode ser um mal inevitável ou, pior, uma necessidade. O caso Battisti afasta para sempre do nosso cenário a solução política sobre o terrorismo dos anos setenta, faz-nos recuar, nos aniquila. Não servem mais para nada anos e anos de reflexões de todos os protagonistas sobre a luta armada na Itália, as palavras de perdão que dirigiram aos familiares das vítimas, o arrependimento autêntico de quem viveu aqueles anos e provocou vítimas, a reflexão crítica dos que se dissociaram da luta armada ou até de quem quis acertar até o fim suas contas com a justiça. Está tudo cancelado, naquele sorriso zombeteiro que Battisti mostra diante dos flashes dos fotógrafos.

* Roberto Cotroneo é jornalista de L'Unità, que foi durante décadas o orgão oficial do Partido Comunista Italiano.

O caso Cesare Battisti

Almir Pazzianotto Pinto
Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

Ao leigo, relevam-se juízos ligeiros e apaixonados sobre complexas questões de direito civil, trabalhista, penal e internacional. Aos que se dedicam à ciência jurídica, e dela fazem profissão de fé, jamais. Cesare Battisti pertence à espécie daqueles que atraem a solidariedade do esquerdismo mais extremado, pois é um dos seus. Fosse alguém sem tumultuado passado político, teria permanecido no anonimato desde o instante em que se viu identificado e preso pela Polícia Federal, até o momento da devolução ao país de origem.

Afinal, quem é a lombrosiana figura que tantos cuidados desperta no governo petista? Como todos os brasileiros, tomei conhecimento daquilo que tem sido divulgado pela imprensa, ou está à nossa disposição na internet. Cesare Battisti nasceu em Sermoneta, pequena comunidade da região de Lazio, na Itália central, em 1954. Abandonou a escola em 1971 e, desde então, teria sido recolhido várias vezes, como ladrão e autor de outros delitos. Libertado em 1976, ingressou no grupo terrorista Proletários Armados do Comunismo (PAC), surgido das Brigadas Vermelhas. O termo armados desnuda a índole dos quadrilheiros.

Acusado da morte de quatro pessoas — Antonio Santoro, agente penitenciário; Pierluigi Torregiani, joalheiro; Livio Sabatini, açougueiro; e Andréa Campagna, policial —, a primeira assassinada em 1976 e as demais em 1979, Cesare Battisti foi condenado à prisão perpétua. Por ser fugitivo, o julgamento dos dois últimos crimes correu-lhe à revelia, recurso processual legítimo, adotado em nossa lei.

Durante os anos de fuga, o criminoso percorreu diversos países, para, afinal, refugiar-se no Brasil, até ser localizado e preso em 2007. Antecipando-se à decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o pedido de extradição formulado pela Itália, o ministro da Justiça, Tarso Genro, conferiu a Cesare Battisti o status de asilado político.

O que sei sobre o perigoso indivíduo é o que acabam de ler. Dois ângulos da polêmica questão, sinto-me apto a analisar, porque independem de consulta aos autos do processo, e envolvem fatos incontroversos. Um deles tem tudo a ver com nossa Constituição, que dedica à matéria os incisos LI e LII do art. 5º. O primeiro prescreve que não se extraditará brasileiro nato; o segundo veda a extradição de estrangeiro “por crime político ou de opinião”. Afastada por razoes óbvias a primeira hipótese, ao caso Batttisti não cabe o benefício da segunda.

Crimes políticos foram os que vitimaram o imperador Júlio César, em 44 a.C. e Aldo Moro, sequestrado e executado pelas Brigadas Vermelhas, em 1978. Qualificar como de cunho político a morte, a frio e a tiros, do agente penitenciário, do joalheiro, do açougueiro e do policial, significa rebaixar a dimensão da incomum figura delituosa, e usá-la como pretexto para acoitar perigoso facínora. Salvatore Giuliano, o bandido que aterrorizou a Sicília, teria sido criminoso político? A Máfia e a Camorra, quando trucidam juízes e policiais, por discordarem das condenações, cometem crimes políticos?

Em situações especialíssimas pode ocorrer certa dificuldade na distinção do crime político, do crime comum. Ambos, porém, pertencem ao submundo dos sequestros, do terror, dos explosivos, das armas de fogo. Qualquer que seja o perfil ideológico de quem analisa o caso, Cesare Battisti, matador de cidadãos de bem, não se encaixa na estreita moldura do criminoso político.

Teria sido vítima de erro judicial? Se disso é que se cogita, qual a competência do governo brasileiro para anular decisões do Poder Judiciário italiano? Estaria equiparando a Itália a regimes ditatoriais, que perseguem, prendem e calam os opositores? Do fascismo, aqui sobrevivente no corporativismo sindical, a Itália nada preserva. É exemplo de república democrática, onde reina a liberdade de opinião, vigora o princípio do devido processo legal e se assegura amplo direito de defesa aos acusados.

O Brasil é famoso pela impunidade. Réus confessos e condenados transitam pelas ruas, aterrorizando a população indefesa. Espero que ao governo não ocorra a idéia de garantir a liberdade de criminosos que nos procuram para se ocultar, como fez Cesare Battisti. Criminosos?

Bastam os nossos.

O caso Battisti

Janio de Freitas
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

O aumento da animosidade tem a ver com a má condução do caso, em relação ao governo da Itália, pelo governo do Brasil

O CASO DO italiano Cesare Battisti, entre o refúgio e a extradição, tomou a um só tempo o melhor e o pior caminhos. O governo, porém, vai mal nos dois.

A decisão do governo italiano de chamar a Roma o seu embaixador no Brasil, "para consultas" como consta no jargão diplomático, evidencia que a reação deixou de ser apenas palavrosa na Itália, ante o status de refugiado concedido a Battisti pelo governo brasileiro. É o governo Berlusconi que entra e assume o problema, em nome da contestada Justiça italiana que sentenciara Battisti à prisão perpétua, sob acusação de autoria e coautoria em quatro homicídios alegadamente políticos.

O aumento da animosidade tem a ver com a má condução do caso, em relação ao governo italiano, pelo governo brasileiro. Desde as primeiras reações pessoais de parlamentares e integrantes do governo em Roma, com farta repercussão na imprensa e TV, em vez de explicações e justificativas o governo brasileiro dirigiu-lhes poucas e impróprias palavras.

Sempre com base em duas ideias: a concessão de refúgio feita pelo ministro Tarso Genro "foi um ato legal" e "de soberania brasileira". Duas ideias básicas de um parecer do jurista Dalmo Dallari favorável ao pedido de Battisti e, tudo indica, bastante influente na concessão assinada pelo ministro da Justiça com a cobertura prévia de Lula.

A soberania do Brasil para decidir, entre o refúgio de Battisti e a extradição pedida pela Itália, tornou-se o argumento também de Lula, em suas referências públicas ao caso e na resposta à carta que lhe enviara o presidente italiano, Giorgio Napolitano: "Foi um ato de soberania do Estado Brasileiro", respondeu Lula.

Os ares de resposta altiva nem sequer fazem, no caso, uma resposta à reação italiana. Em nenhum momento a soberania brasileira foi posta em questão nas queixas italianas, fossem pessoais ou oficiais. Os italianos manifestam, desde o início, contrariedade ou inconformismo com a rejeição brasileira ao inquérito da polícia e do Ministério Público e à decisão da Justiça da Itália. Reação esperável e de compreensão sem maior dificuldade. Tanto que, aqui mesmo, a Procuradoria Geral da República e o Conare (Comitê Nacional para Refugiados) recomendaram ao ministro da Justiça a extradição, em concordância com o inquérito e a sentença judicial italiana.

Assim como a soberania não foi questionada, também não o foi o enquadramento legal da atitude de Tarso Genro. Nem ao menos para lembrar que um ato não é correto e bom só por refletir soberania e não ser ilegal. Os exemplos em contrário enchem a pequena e a grande histórias.

O primeiro-ministro Berlusconi e seu governo são destemperados o suficiente para tornar imprevisíveis os futuros lances do caso Battisti. O outro caminho tomado pelo problema oferece, no entanto, uma solução. Primeiro, por levar o caso para o conveniente julgamento coletivo do Supremo Tribunal Federal, entre refúgio e extradição. Além disso, porque a decisão do STF estará baseada em arrazoados que, se em maioria confirmarem o refúgio para Cesare Battisti, darão ao governo e aos queixosos italianos a resposta adequada que não receberam do governo brasileiro.

Os argumentos de Tarso Genro

Cláudio Gonçalves Couto
DEU NO VALOR ECONÔMICO

O imbróglio em torno da concessão do asilo político ao ex-guerrilheiro italiano, Cesare Battisti, condenado à prisão perpétua em seu país, assumiu nos últimos dias tons mais dramáticos e, ao mesmo tempo, ares de ópera bufa. A dramaticidade ficou por conta da convocação para consultas do embaixador italiano no Brasil - um ato diplomático que se toma em momentos de tensão entre duas nações, como demonstração de grave contrariedade. Já o lado bufão foi-nos propiciado pelo Sr. Alfredo Mantica, subsecretário italiano de Relações Exteriores, que como forma de retaliação tentou anular o amistoso entre os selecionados de futebol dos dois países, marcado para o dia 10 de fevereiro; mas felizmente alguém foi mais sensato e não perderemos esse grande jogo.

Num momento próximo o governo Lula deverá avaliar se valeu a pena todo o desgaste que este episódio provocou ao relacionamento com um parceiro como a Itália - país democrático e com profundos laços estabelecidos conosco, particularmente em decorrência do profundo imbricamento cultural que a imigração italiana nos proporcionou. Estragos como este não se consertam também com alegações que apresentam meras constatações de fatos como se fossem justificativas políticas. Neste sentido, não foi das mais felizes a afirmação, feita pelo presidente Lula, de que a concessão do asilo foi um ato soberano do Brasil, cuja aceitação seria a única alternativa disponível aos italianos. Ainda mais porque um dos principais argumentos que o ministro Tarso Genro utilizou para embasar sua decisão de concessão do asilo foi uma crítica ao funcionamento dos sistemas judicial e político italiano: Battisti não teria tido condições de se defender adequadamente por vícios de processo e pelo clima político na Itália à época em que foi julgado. Ora, este tipo de arrazoado é uma evidente intromissão em assuntos internos da Itália e, portanto, um desrespeito à sua soberania. Quer dizer que nosso ministro da Justiça pode avaliar a qualidade da justiça e da democracia italianas, mas a Itália deve aceitar passivamente nossas decisões soberanas? Tanto pior diante do reconhecimento, pelo próprio ministro Genro, de que a Itália é um Estado democrático de direito. Caso não fosse, talvez tivéssemos justificativas para a concessão do asilo, pois haveria aí uma assimetria no tratamento que regimes distintos - um, democrático; outro, não - concedem a seus cidadãos.

Todavia, o debate político não se encerrou na discussão sobre o caso específico de Battisti. Diante das críticas, o ministro da Justiça, Tarso Genro, saiu-se com esta explicação:

- No momento em que a grande bandeira do neoliberalismo sucumbiu, que era a nossa submissão total ao capital financeiro e às suas necessidades desregulamentadoras, os próprios promotores e ideólogos desse modelo precisavam de um outro argumento para fazer oposição e se apegaram nesse do Battisti. Não é de pasmar que 99% dessas pessoas defendem impunidade para os torturadores. As mesmas pessoas são favoráveis que se entregue o senhor Battisti, mesmo o Brasil não tendo entregue outras pessoas que estavam na mesma situação - acrescentou. (http://oglobo.globo.com, 26/01/2009).

Aqui o ministro mistura várias coisas e, para piorar, recorre a uma falácia clássica, o argumento "ad hominem" - aquele que busca desqualificar as idéias proferidas pelo contendor num debate em função do pertencimento dele a um grupo, pelas suas convicções ou simplesmente por ele ser quem é. No caso, as críticas à sua decisão seriam viciadas porque proferidas por neoliberais. Será mesmo? Seriam também neoliberais os membros do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) que não recomendaram a concessão do asilo? E o procurador-geral da República?

Também é problemática a comparação que Genro estabelece com a defesa da não-punição de torturadores que estariam protegidos pela Lei da Anistia, cuja revisão é defendida pelo ministro. Tarso Genro compara coisas distintas: no caso de Battisti, houve o uso de violência na vigência de um Estado democrático de direito e a condenação daquele que a usou na vigência desse mesmo Estado. No caso dos torturadores do regime militar autoritário, houve um processo de transição para a democracia que teve como peça chave um pacto, que concedeu anistia aos que usaram da violência dos dois lados do conflito; rever esta lei agora seria trair esse pacto. Portanto, defender simultaneamente a punição a Battisti e a preservação da anistia aos torturadores (assim como aos que pegaram em armas contra o regime autoritário) significa defender o respeito a regras democráticas e a pactos políticos que permitiram a democratização. Isto não tem a ver nem com "neoliberalismo" (idéia fora do lugar nesta discussão), nem com uma idéia de justiça parcial - "aos amigos tudo, aos inimigos a lei".

É também inaceitável o argumento do ministro Genro, de que a concessão do asilo a Battisti segue a mesma lógica dos anteriormente concedidos aos paraguaios Alfredo Stroessner e Lino Oviedo, envolvidos respectivamente com uma ditadura longeva e com atos de violência política.

Em primeiro lugar porque, em ambos os casos, a concessão do asilo obedecia aos interesses estratégicos brasileiros, de receber a ambos como forma de facilitar a pacificação política do país vizinho. Em segundo lugar porque, se por acaso essas concessões de asilo tivessem se dado de forma condenável (proteção a quem cometeu crimes contra a humanidade), não caberia justificar a atual concessão do resguardo a Battisti com base nelas. Tanto mais difícil de aceitar a decisão do ministro da Justiça se consideramos seu histórico recente: lembremos o tão mal explicado episódio dos boxeadores cubanos, que após pedir asilo teriam mudado de idéia e pedido para regressar a seu país, mas pouco tempo depois fugiram de Cuba para a Alemanha, tendo lá declarado que foram forçados pelas autoridades brasileiras a voltar para Cuba. Em quem deveríamos acreditar nesse outro episódio?

Por estas razões, e para além do prejuízo diplomático que este episódio acarreta, fica difícil acreditar que os critérios do ministro Genro sejam outros que não a distinção dos que cometem atos de violência por estarem à direita ou à esquerda. Aos torturadores direitistas da ditadura militar, mesmo que anistiados num pacto de transição, cabe a punição; ao guerrilheiro esquerdista Battisti, mesmo que tendo violentado uma democracia, cabe o perdão. De que justiça se trata?

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da PUC-SP e da FGV-SP.

Esquerda, volver!

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


O Palácio do Planalto trabalha para consolidar a candidatura de Dilma como a herdeira de um projeto nacional-desenvolvimentista, cuja pedra de toque é a forte intervenção do Estado na economia

A presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Fórum Social Mundial, em Belém, onde pululam representantes de movimentos sociais, de minorias e das esquerdas de todos os matizes, é um gesto simbólico. Resgata para o governo velhas bandeiras de esquerda exumadas pelo PT, com objetivo de vestir de vermelho a candidatura da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Pela mesma razão, como uma inhambu que recusa convite de jacu, Lula também esnoba a reunião do Fórum Econômico Mundial, em Davos. Quer se livrar do “mais do mesmo”, a política econômica-financeira que encampou e está sendo volatilizada pela “globalização”.

Contradições

Diante do impacto da crise mundial, ficou difícil manter o equilíbrio entre os grupos de interesse em conflito dentro do governo. Os choques são reveladores. Os ministros da Agricultura, Reinhold Stephanes, e o do Meio Ambiente, Carlos Minc, batem boca pela tevê. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, e o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, trocam farpas nas entrevistas coletivas como num duelo de floretes. O ministro da Justiça, Tarso Genro, virou mais uma pedra no sapato do Itamaraty. O ministro do Trabalho, Carlos Lupi, fala grosso contra as demissões, enquanto seu colega do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Miguel Jorge, zela pelas grandes empresas em dificuldades. O fogo amigo do ministro de Assuntos Estratégicos , Mangabeira Unger, com suas críticas ao “pobrismo”, atinge em cheio o Bolsa Família. E o ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, aperta o cerco contra o governador da Bahia, Jaques Wagner (PT), amigo dileto de Lula.

Velhas contradições hibernavam no governo sobre o manto da política de compromisso. Agora, despertaram com o barulho da crise. Num governo de ampla coalizão, o discurso de união nacional, cujo leito natural é a velha política de conciliação, se encaixaria como uma luva para manter os parceiros coesos. Lula até cede, constrangido, o controle do Congresso Nacional ao PMDB, o partido de patronato político brasileiro. Essa é uma estratégia de acomodação, que garante a estabilidade política do governo, mas também facilita a vitoria da oposição na sucessão de 2010. Não é esse, porém, o desejo de Lula.

Guinada

O Palácio do Planalto trabalha para consolidar a candidatura de Dilma como a herdeira de um projeto nacional-desenvolvimentista, cuja pedra de toque é a forte intervenção do Estado na economia e a existência de políticas sociais voltadas para as parcelas mais pobres da população.

Seu lastro era a expansão da economia. Com o apoio das centrais sindicais e os instrumentos de que dispõe, como a Petrobras, as agências reguladoras e os fundos de pensão, o governo Lula atuava no sentido de reorganizar o capitalismo brasileiro, numa parceria do setor público com os grandes oligopólios privados, alguns dos quais fortalecidos graças às verbas federais, como ocorre na telefonia. Um modelo diferente daquele que foi esboçado com as privatizações do governo de FHC, cujo objetivo foi acabar com a inflação e se integrar à economia globalizada.

A crise financeira mundial fortaleceu ideologicamente esse projeto do governo, dando à candidatura de Dilma Rousseff um conteúdo programático que vai muito além da simples execução das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Em contrapartida, na política, a convivência entre seus agentes econômicos e sociais se tornou mais difícil. O ambiente de retração econômica esgarça as relações entre seus atores e faz emergir demandas antagônicas, que dificultam a acomodação. Como manter a política de elevação do salário real com o desemprego batendo à porta e os empresários propondo a redução da jornada de trabalho, dos salários e a flexibilização da legislação trabalhista? Como financiar as fusões de grandes empresas e as exportações quando o crédito para a compra de bens de consumo simplesmente sumiu? A agenda da crise é outra, reflete contradições que estavam adormecidas.

Pressionado, o governo deriva à esquerda, para preservar suas bases sociais. Os aliados mais importantes, entretanto, preferem uma política centrista.

O que não faz sentido

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Noves fora o já notório senso de (des) proporção do ministro da Justiça, Tarso Genro, ele se faz lógico quando assegura que o sistema político brasileiro não desaba se o PMDB ganhar as presidências da Câmara e do Senado.

De fato, nada vai acontecer que abale o anacronismo de uma engrenagem tão enferrujada. A organização (no sentido empresarial) fica no comando da máquina de produzir fisiologismo em que se transformou o Congresso Nacional, enquanto PT e PSDB vão tratar da sucessão presidencial.

Cada um com seu cada qual de modo a que as tarefas e os quinhões fiquem distribuídos como sempre. Ganhando a presidência da República PT ou PSDB, o PMDB estará cumprindo o seu destino do camarote.

Michel Temer da presidência da Câmara, José Sarney no comando do Senado, um elogio ao mesmo, zero de possibilidade de algo se modernizar. Portanto, o que menos pode haver é ruptura, abalos contundentes.

Pois se é isso, se o ministro da Justiça ainda assim vê necessidade de enunciar o óbvio, se o presidente do PT quase admite que o candidato do partido à presidência do Senado concorre por honra da firma, se o PT acha mesmo que é praticamente impossível ganhar a parada de José Sarney, por que a confusão, por que insiste em concorrer?

Só pelo prazer do conflito? Não faz sentido. Se o partido obedece a Lula e cala sobre candidaturas à Presidência em 2010, acomodando-se sob o guarda-chuva Dilma Rousseff, não é de se imaginar que contrarie a vontade do chefe porque resolveu fazer afirmação partidária com a candidatura de Tião Viana ao Senado.

Da mesma forma foge à percepção a razão pela qual o PT mantém acesa a chama da possibilidade de “traição” do acordo firmado com o PMDB na Câmara, se oficialmente seu presidente garante os votos da bancada em Michel Temer.

Caso seja uma jogada, de duas uma: ou está muito bem engendrada e, no fim, revelar-se-á genial ou por algum motivo o PT resolveu dar ao PMDB um pretexto para briga, à falta de algo melhor para fazer em plena crise econômica e início de um processo eleitoral que pode significar a volta para a oposição.

Uma terceira hipótese é a de que o desentendimento seja apenas um desentendimento, fruto de inexperiência, desconexão, ausência de rumo. É improvável, porém, visto que suas excelências não brincam nesse tipo de serviço.

São ciosas do poder. José Sarney, por exemplo. Não negaria a candidatura peremptoriamente para depois entrar na disputa apenas, como dizem seus - nessa altura, mais prudente qualificá-los como supostos - adversários dentro do partido, porque foi convencido por Renan Calheiros a confrontar.

Aos 80 anos de idade, uma Presidência da República e mais de cinco décadas dedicadas ao exitoso ofício de dar nó em pingo d’água, é difícil acreditar que José Sarney possa ser convencido por alguém a entrar numa enrascada da envergadura de uma rasteira no presidente da República.

Presidente este com 80% de popularidade e dois anos de mandato pela frente. Não faz o menor sentido, mas algum sentido há de haver.

Aparências

Reunião ministerial marcada para 2 de fevereiro para “discutir a crise financeira” não influi nos efeitos da crise nem contribui para o real objetivo: dar a impressão de que o governo labuta, distanciado das eleições das novas Mesas da Câmara e do Senado.

Um lance é inútil e o outro, por pueril, resulta ineficaz.

No limite

A proposta do subsecretário de Relações Exteriores da Itália, Alfredo Mantica, de cancelamento do jogo amistoso com o Brasil em protesto contra o refúgio concedido a Cesare Battisti, põe o governo italiano na fronteira do perigoso terreno da boçalidade.

Daí para cair no ridículo e perder a razão é um passo.

Estatutos

Talvez os ministros Reinhold Stephanes, da Agricultura, e Carlos Minc, do Meio Ambiente, não saibam, mas o Código de Ética da Alta Administração Pública proíbe “a crítica pública sobre a honorabilidade ou desempenho funcional de qualquer autoridade do Executivo”.

É provável que os ministros desconheçam as normas porque muito possivelmente nem saibam que, no ato das respectivas posses, juraram obediência ao código.

Dois pesos

É a diferença entre o compromisso e o falta de compromisso. A ministra Dilma Rousseff não participará do Fórum Econômico Mundial em Davos, mas fará palestra no figurino de candidata à Presidência da República em Belém, no Fórum Social Mundial.

Na Suíça não caberia uma performance; seria preciso que Dilma fosse, sob todas circunstâncias, a candidata do presidente Lula à sucessão e assim, sacramentada, parecesse ao mundo onde a objetividade dos fatos fala mais alto que o voluntarismo ideológico.

A democracia, afinal, ‘pegou’

Luiz Weis
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Parece fora de dúvida que existe uma relação de causa e efeito entre a melhora das condições de vida do povo nos últimos anos e a adesão recorde à democracia, registrada pelo Datafolha na mais recente de suas sondagens sobre o regime preferido pelos brasileiros. Hoje são 61% os que consideram a democracia a melhor forma de governo, sempre. Para 19% tanto faz e apenas 11% acham que “às vezes” a ditadura pode ser uma boa.

Quando o instituto começou a pesquisar o assunto, em 1989, pouco antes da primeira eleição direta para presidente em três décadas, os democratas eram 43%. Nos anos seguintes, o índice ganhou um punhado de pontos, mas só a partir de 2003 passaria a representar a maioria absoluta das opiniões. Os resultados eram ainda mais desencorajadores na série do instituto chileno Latinobarómetro, indicando que o apreço dos brasileiros pela democracia era um dos mais baixos no continente.

“A população se deu conta de que a democracia política pode gerar democracia social”, interpreta o historiador José Murilo de Carvalho, citado pela Folha de S.Paulo. “Os pobres estão percebendo que o voto pode alterar positivamente a política pública e não apenas gerar vantagens individuais.” O argumento bate com o andar dos números. Foi entre os que só cursaram o ensino fundamental e entre aqueles com renda de até cinco salários que o apoio à democracia aumentou para valer: de 49% para 56% no primeiro caso e de 53% para 61% no segundo.

Fosse isso e nada mais, talvez não houvesse muito a comemorar. Se a preferência pelo regime só dependesse do estado do bolso de cada qual, não teria cabimento considerar consolidada na sociedade a democracia como valor político. Mas é exatamente a firmeza de sua implantação que a pesquisa atesta. Sim, muita gente pode ter ficado “mais democrata” por entender que, graças ao voto, elegeu um presidente que fez a vida melhorar. Essa talvez não seja, porém, a principal explicação para a boa nova.

A sua face mais visível é a incorporação do voto - a primeira palavra que ocorre a 11 em cada 10 pessoas quando se lhes pergunta o que entendem por democracia - aos usos e costumes nacionais. Desde 1992, a cada dois anos o brasileiro sai de casa para escolher do prefeito ao presidente, do vereador ao senador. E se pegou gosto pela coisa é por ter-se dado conta, com o passar das eleições, de que o jogo é à vera: apesar de todas as lambanças, o sistema funciona.

Essa percepção se cristalizou a ponto de, pela primeira vez, a maioria se declarar favorável ao voto obrigatório. São 53% os seus defensores - chegando, não está claro por quê, a 60% na população que vive com até dois salários mínimos e a 59% entre os mais jovens. De toda maneira, se o ato de votar fosse visto antes como um encargo do que como um direito - e, principalmente, uma oportunidade -, o voto facultativo continuaria prevalecendo na série iniciada pelo Datafolha em 1994.

Mas por que “o sistema funciona”? Porque, tudo indica, tem raízes fundas na cultura política nacional. Desde o Império, as elites decidiram e se habituaram a tirar a limpo as suas diferenças nas urnas - embora tardasse uma eternidade até que elas se tornassem limpas, competitivas, regulares e universais. Voto censitário, a bico de pena, de cabresto, restrito, indireto, manipulado, roubado, o que se queira, o fato é que só durante o Estado Novo, de 1937 a 1945, não houve eleições no Brasil. Nem nos 21 anos da ditadura militar o voto popular foi de todo abolido.

Cientistas políticos chamam isso de “institucionalização do sufrágio como mecanismo preferencial de resolução da disputa política”. Pode soar pedante, mas pouca coisa não é - e basta olhar em volta para entender o quanto é incomum essa tradição brasileira, com todos os seus vícios, deformações e adulteração da vontade da maioria. O padrão predominante na história da América Latina é o da institucionalização da força, não do voto, como mecanismo preferencial, etc., etc.

Às vezes é constrangedor lembrar que o Brasil não conheceu período de estabilidade democrática tão prolongado como este, que começou quando o último dos generais de 1964, aquele que preferia cheiro de cavalo ao do povo, saiu pelos fundos do Palácio do Planalto, em 1985. Ainda assim, um luxo, comparado com a folha corrida dos vizinhos, salvo as luminosas exceções do Uruguai (à parte Bordaberry), Chile (à parte Pinochet) e Costa Rica (à parte ninguém).

Ainda não é tudo. Contrastando com a vizinhança, são raros os episódios em que forças políticas brasileiras apostaram em atirar o povo contra as instituições para chegar lá ou lá se manter.

Quem são os equivalentes nacionais de Hugo Chávez, Evo Morales, Rafael Correa, senhor e senhora Kirchner e, leva jeito, Fernando Lugo? E aqui se percebe o logro embutido nas acusações que governo e oposição têm trocado entre si. Ainda bem que elas não resistem a um sopro de realidade.

A direita passou a vida e a atual temporada no deserto chamando Lula e o PT de populistas.
Poderiam ter sido, num universo paralelo, mas nunca foram neste em que se vive. O maior partido popular da história brasileira, com todas as suas toneladas de denúncias retóricas contra “isso que está aí”, quando o seu líder máximo ainda estava ali, e apesar dos arreganhos de festim do “Fora FHC”, jogou invariavelmente a cartada democrática, a da via eleitoral, como se falava quando a esquerda imaginava que pudesse haver outra, não menos legítima.

Lula, é verdade, acusava o Congresso de abrigar “300 picaretas”. Para fechá-lo? Ou para eleger mais companheiros? Mas o que fez o lulismo depois que entraram em cena, pela ordem, o mensalão e o dossiê? Acusou a oposição (e a mídia) de golpista, sabendo que não tinha bala na agulha, muito menos vontade de sacar para ver. Afinal, o próprio pefelê, saído das entranhas da ditadura, entrou no jogo democrático e hoje se chama “Democratas”.

Luiz Weis é jornalista

À sombra de Obama

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


DAVOS. O grande balizador de posições dos debates na reunião anual do Fórum Econômico Mundial, que se realiza na sofisticada estação de esportes de inverno de Davos, na Suíça, será o novo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Embora ausente do encontro, estará representado pelo presidente de seu Conselho Nacional de Economia, Larry Summers, e praticamente todos os temas de destaque do evento, que supostamente define o panorama econômico do ano que se inicia e traça as perspectivas futuras do capitalismo, têm a ação do novo governo americano como ponto de partida.

Com o tema deste ano "Definindo o mundo pós-crise", o encontro que começa hoje tem tudo para ser dos mais importantes já realizados, inclusive porque a crise econômica que já estava desenhada em janeiro do ano passado não foi detectada pelo Fórum do ano anterior, e se impôs aos debates oficiais quase que de maneira paralela.

Naquela ocasião, o tema central era "O poder da inovação cooperativa", como se o mundo não caminhasse para o caos econômico em que mergulhou.

Os "senhores do universo", cerca de dois mil executivos, empresários, ministros, profissionais ligados à ciência e tecnologia, dirigentes de ONGs, jornalistas, sindicalistas, reitores das principais universidades do mundo, e nada menos que 41 chefes de Estado e de governo estarão tentando definir o que será do mundo após a crise econômica e, antes disso, como sair dela sem comprometer a credibilidade do capitalismo.

A agenda imediata vai das reformas econômicas à mudança climática e aos combustíveis alternativos. A reunião deste ano será a maior já realizada, diante da enormidade dos desafios que se apresentam.

Uma reunião preparatória foi feita em novembro, em Dubai, já em plena vigência da crise econômica internacional, cujo detonador foi a quebra do banco Lehman Brothers em setembro - com 700 membros de 69 conselhos de agendas globais para definir a agenda do encontro anual do Fórum Econômico.

Uma primeira conclusão é a de que a complexidade e interdependência não são apenas características da globalização, mas também as raízes da crise sistêmica que estamos vivenciando.

Os organizadores do encontro consideram que, com a mudança radical do ambiente internacional diante da crise econômica, países, empresas e comunidades estão sendo forçados a rever seus objetivos de futuro e repensar as estratégias, e essa mudança de rumo é o ponto de partida para os debates deste ano.

A partir de agora, as soluções futuras terão que ser desenvolvidas de maneira interdisciplinar e abrangente, que os especialistas em gestão empresarial chamam de "visão holística", para assegurar que os interesses dos investidores e acionistas estão protegidos.

Será imperativo, de acordo com os organizadores de Davos, saber "ligar os pontos" para entender a relação entre os assuntos, interesses e as instituições para chegar a soluções de longo termo.

Em vários pontos dos temas centrais, surge sempre a idéia de que a crise econômica internacional provou que as mudanças necessárias, tanto à regulamentação do mercado financeiro quanto à recuperação da confiança no sistema capitalista como um todo, dependerá de uma mudança nos fóruns internacionais, que terão que incluir o G-20, grupo formado para uma reunião em Washington no início da crise e que representaria os principais países do mundo, entre desenvolvidos e emergentes.

Um ou outro país pode vir a ser substituído - a Espanha, por exemplo, participou em caráter especial e deveria ser parte permanente, enquanto a Argentina não teria razão para fazer parte de grupo tão seleto - mas a ampliação do G-8 para um grupo maior, entre 15 e 20 países, se impõe neste momento de crise interligada.

O tema "Definindo o mundo pós-crise" será explorado em seis caminhos:

- Estabilidade e crescimento - Como promover a estabilidade no sistema financeiro e reviver o crescimento econômico global.

- Governança efetiva - Como assegurar a governança efetiva de longo prazo em termos globais, nacionais e regionais.

- Sustentabilidade e desenvolvimento - Como enfrentar o desafio do desenvolvimento sustentável.

- Valores e liderança - Definir os princípios dos valores e da liderança para o mundo pós-crise.

- A próxima onda - Como aproveitar a próxima onda de crescimento através da inovação, ciência e tecnologia.

- O impacto da indústria - Entender as implicações da crise no modelo de negócio industrial.

A propósito da esdrúxula decisão do ministro da Justiça, Tarso Genro, de conceder refúgio político ao ex-terrorista italiano Cesare Battisti, o procurador regional da República aposentado e advogado criminal Cosmo Ferreira lembra que nem mesmo a paternidade de um filho brasileiro, ao contrário do que sugere minha coluna de ontem, impede a extradição do estrangeiro (artigo 77, da lei 6.815, de 19 de agosto de 1980 - Estatuto dos Estrangeiros), mas, sim, a sua expulsão (artigo 75, inciso II, alínea b).

Buscar respaldo na negativa de extradição de Salvatore Cacciola pela Itália, para endossar a decisão do Tarso Genro, "é má fé ou burrice", diz ele, pois os Estados, regra geral, não extraditam seus nacionais.

A decisão de dar refúgio a Cesare Battisti implica afirmar que o Estado democrático italiano persegue seus nacionais "por suas opiniões políticas" e, ainda, que Battisti teria sofrido uma condenação injusta motivada por suas convicções políticas.

Não corresponde à "soberania brasileira" avaliar decisões do Poder Judiciário de um país democrático.

A medida apenas explicita a distorção dos critérios do governo Lula, que considera que a Venezuela tem democracia demais e a Itália, democracia de menos.

Bancos estatais seguram o crédito

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Qualidade do endividamento da pessoa física piora, "spread" sobe ainda mais e bancos privados batem em retirada

O AUMENTO dos recursos emprestados à praça em dezembro foi quase todo devido à atuação dos bancos estatais. O custo de captação de dinheiro pelos bancos, na média, foi menor do que antes da explosão da crise, em agosto, mas os juros continuam a subir. Entre as pessoas físicas, aumentou o endividamento em linhas de crédito de custo catastrófico, como é o caso do cheque especial e o da rolagem de dívidas no cartão de crédito.

É o que se depreende dos dados divulgados ontem pelo Banco Central sobre as operações de crédito do setor financeiro. O panorama do crédito em dezembro, em quase toda parte, é ruim, embora a atuação dos bancos públicos possa não ser tão arriscada e/ou danosa quanto os mercadistas mais afoitos apregoam.

O estoque de crédito para as pessoas jurídicas, o total de dinheiro emprestado e ainda por pagar, cresceu pouco em dezembro. Foi o menor incremento do ano, desconsiderados os habitualmente mais fracos janeiro e fevereiro. E cerca de 77,5% do incremento do estoque de novembro para dezembro caiu na conta do setor financeiro público. Na média do ano "pré-crise", até setembro, o aumento médio mensal do estoque de crédito na conta do setor público era de 33,5%. O setor financeiro privado se retraiu demais.

A taxa média de juros para as pessoas físicas caiu de 58,2% ao ano para 58%. Pífio. Mas o "spread" cresceu. Desde agosto, os bancos pagam 1,6 ponto percentual a menos pelo dinheiro que emprestam à pessoa física. Mas a taxa que cobram subiu 5,9 pontos percentuais. Como os impostos não aumentaram e como o compulsório diminuiu, os bancos estão antecipando enorme inadimplência, que é a justificativa restante para o aumento do "spread". A ver.

O total de novos empréstimos concedidos às pessoas físicas cresceu R$ 3,8 bilhões -mas havia caído R$ 5,8 bilhões em outubro e novembro. A parcela de novos empréstimos nas linhas de cheque especial e cartão de crédito subiu para 68% do total de novas concessões de financiamentos -era de 62% em agosto. A fatia dos financiamentos para veículos caiu de 8,1% em agosto para 5,9% em dezembro. Caiu bem a qualidade do endividamento, pois.

A inadimplência subiu de fato entre pessoas físicas e, dadas as notícias sobre demissões, devem crescer mais. Mas entre as pessoas jurídicas tal indicador continua bem comportado. De certo modo, isso deveria atenuar, ao menos por ora, os temores quanto à atuação dos bancos públicos. A reação estereotipada diante da substituição do crédito dos bancos privados pelo oferecido pelos estatais em geral limita-se a observar que, sob pressão do governo, estatais podem fazer empréstimos ruins e que a conta acabe no Tesouro, em suma, dos contribuintes. Porém um exagero contracionista dos bancos privados pode provocar também danos generalizados.

O problema aí é dosar o contrapeso estatal. De resto, o BC pode checar a qualidade do crédito dos estatais. Enfim, não há como evitar a queda do crescimento; mas não se pode deixar a inércia do medo carregar o país para um resultado do PIB ruim demais. Saber a dose certa é que é dose. Mas deixar tudo na mão do mercado pode ser tão ruim quanto confiar no governo.

Medidas anticíclicas

Antonio Corrêa de Lacerda
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O desempenho da economia brasileira deste e dos próximos anos, com um cenário internacional adverso, dependerá cada vez mais do papel das políticas econômicas domésticas. Reorientar o foco das políticas econômicas para combater os efeitos da crise deve ser a prioridade. O Produto Interno Bruto (PIB) global não deverá crescer este ano. No entanto, os países em desenvolvimento, em especial as grandes economias, poderão fomentar o mercado doméstico como fator de estímulo do seu crescimento.

Para o Brasil, especialmente, o fato de a exportação representar um baixo coeficiente de exportações em proporção do produto, relativamente a outros países em desenvolvimento, representa uma vantagem num cenário de contração de quantidades e preços no mercado global. No entanto, aproveitar o potencial do mercado doméstico como fator de compensação da contração da demanda internacional requer uma mudança de foco das políticas macroeconômicas.

É preciso rever os objetivos e as prioridades da política econômica, que na crise tem de ser usada para reverter os impactos sobre produção, investimentos, renda e emprego.

O Comitê de Política Monetária (Copom) “surpreendeu” a opinião pública, na semana passada, ao cortar de uma só vez em um ponto porcentual a taxa básica de juros (Selic), que agora está em 12,75%. Embora positiva para a economia, foi uma medida tardia. Na verdade, todos os que acompanham a realidade da economia brasileira sabiam que houve uma extraordinária reversão da atividade econômica a partir de outubro do ano passado.

O corte de um ponto porcentual deve ser encarado apenas como o início de um processo que deve rápida e substancialmente diminuir a taxa real de juros no Brasil, ainda excessivamente elevada para padrões internacionais. Nesse ponto, seria muito oportuna a realização de uma reunião extraordinária do Copom já no mês de fevereiro, antecipando a reunião ordinária prevista para março. A agilidade do aprofundamento dos efeitos da crise exige um monitoramento mais preciso e rápido pelas autoridades monetárias e a medida seria mais do que justificada.

Para além da questão dos juros básicos, há ainda muito por se fazer na redução dos spreads bancários, na expansão do crédito e financiamento e na ampliação e agilização dos investimentos públicos. Também é preciso aprimorar os instrumentos previstos no bojo da Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP), uma boa iniciativa lançada há cerca de um ano. Como o cenário econômico mudou muito de lá para cá, seria oportuno um aprofundamento das questões de competitividade sistêmica (tributação, financiamento, logística, burocracia, etc.) para estimular as atividades geradoras de valor agregado local. O objetivo deve ser o de preservar ao máximo o mercado doméstico, com estímulos ao emprego, à renda, ao financiamento e ao crédito.

O governo federal fez bem em garantir um aporte de R$ 100 bilhões para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A despeito de algumas críticas quanto ao custo fiscal da operação, a medida foi correta. É relativamente fácil calcular o custo da operação com base em indicadores correntes. O desafio é mensurar o custo representado pela carência de recursos para crédito e financiamento. Isso causaria a postergação e mesmo o cancelamento de projetos de investimentos, afetando o nível da produção e, portanto, o efeito sobre o quadro fiscal seria danoso, pela queda da arrecadação.

O mais sensato, portanto, é mesmo utilizar estímulos tributários e fiscais para fomentar a atividade econômica mesmo que isso represente uma “perda” de curto prazo para a arrecadação. O fundamental na definição das políticas macroeconômicas, especialmente em face do cenário de crise, é estabelecer prioridades e a principal delas é fazer com que o quadro recessivo da economia brasileira do quarto trimestre do ano passado e do primeiro deste ano seja revertido e transformado em desempenho positivo para garantir algum crescimento econômico ao longo de 2009.

*Antonio Corrêa de Lacerda, professor doutor da PUC-SP, doutor em economia pela Unicamp, economista-chefe da Siemens, é coautor, entre outros livros, de Economia Brasileira (Saraiva)

Para economistas, decisão é um retrocesso

Sergio Lamucci , de São Paulo
DEU EM VALOR ECONÔMICO


A decisão do governo de exigir licença prévia para a importação foi duramente criticada por economistas como Arminio Fraga e Luiz Carlos Mendonça de Barros. Além de ser vista como um retrocesso, por concentrar a autorização nas mãos de burocratas, a avaliação é de que a medida atrapalha o funcionamento de uma economia que hoje tem uma parcela significativa de componentes importados, nas mais diversas cadeias produtivas. As próprias vendas externas podem ser prejudicadas, já que muitas companhias exportadoras importam muito. Mas há quem veja a decisão com bons olhos, como Mariano Laplane, da Unicamp, para quem uma crise como a atual pode requerer medidas emergenciais como essa.

Ex-presidente do Banco Central e sócio da Gávea Investimentos, Arminio diz que a decisão é "um retrocesso, filhote de uma visão mercantilista ultrapassada do que realmente conduz a um maior bem estar e progresso". Para ele, a "licença prévia cria burocracia, reabre um balcão desnecessário e prejudica as exportações". "A competitividade da nossa economia só aumentará com reformas que aumentem a eficiência e reduzam o custo Brasil."

Ex-presidente do BNDES, Mendonça de Barros considera a exigência prejudicial para uma economia que, nos últimos anos, passou a contar com uma participação expressiva das importações nas cadeias produtivas. Um entrave às compras externas dificulta a produção no país. "As cadeias se organizaram com um componente maior de importação, e agora isso vai depender de um burocrata."

Ele projeta um superávit comercial de US$ 8 bilhões neste ano, bem abaixo dos US$ 24,7 bilhões de 2008, já que as exportações caem mais rápido que as importações. "Ainda assim, é um resultado razoável", diz Mendonça de Barros, que não vê um cenário de catástrofe para as contas externas. O saldo comercial vai encolher, mas as remessas de lucros e dividendos também devem diminuir, lembra ele, ressaltando que o ajuste das importações já está em curso devido à forte desaceleração da economia. O câmbio desvalorizado também ajuda nesse processo.

Arminio aponta também outro problema: a possibilidade de que o Brasil sofra retaliações comerciais por causa da decisão. "Do ponto de vista global esse risco sempre existe." Para ele, "o Brasil é um país relevante no debate global e neste momento não deveria contribuir para uma grave ameaça que seria uma onda protecionista. A Grande Depressão é prova disso". Mendonça de Barros também se preocupa com uma eventual uma escalada global nessa direção, também lembrando que a crise dos anos 30 se agravou com a eclosão de medidas protecionistas.

O economista José Márcio Camargo, da Opus Gestão de Recursos, é outro que vê o risco de que o Brasil sofra retaliações comerciais. Ele alerta para o fato de que uma restrição às compras externas pode fazer com que o país "importe" menos deflação do resto do mundo, uma das forças que têm mantido a inflação sob controle e abriu espaço para o BC cortar os juros.

Já Laplane acredita que a medida pode ser útil num quadro de crise. Diretor do Instituto de Economia da Unicamp, ele diz que a exigência de licença prévia pode ajudar a monitorar melhor o fluxo de importações. "No atual contexto, o país pode ser vítima de vários tipos de manobra, como dumping e manipulação de preços", afirma Laplane. "É possível adotar medidas antidumping e salvaguardas para combater esses problemas, mas é algo que demora e que requer informações precisas do que está sendo importado." Para ele, é precipitado dizer que as exportações podem ser prejudicadas pela exigência. "A simples implementação do controle não quer dizer que isso vai se concretizar. É uma possibilidade que pode ser evitada."

Para o consultor Edgard Pereira, da Edgard Pereira & Associados (Edap), o governo agiu de modo preventivo, provavelmente por considerar que a deterioração do saldo comercial é mais rápida e intensa do que a esperada, o que poderia causar uma pressão adicional de desvalorização no câmbio. Mas ele não gostou do instrumento utilizado. "É uma medida ineficaz, custosa e que gera insegurança." Para Pereira, se é realmente necessário restringir as compras externas, o melhor é adotar um mecanismo impessoal, como leilões de cotas de importação.

Um pacote na calada da noite

Cristiano Romero
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Trapalhada ou não, a decisão do governo de levantar barreiras não-tarifárias para dificultar até 60% das importações revela o grau de desespero que já começa a tomar conta da equipe econômica. As decisões parecem tomadas de sobressalto, revelando, além de excesso de aflição, problemas na administração dos riscos trazidos pela crise. As contas externas vêm se deteriorando há um ano, os números da balança comercial entraram em terreno negativo antes do esperado, mas o Brasil está longe de viver uma situação de risco que lembre as turbulências do passado nessa área.

"Não estamos diante da mesma família de vulnerabilidades do passado. Temos câmbio flutuante, que nos dá muito mais flexibilidade, um bom montante de reservas cambiais (US$ 200 bilhões) e um sistema financeiro bem saudável. Portanto, não é um evento que deva trazer lembranças como as moratórias, as grandes crises", atesta o ex-presidente do Banco Central (BC) Armínio Fraga, hoje dono da Gávea Investimentos.

O ambiente, claro, azedou. Os preços das commodities caíram pela metade nos últimos seis meses, prejudicando justamente os setores mais robustos das exportações brasileiras nos últimos oito anos. O fluxo de crédito externo diminuiu e, durante um período, se mostrou arisco a ponto de não financiar as exportações, o que também é anormal. Ainda assim, não há, na avaliação de especialistas, motivo para pânico.

O professor Antônio Corrêa de Lacerda, da PUC de São Paulo, um perito em comércio exterior, sustenta que a situação das contas externas em 2009 é administrável. O investimento estrangeiro direto, que em 2008 bateu recorde histórico (US$ 45 bilhões), deve recuar, mas para um patamar ainda confortável - ele estima US$ 25 bilhões, um pouco abaixo da estimativa feita pelo BC, de US$ 30 bilhões. Esses recursos seriam suficientes para financiar o déficit em conta corrente no ano.

"O Brasil tem condições de se financiar razoavelmente em 2009. O déficit em conta corrente não deverá ser muito maior que o de 2008 (US$ 28,3 bilhões). Pode até cair", diz Corrêa. De fato, com a desvalorização do real frente ao dólar, os gastos de brasileiros com viagens ao exterior devem diminuir. Além disso, dificilmente as multinacionais remeterão lucros e dividendos ao exterior num montante parecido com o de 2008 (US$ 33,8 bilhões). Em primeiro lugar, porque, com a desaceleração da economia, não produzirão os resultados positivos dos últimos dois anos. Muitas empresas anteciparam as remessas nos primeiros meses da crise. Com o câmbio médio mais elevado, as remessas em dólares encolherão.

"O Brasil preservou o nível de reservas, ao contrário da Índia, da Rússia e da Coréia do Sul. Vai poder usar uma parte disso para financiar as empresas, um destino nobre, eu diria, neste momento de crise de liquidez. Além disso, o Brasil tem aquele "cheque especial" com o Federal Reserve (o BC dos Estados Unidos) de US$ 30 bilhões. Pode ainda, se necessário, recorrer ao Fundo Monetário Internacional", observa Corrêa, que acredita no retorno, daqui a alguns meses, dos investimentos estrangeiros em portfólio e em papéis de empresas brasileiras.

"Não há qualquer motivo para desespero. A medida do governo de controle da importação foi atabalhoada porque toda medida genérica é um tiro no pé. Pode prejudicar as próprias exportações. Muitos exportadores são grandes importadores. Um exemplo é a Embraer", lembra o professor.

Com a crise, há uma onda de protecionismo no mundo, paralela à adoção agressiva de estímulos às exportações em países como a China. Corrêa sugere que o governo readeque a política industrial lançada no ano passado às necessidades criadas pela crise; aprimore os instrumentos antidumping; faça uma revisão tarifária, mas dentro dos limites acordados na Organização Mundial do Comércio e nos acordos comerciais assinados pelo país; desonere efetivamente as exportações; e promova uma substituição competitiva de importações, onde isso for possível, aproveitando-se de vantagens competitivas.

"Não se trata de tomar uma medida na calada da noite, sem transparência e critério", ressalva o professor da PUC-SP. "Não adianta, por exemplo, querer proteger o setor de semicondutores porque não há indústria local. Isso é bobagem, como também o é impedir a entrada de máquinas e equipamentos que não são produzidos aqui. Isso aumenta o custo de produção das empresas e tira competitividade."

O muro erigido pelo governo contra as importações foi justamente uma medida adotada às escondidas, sem divulgação, denunciada pelo setor privado. Lembra os pacotes dos anos 80 e 90 que o presidente Lula diz abominar. A iniciativa, diz a economista Monica Baumgarten de Bolle, da Galanto Consultoria, não contribui "para visões mais benignas" quanto à evolução do quadro externo.

"Por um lado, aumentam as suspeitas de que o governo esteja enxergando um panorama ainda pior para o setor externo, apesar das justificativas de que a medida foi tomada para promover uma "adequação estatística com os dados da Receita Federal". Por outro, a imposição de barreiras não-tarifárias a essas alturas pode prejudicar a percepção externa do país, comprometendo os fluxos de recursos com os quais alguns parecem contar para financiar o crescente rombo nas contas externas. O resultado pode ser uma trajetória de câmbio ainda mais complicada para o BC", alerta Monica em seu blog (www.galanto.com.br/blogmonica/blog.php).

A economista não está entre os mais otimistas quanto à possibilidade de o Brasil ainda gerar, neste ano, um saldo positivo na balança comercial de US$ 15 bilhões, como muitos analistas estão prevendo. Ela explica que a queda nos preços das commodities pode ainda não estar refletida nos dados oficiais, dada a longa duração dos contratos. Ademais, as perspectivas para o comércio mundial e a demanda externa são "assustadoras". Países cujas economias são lideradas pelas exportações, como China e Coréia, estão registrando quedas significativas nas vendas externas.

Cristiano Romero é repórter especial e escreve às quartas-feiras.

O anacronismo

Miriam Leitão
DEU EM O GLOBO


A intempestiva decisão do Ministério do Desenvolvimento, de recriar barreira à importação, mesmo de curta duração, é mais uma insensatez do governo Lula. Na segunda-feira, simplesmente o Siscomex saiu do ar e, quando voltou, exigia licença de importação. Em minutos, o Brasil recuou décadas no tempo. Ontem, empresários correram a Brasília e o governo tentou dourar a pílula.

O ministro interino do sub-Desenvolvimento, Ivan Ramalho, disse que não é a licença prévia como se pensou, mas a licença automática que demoraria 10 dias. Difícil de acreditar por vários motivos.

O Brasil já foi assim na época em que era fechado; no tempo das diligências. Um burocrata decidia criar uma barreira à importação e ela era criada. Na sexta-feira passada, uma nota do Siscomex havia avisado, para a incredulidade de muitos, que seria adotada de novo a Licença de Importação. O governo afirma que é só para fazer um "acompanhamento estatístico" das importações. Ora, só? Então o Siscomex não tem estatística do que entra e do que sai, do que é registrado no sistema? O que é o Siscomex, então? Um sistema sem máquina de calcular, um computador sem memória?

Ontem de tarde, depois de uma série de reuniões em Brasília, o ministro interino do sub-Desenvolvimento, Ivan Ramalho, disse que essa licença não é barreira, porque será só de 10 dias. Ele insiste que o governo quer apenas saber o que está importando. Essa é a desculpa mais esfarrapada que eu já vi.

O presidente da Anfavea, Jackson Schneider, após uma reunião com o ministro Guido Mantega, em Brasília, disse esperar que seja mesmo provisória.

- Era só o que faltava, neste momento, ter mais uma dificuldade de produção - disse ele. Mesmo com o ministro interino do sub-Desenvolvimento tentando dourar a pílula, mesmo que o ministro titular, quando voltar da Argélia, revogue a medida, o que aconteceu nas últimas horas de confusão já invalida anos de esforço de se criar a imagem do Brasil como um país com estabilidade de regras.

É o DNA protecionista do governo Lula aparecendo. Sempre esteve latente, mas como eram tempos de altos preços de commodities e superávits fortes, ele não aparecia. Quando viu que neste mês de janeiro está havendo déficit na balança comercial, o protecionismo saiu do armário. José Roberto Mendonça de Barros, que já foi da Câmara de Comércio Exterior e é especialista no assunto, acha que essa medida não tem sequer um lado bom.

- Analisada por todos os ângulos, não sobra nada de bom. É um retrocesso, é de enorme amplitude que pega quase tudo, e esse negócio caiu do nada. Se era só para fazer controle estatístico, é uma bomba atômica para matar um tico-tico. Se é resposta à Argentina, que adotou medida semelhante, por que a barreira foi para todos? Se é preocupação com déficit comercial, é bom lembrar que os problemas na balança comercial têm a ver com a crise internacional. O câmbio está favorável à exportação. Quando o dólar estava a R$1,60 ou R$1,80, o cálculo mostrava que se chegasse a R$2,10 estaria num ponto de equilíbrio para o exportador, ele está em R$2,30. Ninguém estava pedindo esse tipo de barreira, isso pode criar problemas nos órgãos internacionais de comércio. Do ponto de vista comercial é doido, do ponto de vista econômico é ridículo - conta José Roberto.

O sinal que passa uma medida que leva empresários em revoada voando aflitos a Brasília é o de que voltou a era em que burocratas tinham o direito de tomar decisões intempestivas sem qualquer motivo aparente, sem discussão com a sociedade, sem transparência, sem análise das consequências.

O curioso é que os primeiros telefonemas que recebemos no blog foram de exportadores. Antigamente, importador é que reclamava de barreira. De lá para cá, nosso sistema produtivo se sofisticou, os exportadores importam para exportar; nossos fornecedores do mercado interno importam para produzir.

- Hoje não há mais essa idéia de conflito entre produto para o mercado interno e produto para exportação. Acho que só o MST acredita nisso. Tirando feijão e mandioca, tudo produzido aqui pode ser para o mercado interno e externo - diz José Roberto.

Nas conversas de ontem com empresários, um deles contou à coluna que importa linho, fibra e fio processado. Os dois produtos já têm exigência de licença, porque no setor têxtil o comércio sempre foi controlado. A fibra tem que passar pelo Ministério da Agricultura, num processo que leva 15 dias. Ele teme que agora demore ainda mais.

O vice-presidente da AEB, José Augusto de Castro, acha que a medida é um recuo no tempo e que ela não foi originada no MDIC.

- É uma volta aos anos 70 e 80. O pedido tem que ir a Brasília, e o Ministério do Desenvolvimento não tem muita gente para cuidar disso. Além disso, a medida foi tomada quando o titular da pasta estava na Argélia. Reforça a idéia de que a decisão não foi do Ministério do Desenvolvimento, e sim da Fazenda - conta José Augusto de Castro.

Além de ser um anacronismo, a licença é um risco de outra natureza. Ela dá ao burocrata o poder de barrar ou liberar produtos, dar vantagens para um grupo, prejudicar o concorrente desse grupo, apenas manipulando o tempo de concessão da licença. Em uma palavra: essa burocracia alimenta a corrupção. Foi assim no passado, o Brasil já viu esse filme. Foi desmontando as barreiras burocráticas, não tarifárias à importação, que o Brasil começou a se modernizar.

Crise faz governo bloquear R$37,2 bi do Orçamento

Regina Alvarez
DEU EM O GLOBO

Turismo pode perder 95%; Esporte, 94%; e Meio Ambiente, 79%

Diante da crise, o governo Lula anunciou o bloqueio de R$37,2 bilhões no Orçamento deste ano - 25% das despesas previstas. O chamado "corte preventivo" reduz em R$14,7 bilhões, ou 30,5%, os gastos com investimentos, mas o governo disse que o Programa de Aceleração do Crescimento está preservado. As despesas com custeio da máquina foram cortadas em 22,5%. Os ministérios mais atingidos são Turismo (corte de 95,6%), Esporte (94,5%) e Meio Ambiente (79%). O bloqueio, o maior dos últimos anos, pode ser revisto em março, quando se espera uma avaliação mais precisa da arrecadação. O presidente Lula disse que o Orçamento será olhado com responsabilidade: "Vamos gastar apenas aquilo que podemos gastar. Estão mantidas as obras importantes." Para o ministro Paulo Bernardo, a crise trará crescimento e receita menores. Em 2008, os cortes foram de R$19,4 bilhões.

Crise reduz Orçamento em 25%

Recursos para investimento tiveram perda de 30,5% e foram os mais atingidos

Diante da perspectiva concreta de queda na arrecadação de impostos e de um crescimento econômico menor do que o previsto, o governo promoveu ontem um corte preventivo de 25% nas despesas deste ano. O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, anunciou o bloqueio de R$37,2 bilhões das despesas de custeio e investimentos do Orçamento de 2009. Os gastos com investimentos foram os mais atingidos, sendo reduzidos em R$14,7 bilhões, ou 30,5%: passaram de R$48,2 bilhões para R$33,5 bilhões, mas o governo afirma que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) está preservado. As despesas com o custeio da máquina e atividades tiveram uma redução de 22,5%, passando de R$100,2 bilhões para R$77,6 bilhões. De um total de R$148,4 bilhões com custeio e investimentos, o limite de gastos autorizados foi reduzido para R$111,2 bilhões até o final de março.

Ainda que tenha caráter preventivo e, portanto, passível de modificação, o bloqueio é o maior já anunciado nos últimos anos. A medida será revista em março, quando o governo terá uma avaliação mais precisa do comportamento da arrecadação e editará um decreto de programação financeira com os cortes definitivos para o ano, incluindo os três poderes. Em 2008, os cortes no Orçamento chegaram a R$19,4 bilhões.

Segundo Bernardo, o governo ainda não conseguiu estimar com segurança o impacto da crise financeira internacional na arrecadação, embora já tenha certeza de que haverá uma queda em relação à previsão do Congresso:

- A crise vai significar crescimento menor e a projeção é de uma receita menor. Não temos como fazer previsões de receitas no momento. Vamos tentar arrumar o Orçamento para atender as prioridades e o novo quadro de crise.

Mantendo o discurso de que a crise não atrapalhará os planos do governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que o bloqueio de R$37,2 bilhões não deverá interferir nos investimentos e que está mantida a previsão das "obras importantes". Em entrevista coletiva na porta do Hospital Sírio-Libanês, onde visitou o vice-presidente José Alencar, Lula disse que o governo "tratará o Orçamento com responsabilidade".

- Vamos gastar apenas aquilo que podemos gastar. O que nós preservamos são os investimentos públicos brasileiros. Nós vamos fazer investimentos. Estão mantidas todas as obras importantes - disse o presidente, ao lado da chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff.

Lula: investimento será preservado

Na contramão do que anunciara Paulo Bernardo pela manhã, Lula disse que todos os investimentos estão preservados:

- Obviamente que vamos tentar cortar aquilo que a gente puder cortar em custeio, mas não em investimento.

Paulo Bernardo sinalizou que o corte definitivo pode ser menor, já que há uma orientação de Lula de recompor o orçamento de algumas áreas atingidas durante a negociação da lei orçamentária no Congresso. Nessa situação estão os ministérios da Saúde, Educação, Ciência e Tecnologia e o PAC. No total, o Congresso fez cortes de R$5 bilhões nessas áreas.

- Pretendemos recompor pelo menos em parte essas dotações com o cancelamento de emendas coletivas. O Congresso fez certos cortes que são inviáveis - disse, citando o exemplo dos recursos para as bolsas de estudo da Capes, fundação mantida pelo Ministério da Educação.

Os ministérios mais atingidos pelo bloqueio são o do Turismo, do Esporte e do Meio Ambiente. No Turismo, a dotação aprovada pelo Congresso de R$2,98 bilhões foi reduzida em 95,6%, caindo para R$129 milhões. No Esporte, o limite de gastos caiu de R$1,37 bilhão para R$75 milhões, redução de 94,5%.

No ministério de Carlos Minc, do Meio Ambiente, o bloqueio atingiu 79% do orçamento - o limite para gastos foi de R$892 milhões para R$187 milhões. Já no Ministério da Agricultura, de onde Reinhold Stephanes trava uma disputa pública com Minc por causa de divergências na área ambiental, o corte foi menor, de 61,7%, caindo de R$2,22 bilhões para R$849 milhões.

Mesmo áreas consideradas prioritárias foram atingidas, embora em percentuais bem menores. No Ministério da Educação, as despesas de custeio autorizadas passaram de R$11,196 bilhões para R$10,330 bilhões (- 7,7%). Na Saúde, o limite de gastos de custeio caiu de R$44,7 bilhões para R$42, 7 bilhões (- 4,5%).

Em relação aos concursos programados para o ano e reajustes já anunciados, Bernardo disse que os cronogramas estão mantidos, mas em março poderá haver alteração:

- Não há decisão sobre concursos e reajustes salariais até lá.

COLABOROU: Tatiana Farah