quinta-feira, 23 de abril de 2009

PENSAMENTO DO DIA

“Há uma crise, no mundo e no Brasil, e todos podemos senti-la. Uma crise que solapa a esperança, que chega ao fundo dos corações, gerando frustrações, descrença e cinismo. Frente aos desafios destes novos tempos, seu compromisso de luta por uma sociedade mais justa e mais humana, o X Congresso do PCB oferece à sociedade brasileira um novo instrumento de luta, o Partido Popular Socialista - PPS.
Um Partido que, desde sua formação, é plural, aberto à participação de todos os que acreditam que é possível, a todos os seres humanos, viverem iguais e livres. Um Partido que, num mundo de mudanças, assume o compromisso central com a vida, entendendo-a como indissociável da natureza e da cultura. Um Partido, que quer contribuir para a construção de uma nova ética, em que o ser humano, sem nenhuma discriminação, seja protagonista e beneficiário das transformações sociais.”

(do Manifesto de Fundação do PPS, S. Paulo, em 26/1/1992)

Reconciliação difícil

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

Os protestos de deputados, da própria tribuna da Câmara, contra o anúncio da limitação do uso de passagens aéreas exclusivamente ao próprio parlamentar, ou a um assessor devidamente autorizado pela 3aSecretaria, depois de justificada a necessidade de sua presença, mostra que estamos longe de reconciliar nossos ilustres representantes com a opinião pública, que era o principal objetivo do presidente da Câmara, Michel Temer. Já é sintomático que ele explicite com tanta clareza, de maneira cândida, o objetivo da medida, sem admitir que as mudanças nas regras do jogo vão ao encontro do bom senso, e mesmo da legalidade.

Também o Senado aprovou em plenário a mudança das regras, com os mesmo critérios da Câmara. É natural que deputados e senadores, tendo que estar em contato com suas bases eleitorais, tenham passagens para ir aos seus estados uma vez por semana.

É um engano dizer que não houve ilegalidade no mau uso das passagens, pois não havia proibição alguma para que os deputados e senadores utilizassem suas cotas pessoais para viagens de férias, e até mesmo ao exterior.

No período de janeiro de 2007 a outubro de 2008, conforme levantamento feito pelo site Congresso em Foco com base em registros fornecidos pelas companhias aéreas, nada menos que 261 deputados ou 51% do total de 513 usaram as passagens para viagens de lazer ao exterior, quase sempre com parentes.

Alegar, como fez o corregedor da Câmara, deputado ACM Neto, que a mídia está querendo “fechar o Congresso” com as seguidas denúncias, é um equívoco perigoso, que beira a má-fé.

O entendimento generalizado entre os especialistas segue a doutrina de Hely Lopes Meirelles, jurista brasileiro reconhecido como um dos principais estudiosos do Direito Administrativo, que definiu que a diferença entre as entidades pública e a privada é que, enquanto essa última pode fazer tudo o que a lei não proíbe, o ente público só pode fazer aquilo que é expressamente permitido pela lei.

Portanto, não há que se falar em “brechas na lei”, ou que não existe ilegalidade no uso das passagens no passado, como disse ontem Michel Temer, ele próprio um constitucionalista. Podese, sim, chegar a um acordo político para o entendimento de que não houve má-fé dos senhores congressistas, e começar de novo sob novas regras.

Mesmo assim, dificilmente haverá um consenso na opinião pública favorável aos deputados e senadores, que abusaram de suas prerrogativas em benefício próprio.

A má vontade da opinião pública para com suas excelências não permite espaço nem mesmo para medidas que seriam mais lógicas do ponto de vista de administração pública, como nivelar os salários dos congressistas aos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal e acabar com os penduricalhos inventados para dar a eles vencimentos sem impostos.

A primeira proposta embutia também manobra política de difícil execução, mas que seria imprescindível: aprovar em plenário a desvinculação dos salários de deputados estaduais e vereadores, pois se não for assim o efeito cascata seria um efeito colateral terrível nas contas dos estados e municípios.

Seria preciso também que a remuneração dos funcionários das duas Casas fosse desvinculada do pagamento dos deputados e senadores, para que esse efeito não se espalhasse pela burocracia legislativa, provocando mais gastos públicos.

A má vontade da opinião pública com seus representantes é tamanha que já existe até um alerta do site “Contas Abertas” sobre as milhagens dos senadores e deputados, fruto das viagens que fazem, mesmo se elas forem limitadas aos seus estados de origens.

Essas milhas são contabilizadas no nome do passageiro, e não de quem paga a passagem, seja o Congresso Nacional, ou uma empresa privada.

É uma maneira de as companhias de aviação incentivar as viagens sem dar chance aos órgãos públicos e empresas privadas de reduzirem seus custos utilizando as milhas para abater novos gastos.

Esse, no entanto, é um problema que ocorre de maneira generalizada e não teria sentido proibir deputados e senadores de se beneficiarem da milhagem, uma prática universal.

Se houvesse uma maneira de utilizar as milhagens para que a Câmara e o Senado economizem na emissão de passagens, seria favorável à adoção dessa medida, mas receio que nenhuma empresa privada tenha conseguido essa solução, embora muitas já tenham tentado.

Com as novas regras, e a disposição de colocar transparência na prestação de contas desses e de outros gastos, como a verba indenizatória (que pelo visto não vai acabar nunca) e os telefones celulares (cujo custo médio de R$ 6 mil reais por mês é absurdo e tem que ser limitado), superamos momentaneamente mais essa crise de credibilidade do Congresso, que agora terá que se dedicar a trabalhar arduamente para reconquistar a confiança dos cidadãos.

Não adianta esbravejar da tribuna que a democracia brasileira está em perigo com o desprestígio dos políticos, pois o que coloca mesmo em perigo são os abusos perpetrados, e a aposta, que já ficou clara na absolvição da maioria dos “mensaleiros”, de que os eleitores têm memória curta, ou votam por interesses pessoais, não importando o que o deputado ou senador tenha feito de errado.

Quando apostaram, e ganharam, no corporativismo para livrar a maioria dos acusados do mensalão, os políticos brasileiros estavam dando um tiro no próprio pé. E continuam agindo assim, numa marcha cega para o despenhadeiro.

Crime sem castigo

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A restrição da cota passagens aéreas pagas pela Câmara para uso exclusivo do parlamentar em atividades relativas ao mandato e exposição de todas as informações na internet é um passo na direção do bom caminho.

Mas, como diz a cantiga infantil, a estrada é longa, o caminho é deserto e o lobo mau ainda está por perto.

Melhor teria sido se na semana passada a Mesa tivesse adotado as medidas sugeridas pelo Ministério Público, o bom senso e a noção dos limites entre o público e o privado. Soaria mais confiável a boa intenção do presidente da Câmara, Michel Temer, de conduzir um processo de reconciliação do Legislativo com "a opinião pública e a opinião publicada", anunciada ontem.

Ainda assim, com todas as reservas que decisões ditas moralizadoras tomadas pelo Congresso devem ser recebidas, algo se mexeu.

Há, não obstante ínfimo, um avanço em relação a declarações de "resistência a pressões da imprensa", de imposição de "castigos" como a anulação de boas medidas a cada vez que não merecessem elogios no noticiário e, principalmente, no que tange ao presidente Michel Temer, houve mudança no tom.

Pode parecer pouco, mas o constrangimento é um bom sinal. Ocorre que bons sinais, principalmente quando isolados e meramente sinalizadores não fazem acontecer o que se impõe: o freio seguido da arrumação.

E para que se arrume o que está desarrumado ainda há léguas em quantidade amazônica a percorrer antes de se considerar satisfatório o trabalho.

O passivo é imenso. Na Câmara e do Senado. O próprio Temer aludiu em sua nota oficial de segunda-feira a deformações em outros benefícios. Nas passagens mesmo se fez o mínimo, e todas as outras denúncias, sem exceção, continuam em aberto.

Falou-se em auditoria da Fundação Getúlio Vargas, mas o assunto morreu. Queda-se arquivado, pelo visto, na gaveta onde dormem outros dois "estudos" para redução de gastos contratados à mesma FGV em 1995, pelo Senado, e em 2006, na Câmara. Que tal desengavetá-los?

À restrição nas passagens necessariamente terão de se seguir outras medidas. Para enfrentar de fato o problema, os presidentes da Câmara e do Senado vão precisar firmar novas alianças.


Premidos que são pela pressão da maioria silenciosa e transgressora, não conseguirão dar um passo adiante.

Isso não se faz com a proposta de aumento de salários. Muito menos engendrando formas de recompensar os parlamentares pela transparência exigida. Não se trata de uma troca, mas é assim que a coisa está sendo posta: moraliza-se de um lado, "em compensação" desmoraliza-se de outro.

É premiar quem transgrediu.

A transparência no uso do dinheiro do Orçamento destinado a sustentar o Parlamento é pré-requisito obrigatório e não moeda de escambo. Se os cortes resultarão em perdas, é este mesmo o espírito. Afinal, décadas de ganhos indevidos requerem algum tipo de punição. Assim a banda toca do lado de fora da Praça dos Três Poderes.

Um funcionário de empresa privada pego em tantos e tão flagrantes delitos seria, no mínimo, demitido. Por justa causa. Os deputados e senadores transgressores não podem ser processados por quebra de decoro, até por carência de julgadores abalizados.

Então, que ao menos arquem com algum ônus. Não lhes fará mal algum. Quem se sentir muito prejudicado financeiramente tem sempre a prerrogativa de mudar de atividade.

A parte mais difícil está por vir: a transposição dos obstáculos impostos pela própria corporação.

Sem a renovação das alianças internas, sem a alteração da correlação de forças de forma a abrir espaços aos melhores e relegar os piores ao terreno das insignificâncias, o Congresso não vence a mentalidade vigente expressa na contrariedade do líder do PTB, Jovair Arantes, ante a exigência de transparência: "É péssimo. Não gostaria de ser patrulhado. Não quero ser obrigado a colocar minhas coisas na internet."

Se um deputado chega à Câmara sem compreender a quem pertencem as referidas "coisas" postas à disposição de um agente público no curso de uma missão específica como o mandato eletivo, está no lugar errado ou não foi lá para fazer a coisa certa.

Esse tipo de raciocínio, diga-se, não vigora apenas no Congresso. Contamina todas as esferas de poder. Por exemplo: qual a diferença entre o PSOL financiar as viagens do delegado Protógenes Queiroz para a construção de uma possível candidatura e o presidente Lula patrocinar o périplo da ministra Dilma Rousseff pelo País para tentar construir um nome para se candidatar?

Na forma, apenas uma: o financiamento público da pré-campanha de Protógenes sai da Câmara e a verba de publicidade de Dilma sai do Palácio do Planalto.

Na essência, nenhuma, porque o dinheiro, grosso modo, tem origem no bolso da calça do homem e na bolsa da mulher que dão um duro danado para ganhar seus salários. Note-se: sem benefícios adicionais e religiosamente onerados com o desconto de impostos monumentais.

Lavação de roupa suja

Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - A crise do Congresso atravessou a rua ontem e estacionou no Supremo Tribunal Federal, a mais alta Corte do país.

O grande escândalo de Brasília nem foram as 1.885 viagens internacionais financiadas pela cota parlamentar em dois anos, como informou o site "Congresso em Foco", mas o surpreendente -e chocante- bate-boca entre o presidente do Supremo, Gilmar Mendes, e o ministro Joaquim Barbosa. Ao vivo, para todo o país assistir.

Era uma discussão técnica qualquer, os dois se desentenderam e Barbosa perdeu a compostura, dizendo coisas assim para Gilmar: "Vossa Excelência está destruindo a Justiça deste país e não tem condição alguma de me dar lição de moral. Faça como eu, vá às ruas"; "Não está nas ruas, não. Está na mídia, destruindo a credibilidade do Judiciário brasileiro"; "O sr. não está tratando com seus capangas de Mato Grosso, não!".

Enquanto Gilmar enfrentava os excessos do delegado Protógenes e se digladiava com o juiz De Sanctis e com o procurador da República de São Paulo Rodrigo De Grandis, era uma coisa. Quando a acusação parte de um colega de toga, tudo muda de patamar -e de figura.

Nós, os leigos, olhamos horrorizados a tudo isso, impotentes e com uma séria desconfiança: que as gravíssimas acusações de Joaquim Barbosa podem estar explodindo uma crise político-partidária no Judiciário. Gilmar, apelidado de "líder da oposição", trabalhou no Planalto com FHC e foi indicado por ele para o STF. Joaquim Barbosa, o primeiro negro do tribunal, foi uma das indicações de Lula.

A um ano e meio da eleição presidencial, os ânimos estão exaltados, e, sem falar na crise econômica, a crise ética do Legislativo se complementa com uma crise interna de bom tamanho no Judiciário. O que empurra tudo junto para o campo do equilíbrio institucional, com uma plateia de quase 200 milhões de aturdidos sem saber, afinal, o que está acontecendo neste país.

Uma descortesia do governo italiano

Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Após uma tempestade emocional, a discussão em torno do pedido de extradição, pelo governo italiano, de Cesare Battisti, militante, nos anos 70, do grupo de esquerda Proletários Armados para o Comunismo (PA), que espera julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), parece entrar no terreno da discussão racional. O parecer aprovado pela Comissão de Constituição da Ordem dos Advogados do Brasil, da lavra de José Afonso da Silva, é um sinal de que o maniqueísmo não monopolizou a discussão jurídica do caso.

É um fato político importante a OAB entrar nesse debate e da maneira como entrou: por meio de um parecer de um jurista respeitável, que ignorou o clima emocional que quase teve o poder de transformar um julgamento de um simples pedido de extradição num incidente diplomático.

Contra o "complexo de vira-lata" que tomou setores da sociedade brasileira, vexados com o fato de que o Brasil negava um pedido do Primeiro Mundo, o parecer da OAB considera que esse não apenas é um ato soberano do Brasil, mas um direito garantido inclusive pelo Tratado de Extradição assinado entre o Brasil e a Itália.

Afonso, em seu parecer, cita o artigo 3º, nº1, letra "e" do Tratado, que diz: "A extradição não será concedida: e) se o fato pelo qual é pedida for considerado, pela Parte requerida, crime político". E, mais adiante, a letra "f" do nº1, vai mais além, para garantir a integridade da pessoa cujo pedido de extradição é feito: "A extradição não será concedida: f) se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivos de opinião pública".

Isto é: o pedido de extradição, pelo Tratado, não apenas deve ser negado se o crime for político, mas se a pessoa a ser extraditada pode vir a sofrer represálias políticas na volta ao seu país.

Isso quer dizer que o fato de o Estado brasileiro negar a extradição de Battisti não deve causar espanto ao Estado italiano, já que as situações previstas no Tratado assinado por ambos podem ser configuradas no caso do ex-terrorista italiano.

A lei brasileira, por sua vez, não foge a esses dois incisos do Tratado, ao definir as condições em que o Estado brasileiro pode conceder o refúgio. Segundo a lei, será reconhecido como refugiado político todo o indivíduo que, "devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupos sociais ou opiniões políticas, encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país" (Lei 9.474, de 1997, artigo 1º, inciso I). Nos dois casos, portanto, se garante a condições de refugiado não apenas por razões políticas, mas por "fundados temores". As manifestações políticas do governo italiano, agressivas não apenas a Battisti mas ao próprio ministro da Justiça, Tarso Genro, que tem legalmente o poder de reconhecer a condição de refugiado, e ao governo brasileiro, mostra que não é fora de propósito temer pelo ex-militante do PAC, caso ele seja extraditado.

"Se ao cidadão foi reconhecida a condição de refugiado, o pedido de extradição se revela, no mínimo, como descortesia em face da soberania do Estado brasileiro, e, se o pedido antecedeu à concessão de refugiado, as regras de cortesia nas relações internacionais aconselhavam a desistência do pedido", diz o parecer. Ou seja: Afonso inverte a impressão geral, de que um governo caipira, que não entende nada de política internacional, falou "não" ao "civilizado" governo de Berlusconi. Quem cometeu a descortesia foi o Estado italiano; Genro é que estava no seu direito.

Tanto na lei italiana como na brasileira, a autoridade administrativa da extradição é o ministro da Justiça, segundo Afonso. A extradição, pela lei brasileira, não é concedida sem um pronunciamento do plenário do STF sobre sua legalidade e procedências, mas não é o tribunal que a concede, e sim o Executivo, desde que autorizado pelo Judiciário. Assim, a Justiça pode impedir que o Executivo faça uma extradição, mas não tem o poder de determinar que o Executivo não a faça. "Isto é assim também na Itália, onde a doutrina reconhece que a decisão judicial só é vinculativa se a entender que a extradição seria ilegal", diz o parecer.

Assim, segundo o jurista da OAB, a única forma de o STF passar por cima de uma decisão administrativa do ministro da Justiça é declarar a inconstitucionalidade da lei que dá ao governo a prerrogativa de ser a última palavra num processo de extradição. É por isso que a defesa de Battisti agregou um constitucionalista, Luiz Roberto Barroso. A defesa de Barroso será um reforço a uma jurisprudência que já existe, a do julgamento do pedido de extradição do padre Olivério Medina, ligado às Farc, pelo governo colombiano. Há dois anos, no julgamento deste caso, o plenário do STF considerou a lei de refúgio constitucional por nove votos a um. O atual presidente do STF, Gilmar Mendes, foi voto vencido. Não consta que a Colombia tenha cortado relações com o Brasil por causa disso.

No final das contas, o adiamento do julgamento do pedido da Itália acabou dando tempo para que o clima emocional se amainasse - e está na racionalidade a maior chance de sucesso da defesa de Battisti, afirma o seu defensor Luiz Eduardo Greenhalgh.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

Escalada dos gastos federais amplia riscos de descontrole da economia

Jarbas de Holanda
Jornalista

Reportagem da Folha de S. Paulo, de anteontem – “Lula gasta com pessoal o que poupou com juros” – é bem ilustrativa das preocupações, que a imprensa passa a destacar, com os efeitos macroeconômicos desestabilizadores dessa escalada, ainda no governo Lula e sobretudo no próximo, seja ele qual for. Trechos da reportagem (baseada em estudo do economista Alexandre Marins, da Consultoria Mosaico): “Entre abril de 2006 e fevereiro de 2009, os gastos anuais do governo central com juros caíram cerca de R$ 40 bilhões. No mesmo período, as despesas com pessoal subiram iguais R$ 40 bilhões, e as de custeio, R$ 26,7 bilhões. Já as despesas de capital – os investimentos propriamente ditos – aumentaram apenas R$ 14,7 bilhões”. “Ou seja, o aumento de gastos com funcionários e de custeio não foi produto de simples crescimento vegetativo e involuntário da máquina, mas, principalmente, do voluntarismo oficial”. Trecho de extensão da reportagem, em outra página: “Crescimento vegetativo dos salários explica apenas aumento de R$ 9 bilhões; o resto é produto de contratações e de reajuste aos servidores. Desde seu início, o governo Lula quase dobrou os gastos com a folha de pagamento do funcionalismo federal. O valor saiu de R$ 70 bilhões, no fim de 2002, para R$ 137 bilhões em fevereiro passado”.

Trechos de editorial do Globo, do dia 17, intitulado “Crise, um biombo”: “O que era, ‘marola’ virou ‘tempestade’ e o governo dá a entender que encontrou uma justificativa para abrir cada vez mais, os cofres públicos. O motivo declarado é a ‘crise’ mas o tamanho dos gastos é tal que o Palácio do Planalto não consegue disfarçar o sentido eleitoreiro de uma série de medidas anunciadas como ‘anticíclicas’. É Keynes nos palanques”. “Com a retirada da Petrobras do esforço fiscal para a acumulação do superávit primário – decisão acertada em hora inadequada – o Planalto conseguiu realizar o desejo de sua ala desenvolvimentista: reduzir a meta do superávit, de 3,8% para 2,5% e passou a ter disponíveis mais R$ 40,2 bilhões para gastar. São – ou seriam – recursos preciosos para investimentos na infraestrutura precária do país. O sentido eleitoreiro que passou a condicionar as ações oficiais não alimenta esperanças. Mesmo porque a proverbial incapacidade de o Planalto fazer o PAC andar certamente induzirá Lula a queimar esse dinheiro em boa parte no custeio. Um dado revelador: no primeiro trimestre, o governo conseguiu executar apenas 7,5% do programa de investimentos do ano”. “A crise é simples biombo para tentar encobrir uma enorme farra de gastança eleitoreira. Fica cada vez mais visível a herança maldita que Lula deixará para o próximo presidente”.

De artigo de 18 de abril do colunista do Globo, Merval Pereira – “ perigo da gastança”: O que o governo chama de política anticíclica a oposição diz que é gasto sem estratégia, com o simples objetivo de fazer a economia não entrar em recessão a curto prazo, esquecendo-se dos fundamentos permanentes do equilíbrio-fiscal. Por ter aumentado seu gasto corrente acima do crescimento do PIB, o governo teve que reduzir o superávit primário. Contou, para isso, com o espaço fiscal que ficou aberto com a redução dos juros, mas, ao contrário do que os governos dos EUA e de outros países está gastando mais no custeio da máquina pública do que em investimentos. E fazendo caridade com o chapéu alheio, como afirmam prefeitos e governadores de todos os matizes, pois a redução do IPI para automóveis e agora para a chamada linha branca retira de estados e municípios parte da arrecadação de impostos, que já está reduzida devido à crise econômica. E com isso provoca grandes pressões políticas por compensações financeiras”. “O governo está apostando que, quando passar a crise investimento externo vai voltar e o país atrairá novamente o capital produtivo. Mas o mais provável é que o arranjo financeiro mundial mude, não vai haver dinheiro para emergentes, a era de dinheiro farto não vai se repetir tão cedo”.

O “déficit zero” de 2005 – Ao invés da escalada dos gastos governamentais dos últimos três anos, acentuada mais recentemente com a “justificativa” de ações anticíclicas, cerca de quatro anos atrás, no começo de julho de 2005, o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci reagia a pressões populistas que se articulavam no governo promovendo – com um apoio, inicial, do presidente Lula, que em seguida foi retirado – o debate da proposta do “déficit nominal zero”, de autoria conjunta de sua equipe e do deputado e ex-ministro Delfim Netto. Objetivo básico da proposta: a troca das restrições monetárias por um forte controle fiscal, com uma queda dos gastos públicos que incluiria a desvinculação das receitas orçamentárias. Meses depois, após o bloqueio da iniciativa e às vésperas do afastamento do ministro da Fazenda (em face do escândalo da quebra de sigilo bancário do caseiro Francenildo), Delfim deu à imprensa as seguintes, e proféticas, declarações: “Honestamente, faço uma prece para que Palocci não abandone o cargo e para que continuemos nessa linha de aperfeiçoamento das contas públicas, que poderia ser bem melhor, mas que, sem ele, será muito pior. Temo que, qualquer que seja o substituto de Palocci, não terá a confiabilidade que ele tem no mercado. Teremos um enorme solavanco”.

Problemas: humanos

Carlos Alberto Sardenberg
DEU EM O GLOBO

Está todo mundo, aqui e lá fora, aproveitando para esculhambar os economistas. Sobram motivos ou pretextos.

A crise que começou no setor imobiliário dos EUA desenvolveu-se numa sequência de surpresas, sempre piorando.

Onde estavam os economistas que se apresentavam como operadores de uma ciência rigorosa? As críticas e zombarias, entretanto, servem pouco, pois, em geral, padecem do mesmo mal que afeta as análises de muitos economistas: justamente o de achar que os fatos econômicos são sempre previsíveis. Não são. E começamos por uma obviedade: crises não são previsíveis, porque, se o fossem, seriam evitadas.

É verdade que alguns economistas alertaram que algo ia mal na farra de crescimento do final dos anos 90 e início do século XXI. Mas isso é diferente, muito diferente de prever uma crise com tais e tais dimensões.

Isso não acontece, pela simples razão de que se trata de comportamento humano. Os agentes econômicos, grupo amplo que inclui desde o executivo do mundo financeiro até a dona de casa que toma decisões de compra no supermercado, agem pela razão e pelos sentimentos, com base em informações limitadas.

Juntando-se todas as ciências humanas, sem preconceitos, ou seja, utilizandose desde a psiquiatria de base darwiniana, passando pela psicanálise mais clássica, até as sociologias e políticas e, claro, a economia, chega-se hoje a uma boa compreensão do comportamento humano. Mas não o suficiente para prever o que cada um e todos coletivamente vão fazer ou deixar de fazer, com alguma exatidão.

As próprias ciências explicam essa impossibilidade pela capacidade dos seres humanos de pensar diferente, de inventar e criar e de agir num tumulto de emoções. Se não fosse assim, faríamos sempre a mesma música. Ou as mesmas operações financeiras.

Além disso, no caso da economia e da vida política, há sempre pessoas intervindo nos processos. Um exemplo apenas: a crise, que já aparecera em seus contornos básicos, tornouse violenta e quase terminal a partir da falência do Lehman Brothers, em setembro de 2008. Isso desfechou uma absoluta crise de confiança — fator psicológico, a propósito — que paralisou os negócios.

Ora, a falência poderia ter sido evitada.

Se os banqueiros e as autoridades americanas do momento tivessem sido mais inteligentes e menos assustados, teriam encontrado um meio de evitar a desastrosa falência. Às vezes, nessas situações — três dias de intensas negociações para evitar um colapso — uma boa cabeça, uma alma sábia e tranquila, faz a diferença.

Como teria sido se o Lehman não tivesse quebrado? Considerem agora os famosos cenários feitos pelos economistas. As previsões variam muito porque são construídas a partir de hipóteses amplas e variadas.

Para o mundo, por exemplo, uma variável-chave é o comportamento do consumidor americano, responsável por 70% do PIB dos EUA, que representa 25% da economia mundial. Portanto, a decisão do consumidor americano de ir ou não ao shopping, de gastar ou poupar, afeta 17,5% da economia global.

E então? Continuará retraído, poupando para pagar suas dívidas, ou cairá na tentação dos preços baixos? Finalmente, é preciso considerar a ação dos governos. Um bom plano de gastos pode fracassar por má administração e não gerar efeito algum no crescimento.

Então, a economia e as ciências humanas não servem para nada? É o que dizem cientistas da área das exatas e biológicas, que só estudam os seres humanos pelo lado da biologia/genética.

Enganam-se também. A ciência econômica tem vários casos de sucesso, muitos acontecidos aqui no Brasil. Exemplo: o controle da inflação com o regime de metas.

Isso foi uma invenção teórica, que começou a ser aplicada (testada?) por bancos centrais e hoje é um modelo aplicado em quase todo o mundo.

Querem outro? A compreensão de como as contas públicas afetam a economia, para o bem, quando equilibradas e financiáveis, para o mal, quando desequilibradas por muito tempo. Lembrem-se: Obama anunciou um déficit enorme para o momento, mas jurou que reequilibra as contas antes do final de seu mandato.

E outro: a demonstração de como o comércio mundial aberto promove o crescimento. E logo estaremos tirando lições desta crise.

FMI revê projeções e espera que o Brasil sofra uma contração de 1,3%

Ricardo Balthazar, de Washington
DEU NO VALOR ECONÔMICO

O Fundo Monetário Internacional reviu de maneira drástica suas projeções para a economia global e previu ontem que o Brasil sofrerá uma contração de 1,3% neste ano, como resultado do prolongamento da crise no sistema financeiro e da recessão em que o mundo mergulhou no fim do ano passado.

As previsões do Fundo para o Brasil são bem mais pessimistas do que as feitas pelo governo e por muitos bancos brasileiros. O último relatório do Banco Central sobre a evolução da inflação, publicado em março, previu uma expansão de 1,2% neste ano. Os bancos esperam uma contração de 0,49%, segundo a média das projeções coletadas pelo BC na semana passada.

Na avaliação do FMI, o impacto da crise tem sido subestimado pelo governo e pelos bancos brasileiros. Os economistas do Fundo acreditam que os choques provocados pelos problemas existentes nas economias avançadas estão sendo transmitidos para os mercados emergentes com mais força do que observadores com uma visão menos abrangente da economia global são capazes de perceber.

"Não é que o Brasil esteja particularmente fraco", disse o diretor-adjunto do departamento de pesquisa do FMI, Charles Collyns, numa entrevista em que os economistas da instituição apresentaram a nova edição do seu relatório semestral sobre o cenário econômico global. "As projeções para o Brasil foram rebaixadas em linha com nossas projeções para a economia mundial."

Num sinal da rapidez com que a situação se deteriorou nos últimos meses, o Fundo tem revisto seus números com muito mais frequência. Em janeiro, o FMI disse que o Brasil cresceria 1,8% neste ano e 3,5% no próximo. Agora, seus economistas calculam que o país crescerá apenas 2,2% no ano que vem, pouco acima da média mundial.

O relatório do Fundo indica que várias forças que deram impulso ao crescimento da economia brasileira antes da crise estão agora em refluxo. O comércio internacional deve sofrer uma retração de 11% neste ano e ficará estagnado no próximo, diz o FMI. As exportações dos países emergentes devem diminuir 6,4%, com a redução do consumo nos países avançados.

Preços de matérias-primas, produtos agrícolas e outras mercadorias que ajudaram o Brasil a aumentar suas exportações antes da crise continuam em níveis historicamente elevados, mas deverão sofrer uma queda acentuada neste ano. O FMI prevê uma redução de 27,9% nos preços de uma cesta composta por várias commodities. Os preços do petróleo poderão cair 46,4%.

Na opinião do FMI, a economia mundial só voltará a crescer depois que for restabelecida a saúde do sistema financeiro dos países avançados, o epicentro da crise atual. A falta de crédito e as dificuldades que empresas e consumidores têm encontrado para renegociar suas dívidas deverão continuar reprimindo o consumo e os investimentos por um bom tempo, prevê o Fundo.

As novas projeções da instituição dizem que a economia mundial sofrerá uma contração de 1,3% neste ano e terá uma expansão de 1,9% no próximo, abaixo dos 3% projetados em janeiro. A freada será brusca nos países ricos, onde o FMI prevê uma contração de 3,8% neste ano e crescimento zero no próximo. Países emergentes que continuam crescendo, como a China e a Índia, estão se expandindo num ritmo mais vagaroso que o observado antes da crise.

O Fundo prevê uma recuperação lenta, que poderá começar em meados do ano que vem e levará tempo para ganhar velocidade. O FMI acredita que medidas como os vários planos de estímulo econômico lançados nos Estados Unidos e em outros países nos últimos meses ajudarão a evitar uma recessão mais profunda, e o relatório sugere que novas iniciativas desse tipo poderão ser necessárias em 2010.

Restaurar a confiança no setor financeiro será essencial para evitar um ciclo vicioso que pode prolongar a crise, na avaliação do FMI.

A fragilidade dos bancos dos países avançados encolheu dramaticamente os fluxos de capital externo para países emergentes como o Brasil. O FMI prevê que neste ano os mercados emergentes enfrentarão uma saída líquida de capitais privados de US$ 190 bilhões, com a fuga de investidores que tinham apostado nas bolsas de valores e dificuldades para rolar dívidas contraídas com bancos estrangeiros. De acordo com o Fundo Monetário, o fluxo de capital externo privado para países emergentes atingiu um pico em 2007, com US$ 617 bilhões em termos líquidos.

Economias do Leste Europeu que se endividaram muito nos últimos tempos serão mais atingidos do que países como o Brasil, que reduziu seu endividamento externo. Mas o impacto da crise será significativo mesmo assim. O Fundo prevê que a América Latina receberá neste ano um fluxo líquido de capital externo de apenas US$ 13 bilhões, um décimo do volume de recursos observado em 2007.

O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, disse em Buenos Aires que as previsões dos organismos internacionais estão "muito voláteis e mudando muito em função dos últimos acontecimentos". "É prematuro chegarmos a uma conclusão baseados em cada nova previsão dos organismos internacionais", afirmou. Meirelles disse que o Brasil tem reagido bem à crise, a indústria automobilística está se recuperando e, embora considere a situação econômica mundial "grave", disse que o país está "forte e bem preparado" para enfrentar a crise. Meirelles não quis antecipar qual a projeção de crescimento do Banco Central que será divulgada em junho.

Recessão verde-amarela

Martha Beck
DEU EM O GLOBO

Ministério da Fazenda admite PIB negativo no 1o- trimestre, mas aposta em crescimento anual

BRASÍLIA O fraco desempenho da indústria no início de 2009 — com retração de 17,2% na produção em janeiro e fevereiro — fez o Ministério da Fazenda admitir que o Brasil fechará o primeiro trimestre em recessão técnica — configurada quando há retração do Produto Interno Bruto (PIB, soma de bens e serviços produzidos no país) por dois trimestres consecutivos. Mesmo assim, os técnicos ainda consideram que a economia vai encerrar o ano com crescimento, na contramão do Fundo Monetário Internacional (FMI), que anunciou ontem prever queda de 1,3% para o PIB brasileiro em 2009.

— Existe uma grande possibilidade de o Brasil fechar o primeiro trimestre em recessão técnica diante do resultado da produção industrial.

Mas nós ainda acreditamos que vamos ter crescimento positivo este ano — disse ao GLOBO um integrante da equipe econômica.

Em janeiro, a produção industrial recuou 17,2% em relação ao mesmo mês de 2008. Já em fevereiro, esse quadro continuou ruim, com queda de 17% na mesma comparação.

— Muito dificilmente outros setores da economia vão ter condições de reverter a queda na indústria registrada até agora — admitiu a fonte.

No último trimestre de 2008, o PIB recuou 3,6% em relação ao trimestre imediatamente anterior, o pior resultado desde a recessão pós-Plano Collor.
Como no início de 2009 não houve uma recuperação da indústria, as chances de recessão técnica aumentaram. Segundo um técnico, a projeção do FMI já era esperada pela equipe econômica e segue a de várias consultorias, de retração entre 1% e 1,5% este ano.

Fundo ‘pode errar de novo’, diz ministro

Na avaliação da equipe econômica, as consultorias e o FMI fazem suas projeções com base em modelos que não refletem mudanças estruturais recentes na economia brasileira, como a redução dos juros e as desonerações tributárias. Desde o início da turbulência internacional, as desonerações do governo já superam R$ 12 bilhões.

As mais recentes foram a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para a linha branca (máquinas de lavar, fogões e geladeiras) e a retirada da Petrobras da meta de superávit primário. Com isso, a meta de 2009 caiu de 3,8% do PIB para 2,5%. Já a de 2010 baixou de 3,8% para 3,3%.

— No passado, em momentos de crise, a política do governo brasileiro era pró-cíclica. Agora, ela é anticíclica, com redução dos juros e desonerações.

Essas mudanças estruturais não estão refletidas nos modelos (de projeção) — disse o técnico.
O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, foi mais direto ao refutar a projeção do Fundo: — O governo está fazendo o dever de casa e tomando todas as medidas necessárias para aquecer a economia.

Portanto, acreditamos que o FMI, que já errou tantas vezes nessa crise, irá errar de novo.

A projeção oficial do Ministério da Fazenda é de crescimento de 2% este ano. Mas deve ser revista para baixo até maio, quando o governo envia ao Congresso o novo decreto de programação orçamentária. Embora a equipe da Fazenda evite citar um número para 2009, é possível que a projeção fique próxima da do Banco Central: 1,2%. Para 2010, a estimativa de expansão, de 4,5%, também deve ser reduzida. Para o ministro Guido Mantega, que no início do ano dizia que o país cresceria 4% em 2009, o pior da crise global já passou, mas a recuperação da economia só ganhará força a partir do terceiro trimestre. A área econômica estima que a economia encerrará 2009 crescendo entre 3% e 4%, o que evitaria a retração do PIB anual.

FMI: retração de 1,3% no Brasil e no mundo

Gilberto Scofield Jr.
Correspondente
DEU EM O GLOBO

América Latina receberá US$ 90 bilhões de organismos multilaterais de crédito

WASHINGTON, LONDRES e TÓQUIO. O Fundo Monetário Internacional (FMI) informou ontem que a crise econômica mundial vai afetar mais profundamente as economias, reduzindo o crescimento e fazendo o Produto Interno Bruto (PIB, soma de bens e serviços produzidos em um país) global encolher 1,3% — o mesmo percentual de retração previsto para o Brasil. Em janeiro, o FMI ainda estimava que a economia brasileira cresceria 1,8% este ano. Para 2010, o organismo prevê que o Brasil crescerá 2,2%, contra os 3,5% estimados anteriormente.

A queda da economia mundial será a maior desde a Segunda Guerra Mundial, com a recessão atingindo 75% das economias do planeta, segundo o estudo “Perspectivas para a economia mundial”, divulgado ontem. Os países da América Latina, como um todo, vão encolher 1,5%, afetados, principalmente, pela queda nos preços internacionais das matérias-primas exportadas pela região.

— Este não é um momento de complacência, e a necessidade de políticas fortes, tanto no front macroeconômico quanto no financeiro, nunca foi tão urgente — afirmou o economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard.

— Mas com a aplicação dessas políticas, pode-se enxergar luz no fim desse longo túnel. O crescimento mundial pode se tornar positivo até o fim deste ano, e o desemprego pode recuar até o fim do ano que vem.

Blanchard observou que, apesar de o G-20 (grupo que reúne as principais economias, industrializadas e emergentes) ter adotado medidas positivas em sua reunião, este mês, a confiança nos mercados financeiros ainda é baixa e compromete a recuperação mundial este ano. As economias dos países ricos vão encolher 3,8% este ano, sendo o Japão o mais afetado, com retração de 6,2%. O governo japonês informou ontem ter registrado seu primeiro déficit comercial em 29 anos: 725,3 bilhões de ienes (US$ 7,4 bilhões), no ano fiscal findo em março.

Para o Reino Unido, o FMI prevê retração de 4,1% este ano e de 0,4% em 2010. Ontem, o ministro de Finanças britânico, Alistair Darling, fez uma projeção um pouco menos pessimista, de queda de 3,5% este ano.

Ele também informou que a nova alíquota do Imposto de Renda, para quem ganha mais de 150 mil libras anuais (US$ 217 mil), será de 50% e entrará em vigor em abril. O Reino Unido também registrou déficit público de 90 bilhões de libras (US$ 117 bilhões), o maior no pós-guerra.

Entre os emergentes, segundo o FMI, a pior queda será a da Rússia: 6% em 2009. Nos latinos, será o México, com retração de 3,7%, devido a sua dependência dos EUA.

Já a China, a maior locomotiva mundial hoje depois dos EUA, sofrerá uma desaceleração forte no crescimento, que passará de 9% em 2008 para 6,5% este ano e 7,5% em 2010. Ambos os percentuais estão abaixo do que Pequim considera ideal para evitar conflitos sociais no país: 8%. O Goldman Sachs, no entanto, divulgou ontem um relatório prevendo expansão de 8,3% para a China este ano. Já a Índia crescerá 4,5% este ano e 5,6% em 2010.

Presidente do Bird: é preciso evitar crise social e humana Organismos multilaterais de crédito com projetos para a América Latina vão destinar à região US$ 90 bilhões, nos próximos dois anos, para ajudar os países a enfrentarem a recessão. O anúncio foi feito ontem por Banco Mundial (Bird, que vai destinar US$ 35,6 bilhões), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID, US$ 29,5 bilhões), Cooperação Andina de Fomento (US$ 20 bilhões), Banco Central Americano para a Integração Econômica (US$ 4,2 bilhões) e Banco de Desenvolvimento do Caribe (US$ 500 milhões).

O presidente do Bird, Robert Zoellick, disse que é preciso “evitar uma crise social e humana” na região.

— A recessão na América Latina ameaça o progresso social do continente e pode reverter o progresso social dos últimos anos — disse Augusto de La Torre, economistachefe para a região do Bird.

PIB do Brasil cairá 1,3% neste ano, prevê FMI

Fernando Canzian
Enviado especial a Washington
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Para o Fundo, país será afetado por freada global e pela queda no preço das commodities; mundo também deve ter recessão de 1,3%

Se confirmada a previsão, economia brasileira deverá ter a 1ª contração desde 92; recuperação é esperada apenas para o próximo ano

O FMI (Fundo Monetário Internacional) previu ontem que o Brasil encerrará 2009 com uma contração de 1,3% em sua economia. O Fundo justificou a projeção afirmando que o país sofrerá mais neste ano os impactos da desaceleração global, principalmente por conta da queda nos preços das commodities que exporta.

Para o Fundo, a economia brasileira só se recuperará em 2010, ano em que será eleito o sucessor do presidente Lula, quando o país poderá crescer 2,2%. No ano passado, o Brasil cresceu 5,1%. Em 2007, 5,7%.

A última vez em que a economia brasileira encolheu foi em 1992, quando o PIB caiu 0,5%. Em 1990, porém, houve retração ainda maior que a prevista pelo FMI, de 4,3%. Ela foi gerada pelos efeitos do chamado Plano Collor, choque econômico que incluiu o congelamento dos depósitos na poupança.

"Vemos alguns sinais de recuperação [no Brasil] no primeiro trimestre do ano, em parte porque o governo está utilizando estímulos fiscais e sendo agressivo na redução dos juros. Isso é positivo e deve amenizar os choques externos. Mas nossa visão global é que o Brasil será afetado. Não porque esteja particularmente fraco, mas porque é um participante importante da economia mundial", afirmou Charles Collins, diretor-adjunto do Departamento de Pesquisas do FMI.

O Fundo vê a economia mundial se contraindo 1,3% neste ano, quase dois pontos percentuais a mais do que previsão feita em janeiro. Já o corte na projeção anterior para o Brasil foi de 3,1 pontos percentuais.

Em relatório divulgado ontem, o FMI justifica a contração em vários países produtores de commodities com uma expectativa de queda nos preços desses produtos de 46,4% neste ano -e de uma contração no comércio mundial de 11% (a maior no pós-Segunda Guerra).

"Além disso, a forte queda na atividade econômica nos países avançados, especialmente nos EUA, o maior parceiro comercial da América Latina, está deprimindo a demanda externa e diminuindo as receitas com exportações, turismo e remessas [de dólares]", diz o relatório.Na média, entre os nove países da América do Sul (e México) monitorados pelo FMI, a contração prevista é de 1,6%.

A boa notícia para o Brasil é que o Fundo afirma que o mercado financeiro tem feito uma "diferenciação" entre os tomadores de empréstimos.

"O custo financeiro aumentou substancialmente para alguns países [como Argentina, Venezuela e Equador], mas se mantém relativamente baixo para outros mais bem posicionados, como Brasil, Chile, Colômbia e México", diz o FMI.

PIB do Brasil vai cair 1,3%, diz FMI

Rolf Kuntz
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Reativação da economia será lenta e penosa, comércio cairá 11% e o País será afetado, segundo relatório do Fundo

A economia brasileira encolherá 1,3% em 2009, no meio da maior recessão mundial do segundo pós-guerra, e crescerá 2,2% no próximo ano, segundo as novas projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI). Todas as previsões divulgadas ontem são piores que as de janeiro e apontam para uma recuperação muito lenta para as economias avançadas: sua produção diminuirá 3,8% neste ano e ficará estagnada em 2010, quando o desemprego no mundo rico chegará ao ponto mais alto, 9,2%.

As novas estimativas aparecem no Panorama Econômico Mundial, uma publicação distribuída pouco antes da reunião de primavera, em abril, e da assembleia anual do Fundo, realizada habitualmente em setembro ou outubro. Nos intervalos as projeções são atualizadas. A última revisão havia ocorrido no começo do ano.

Os números do Fundo são muito mais baixos que os do governo brasileiro - expansão de 2% em 2009 e de 4,5% no próximo ano - e mais pessimistas que os do mercado financeiro nacional, de contração de 0,49% neste ano e crescimento de 3,5% no próximo. Mas a nova estimativa reflete uma avaliação mais negativa do cenário internacional e não das condições fundamentais da economia brasileira, segundo explicou o diretor adjunto do setor de pesquisa do FMI, o economista Charles Collyns.

O Brasil e outros países da América Latina são afetados, disse Collyns, por uma combinação de choques: o abrupto declínio dos preços dos produtos básicos, o aperto nas condições de financiamento e a desaceleração do comércio global.

Esses fatores, segundo ele, produziram forte impacto na economia brasileira no último trimestre do ano passado, mas já houve sinais de melhora no primeiro trimestre de 2009, graças ao uso de estímulos fiscais e "aos cortes agressivos da taxa de juros".

Foi bom, disse o economista, o País ter conquistado algum espaço de manobra para reagir à crise dessa maneira, e "isso com certeza está amortecendo o impacto de grandes choques globais no Brasil".

A previsão para a economia global aponta a continuação das dificuldades em 2009 e um retorno ao crescimento apenas no próximo ano. "Não achamos o Brasil particularmente fraco: ao contrário, é um membro importante da economia global e as projeções para o Brasil foram reduzidas em linha com as projeções globais", concluiu.

O comércio mundial de bens e serviços diminuirá 11% neste ano e crescerá 0,6% em 2010, segundo o Panorama. Em 2009 os preços do petróleo serão em média 46,4% menores que em 2008. Para as cotações das outras commodities prevê-se a redução de 27,9%. Em 2010 deverá ocorrer uma recuperação parcial, com valorização de 20,2% para o petróleo e de 4,4% para os demais produtos básicos, insuficientes, portanto, para o retorno aos níveis anteriores à queda,

A reativação da economia global será mais lenta e mais penosa do que noutras crises, lembrou o economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard. Ele se referia a uma das conclusões mais importantes do Relatório de Estabilidade Financeira Global, divulgado no dia anterior. Recessões tendem as ser mais longas e profundas quando ocorrem simultaneamente em várias economias grandes e são associadas a crises financeiras. As duas condições ocorrem atualmente. Também o desemprego tende a ser maior do que em recessões de outro tipo.

As economias emergentes e em desenvolvimento também são afetadas pela crise. O crescimento da China, o maior do mundo nas últimas duas décadas, deve passar de 9% em 2008 para 6,5% em 2009 e 7,5% em 2010. Essas economias, com crescimento médio maior que o do mundo rico, devem iniciar mais cedo a recuperação, "mas o retorno ao normal dependerá do que ocorrer nos países avançados", disse Blanchard.

O produto mundial diminuirá 1,3% neste ano e crescerá 1,9% no próximo e esse número, bem abaixo do normal, será sustentado principalmente pelo desempenho das economias emergentes e em desenvolvimento. Os estímulos fiscais para a reativação econômica devem atingir em 2009 cerca de 2% do produto bruto dos países do Grupo dos 20 (G-20), tal como sugeriu o FMI no outono de 2008, lembrou o economista-chefe.

Os estímulos fiscais e a redução de juros já produzem algum efeito, mas as forças contrárias ainda prevalecem, afirmou Blanchard. O equilíbrio entre as duas forças dependerá do sistema financeiro e, portanto, das medidas tomadas para repará-lo. Os bancos ainda estão na defensiva, com critérios de empréstimos mais apertados, e os mercados de títulos funcionam mal. Enquanto isso durar continuará a recessão. Daí a urgência, reiterou o economista, de políticas financeiras firmes para limpeza dos balanços, ainda contaminados por créditos tóxicos, e recapitalização dos bancos viáveis.

Nessa situação, os países emergentes e em desenvolvimento ainda são afetados por uma reverão dos fluxos de financiamento, por causa do aumento da aversão ao risco. Alguns países poderão enfrentar problemas de balanço de pagamentos e o FMI deverá ajudá-los.

A economia da América Latina e do Caribe deve passar de um crescimento de 4,2% em 2008 para uma contração de 1,5% em 2009, podendo crescer 1,6% no próximo ano. O PIB mexicano, muito dependente do comércio com os Estados Unidos, deve diminuir 3,7% em 2009 e crescer 1% em 2009. O México já obteve US$ 47 bilhões da nova linha de crédito flexível do FMI. A Colômbia está na fila.

De modo geral, a inflação permanecerá em níveis muito próximos dos observados nos últimos anos e poderá cair em alguns países, mas os preços ao consumidor na Venezuela deverão subir 36,4% neste ano e 43,5% em 2010. As taxas projetadas para a Argentina são 6,7% e 7,3%.

Mas a tabela divulgada pelo FMI contém uma ressalva: analistas privados estimam uma inflação muito maior. A maior parte dos países com política de metas de inflação entrou na crise com os preços acima dos limites. O Brasil foi a exceção. Se as condições financeiras externas piorarem, ficará mais difícil equilibrar as pressões, mas alguns países, incluídos Brasil, Chile, Colômbia e México, ainda terão espaço para novos cortes de juros, segundo o relatório.

Longo túnel

Panorama Econômico :: Miriam Leitão
DEU EM O GLOBO


O desemprego no mundo só começará a cair no fim de 2010, segundo o FMI. O déficit fiscal dos países ricos chegará a 10% do PIB. Nos dois relatórios divulgados esta semana, o Fundo fez uma lista de más notícias. Segundo o economistachefe Olivier Blanchard, duas forças estão se cruzando na economia global: a da crise e a dos estímulos. A primeira ainda está ganhando.

Ontem, o FMI divulgou o Panorama Econômico Global.

Nele, se vê que as projeções de crescimento econômico para todos os países pioraram desde a última previsão feita pelo Fundo, em janeiro. O Brasil, que estava na lista com um crescimento de 1,8%, está agora com uma recessão de 1,3%.

Pelo menos está em linha com a recessão global que será, segundo o FMI, de 1,3% este ano. Em 2010, o Brasil cresce 2,2%, o mundo 1,9%.

Vai ser, segundo Blanchard, uma retomada mais lenta do que outras recuperações, e a queda brusca do fim do ano passado é sem precedentes: o PIB mundial caiu 7,5% no último trimestre de 2008 e pode ter caído de novo, na mesma dimensão, no primeiro trimestre deste ano.

Na terça-feira, o FMI divulgou o relatório sobre a Estabilidade Financeira Internacional em que projetou para US$ 4,1 trilhões o tamanho das perdas dos bancos e instituições financeiras.

Apenas um terço desse rombo foi reconhecido nos balanços, o que significa que o pior em termos de baixa contábil ainda está por vir.

Os dois relatórios foram um banho de água fria para quem lia os poucos bons sinais da economia mundial como o início do fim da crise.

Em alguns países, como os Estados Unidos, todos os trimestres deste ano serão negativos, disse o Fundo. Em outros, o segundo trimestre, que nós estamos vivendo agora, será um pouco melhor e no fim do ano a economia já estará operando no positivo.

O Brasil está nesse grupo que melhora mais cedo. De qualquer maneira, segundo os relatórios e entrevistas dadas pelas autoridades do FMI, a recuperação dos mercados emergentes vai depender, em última análise, da capacidade de recuperação do mundo desenvolvido.

China e Índia continuarão crescendo, num patamar muito mais baixo, de 6,5% e 4,5%; a Rússia será o pior dos Brics, com um encolhimento do PIB de 6%.

Pelos relatórios do Fundo, o contribuinte dos países ricos está diante de um dilema: se a limpeza dos bancos for muito demorada, mais longa será a recessão e mais tardia será a recuperação. O problema é que isso talvez signifique mais pacotes de socorro aos bancos, e o contribuinte está desconfiado de mau uso desse dinheiro, por boas razões. O megassocorro aos bancos está sendo investigado em 20 inquéritos e seis auditorias, como a imprensa informou ontem.

As novas previsões do economista Nouriel Roubini são um pouco piores que as do Fundo. A economia mundial vai ter uma recessão de 1,9%, e não 1,3%, neste ano, segundo ele. O comércio internacional está enfrentando, em 2009, uma contração de 12%, depois de cinco anos de expansão acumulada de 82%. Essa é a primeira redução do comércio internacional desde o pós-guerra.

A recessão será em U, disse Roubini. A economia caiu, permanecerá lá embaixo por algum tempo, para depois subir lentamente. Sem usar letras, foi isso também que o FMI quis dizer com uma recuperação mais devagar do que outras recessões, o que sepulta as esperanças de uma crise em V, ou seja, que bate no fundo do poço e começa imediatamente a recuperação.

Mas o consolo é que não será uma recessão em L, que cai e permanece lá embaixo, sem perspectiva de recuperação à vista.

O que tanto o FMI quanto o economista — que mais acertou nessa crise — dizem é que a queda livre acabou.

Ela ocorreu nos “dois trimestres de más notícias”, que foram o último de 2008 e o primeiro deste ano. Segundo Roubini, a Europa e o Japão não verão recuperação tão cedo. Nos EUA e na China, os fortes pacotes de estímulo já estão produzindo sinais positivos que, no entanto, permanecem, como disse o FMI, superados pelos sinais negativos ainda altamente dominantes em todas as economias.

Todas? Não. Por incrível que pareça, segundo o FMI, a parte do mundo que ainda mantém o ritmo de crescimento é a mais pobre: a África subsaariana.

Numa entrevista à imprensa, o diretor de mercado de capitais do FMI, José Viñals, disse que a América Latina, comparada a outras regiões dos países emergentes, estava bem. Comparou especificamente com o Leste Europeu, onde as empresas endividadas em moeda estrangeira e o câmbio fixo em alguns países são uma bomba de efeito retardado. Mas para Roubini, a América Latina, que cresceu em 2008 4,1%, vai ter recessão este ano nos principais países: México, Brasil, Argentina, Venezuela, Chile, Colômbia. Alguns países do Leste Europeu terão recessões de dois dígitos.

Na Ásia, os quatro tigres, Cingapura, Taiwan, Coreia do Sul e Hong Kong, além de Malásia e Tailândia, também estarão em recessão.

Será um longo túnel até a luz, lá no ano que vem.

Mas de todas as previsões do Fundo, a mais assustadora é que mesmo quando começar a recuperação, o desemprego continuará aumentando e só encontrará o seu pico no fim de 2010, quando, então, começará a ceder.

A crise e os primos dos americanos

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Crise "paralisa" os supermóveis EUA; migração é a menor em décadas; taxa de propriedade de casas cai ao nível de 2001

OS AMERICANOS não têm primos, vez e outra escrevia o economista e ex-ministro João Sayad em suas colunas na Folha. Não se tratava de uma anomalia biológica ou etnológica descoberta por Sayad, tal como uma aberração no sistema de parentesco americano. O economista observava que o convívio de famílias extensas era mais raro nos EUA, em contraste com o Brasil cordial e familiar, de parentadas e parentelas.

Os americanos costumam estudar em universidades distantes da cidade natal (trata-se aqui, nos EUA e no Brasil, de classes médias). Mudam-se bastante, espalham-se, vivem longe do núcleo familiar, pois há, ou havia, oportunidades em quase todas as partes do país. No Brasil, até outro dia ainda fazíamos jus à metáfora quatrocentona de sermos caranguejos, arranhando poucas cidades do litoral, como dizia frei Vicente do Salvador.

As famílias americanas viajam muito para se encontrarem no Dia de Ação de Graças, o "Natal" deles e época de faturamento gordo nas companhias aéreas. É o feriado no qual avós conhecem ou estranham os netos e, pelo menos nos filmes, parentes revelam segredos constrangedores e afloram antigos dramas e mágoas da casa.

Pois bem, os americanos jamais se mudaram tão pouco desde 1962, dizem dados do Censo americano de 2008 revelados ontem: 12% dos americanos se mudaram em 2008, contra 20% em meados dos anos 1980. O número de mudanças interestaduais é o menor desde o final da década de 1940. O número de imigrantes em 2008 também foi o menor em mais de uma década. É a crise: imobiliária, de empregos (em baixa ou exportados para a Ásia).

A migração americana agora ficou mais "brasileira": desempregados, pobres e negros se mudam mais. Antes dos sulistas que foram procurar terras no Centro-Oeste e no Norte, a grande migração brasileira moderna foi a dos pobres rurais sem terra e sem direito social algum, o que produziu as nossas monstruosas cidades. Apenas depois da descentralização econômica "pós-abertura dos portos", nos anos 1990, brasileiros mais bem postos das capitais começaram a ver mais chances no interior.

Os americanos ficam "paralisados", mudam-se menos, num período em que o preço médio das casas baixou entre 20% e 30% (desde 2006); em que a taxa de juros de financiamento imobiliário desce a 4,5%. Os juros imobiliários agora são os mais baixos desde a Segunda Guerra: então 44% dos americanos eram proprietários do seu teto, chegando a 62,1% em 1960.

A taxa de propriedade subiu só a 67,8% em 2008, mesmo com a farra da finança imobiliária "estruturada" -antes, os americanos pegavam empréstimos em "caixas econômicas" locais. Note-se, aliás, que depois do pico de 2005, a proporção de americanos morando em casa própria voltou ao nível de 2001, antes da bolha imobiliária.

Talvez por isso Paul Volcker, lendário ex-presidente do Fed, ora assessor de Barack Obama, diga, meio em tom de troça, que a inovação financeira não está correlacionada ao progresso econômico; que, para a maioria, o grande invento financeiro foi o caixa automático.