domingo, 24 de maio de 2009

FRASES

”Veja, eu não sei o que vai acontecer em 2010. Como é que vocês querem que eu saiba o que vai ocorrer em 2014? A única coisa que eu quero para 2014 é a Copa do Mundo, o que já está garantido. O que vai ocorrer na política, só Deus sabe.


(Lula, em sinais contraditórios, O Estado de S. Paulo, 23 de maio pág. A9)

PENSAMENTO DO DIA (Gramsci)

“O “senso comum” foi considerado de várias maneiras: ou diretamente como base da filosofia , ou criticado do ponto de vista de uma outra filosofia. Na realidade, em todos os casos, o resultado foi a superação de um determinado senso comum para a criação de um outro, mais adequado à concepção do mundo do grupo dirigente.”


(Antonio Gramsci – Caderno do Cárcere, volume 1, pág. 116 – Civilização Brasileira, 2006.)

Blindagem econômica

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

Um dos dados mais interessantes da pesquisa “Os ministros da Nova República — Notas para entender a democratização do Poder Executivo”, da cientista política Maria Celina D’Araujo, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (Cpdoc/FGV), é o que mostra que nesse período desde 1985, embora o ministério tenha sido um espaço para as negociações políticas entre as forças que se coligam para sustentar os governos, áreas como a econômica têm sido blindadas pela escolha predominante de técnicos.

A escolha para o ministério obedece a certos critérios básicos, onde se destaca a experiência política. Os dados da pesquisa mostram que se trata de um grupo com alto grau de envolvimento na vida políticopartidária: do total de 329 ministros identificados, quase 50% tiveram experiência no Parlamento (em algum dos três níveis da federação), 22% exerceram cargos eletivos no Executivo (governador e prefeito) e 76% passaram por cargos no Executivo federal, estadual e municipal.

Fica evidente, comenta Maria Celina D’Araujo, que o grupo que chega ao ministério tem ampla trajetória política com forte enraizamento em cargos executivos estaduais e municipais.

“O ministério vai se configurando, por nossos dados, como um espaço de experiência política acumulada.

Os cargos de ministros são distribuídos entre pessoas com mais experiência política e com faixas de idade superiores aos do corpo de profissionais que ocupam os cargos de DAS/NES”.

É expressiva a presença de pessoas entre 61 e 70 anos nos ministérios, e se comparados com os ocupantes de cargos de DAS/NES, o estudo mostra que o gabinete tem indicadores etários bem superiores.

Mais da metade dos ministros tem mais de 50 anos (228 de 328) enquanto mais da metade das pessoas de nossa amostra de DAS/NES estão abaixo de 50 (351 de 484).

O estudo associa a experiência a taxas significativas de educação: na média, apenas 4,5% dos ministros não têm formação universitária, a maioria se formou em direito, e 54% fizeram algum curso de pós-graduação majoritariamente em áreas como economia, administração e ciências sociais.

“Embora a literatura ressalte o espaço do ministério como um campo mais propício ao clientelismo, vemos que os padrões de instrução para o recrutamento têm sido significativos conectando o governo com o avanço da pós-graduação no país”, comenta Maria Celina D’Araujo, que destaca que a área econômica foi a que recebeu ministros mais titulados, “demonstrando que certos setores do governo são tratados com mais cuidado técnico. Ou seja, se o clientelismo é moeda política importante, há áreas que são preservadas numa espécie de insulamento”.

A pesquisa constata que estas áreas “protegidas” estão sempre relacionadas às atividades monetárias, fiscais e de arrecadação de recursos, isto é, as que propiciam a capacidade extrativa do Estado.

“Em termos da capacitação de pessoal, ela é maior quando se trata de arrecadar do que quando se trata de gastar”, nota ironicamente a cientista política.

Na comparação entre a qualificação dos ministros e a dos DAS/NES, vê-se que há “uma complementação em termos de graus de instrução”.

Quando há ministros mais fracos academicamente, os quadros de DAS/NES são mais qualificados.

A área de Justiça, por exemplo, que teve apenas 7,4% de ministros doutores, tem 34,5% de dirigentes com essa titulação.

No decorrer dos anos, a formação dos ministérios mostra que a área econômica é a que recebe mais ministros qualificados, tendo nada menos que 52% dos seus ocupantes com título de doutorado.

É nela também onde há mais profissionalização entre os assessores de nível DAS/NES, e um menor percentual de sindicalizados e de filiados a partidos.

O estudo trata o ministério como “uma estrutura estável” no geral, com uma forte representação de ministros da região Sudeste. Ao lado dos requisitos partidários, a lógica federativa preside as escolhas dos ocupantes das pastas.

O que é identificada no estudo como “super-representação da região Sudeste” fica patenteada no fato de que apenas no governo Itamar essa região ficou com menos de 50% das pastas. Em segundo lugar vem o Nordeste (20,1%) e, em terceiro, a região Sul (15,3%).

Norte e Centro-Oeste não chegam a ocupar 5% das vagas.

O estudo da FGV constata que essa distribuição “não é proporcional ao PIB, mas o é em relação à população”, o que faz sentido do ponto de vista eleitoral.

Cerca de 80% dos ministros do período analisado vêm de carreiras políticas bem sucedidas, na definição de Maria Celina D’Araujo, “pessoas experientes na vida política com for te enraizamento em atividades parlamentares e executivas em todos os níveis de governo”.

Ao contrário das críticas mais comuns, a pesquisa chega à conclusão de que o cargo de ministro, quando destinado a um político, é um “prêmio” para uma trajetória de sucessos nas urnas e nos partidos, tornando-se o ministério “um espaço importante para a experiência comprovada”.

Segundo Maria Celina D’Araujo, a análise da evolução dos ministérios nesse período de quase 25 anos permite identificar avanços formais na democracia que, no entanto, não garantem mais conteúdo e mais qualidade da democracia.

“Para isso, o país, a exemplo de outras nações, teria que aumentar seus controles internos e externos sobre as agências de governo e sobre seus governantes e teria que romper com práticas corporativas pérfidas e com a impunidade. Isso sem falar em políticas de desenvolvimento que efetivamente possam promover crescimento com equidade”.

Passos erráticos

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Com todo instrumental político-administrativo à disposição e mais a vantagem conferida pelos altos índices de popularidade, uma verdade seja dita sobre a montagem do esquema governista para a eleição de 2010: há mais mito que verdade na decantada habilidade de articulação do presidente Luiz Inácio da Silva para a eleição de 2010.

Para início de conversa, Lula não observou a regra básica do manual do bom investidor. Não diversificou as apostas e pôs todas as fichas na própria capacidade de gerar êxito.

Escolheu antecipar o processo eleitoral para manter viva sua expectativa de poder tentando evitar que a oposição se beneficiasse da dianteira nas pesquisas, optou por apresentar uma candidatura criada em laboratório e procurou se manter o mais distante possível do PT, jogando todas as fichas na aliança com o PMDB.

A desorganização reinante da base do governo e a relativa tranquilidade com que se conduz a oposição - dando-se, por exemplo, ao luxo de arriscar patrimônio com a instalação da CPI da Petrobrás - indicam que o modo autocrático de decidir pode não ter sido o melhor conselheiro para o presidente Lula.

Confiante - talvez em demasia - na própria intuição, Lula desconsiderou a força do imponderável, as necessidades do próprio partido, os interesses dos aliados e a determinação do adversário.

Hoje o PSDB é bem diferente daquele conglomerado sem compromisso de anteontem. Nem o partido está dividido como esteve em 2002, nem permanece desmotivado como em 2006.

A perspectiva real de vitória unifica a oposição, da mesma forma como a possibilidade objetiva de derrota faz da nação governista um ajuntamento de legendas em busca da melhor saída, evidenciando a ausência de uma solução natural.

Um grupo de onde saem ao mesmo tempo propostas de prorrogação de mandato, defesa de plebiscito para dar a Lula a chance de mais uma reeleição, apoio irrestrito a Dilma Rousseff e apelo à confecção de um "plano B" de contorno indefinido, não sabe o que quer. Carece de estratégia, de unidade e de objetivo.

O roteiro escrito por Lula ganha vida própria e já começa a contrariar o autor. A candidatura produzida em cativeiro sofre um revés que, na indefinição, semeia a insegurança. O PT, propositadamente enfraquecido e descolado da figura do chefe, corre o risco de não corresponder à expectativa do fortalecimento regional no caso da derrota federal.

O PMDB, voluntariamente fortalecido para ser o fiel da balança a favor, mostra-se, na realidade, um infiel do desequilíbrio em desfavor, além de uma companhia de potencial altamente constrangedor.

Um cenário desfavorável que em nada contribui para a fama de Lula como articulador político imbatível, capaz de enxergar muitos lances adiante.

Pode virar o jogo? Pode. Mas precisará de mais reflexão e menos intuição.

Próxima atração

No meio da crise das mordomias, o Congresso arquivou temporariamente a ideia de discutir aumento de salários para os parlamentares. O presidente da Câmara, Michel Temer, disse que não voltaria ao tema antes de ter um "número significativo" em termos de economia de gastos para mostrar à opinião pública.

Pois bem. O "número" de R$ 291 milhões, apresentado semana passada como a quantia que a Câmara pretende cortar anualmente, é significativo, embora não seja (ainda) comprovadamente efetivo.

Se for seguido o roteiro traçado, o Legislativo logo, logo, sentir-se-á autorizado no direito de retomar a reivindicação do reajuste salarial de R$ 16.512 para R$ 24.500, o teto do funcionalismo.

Uma discussão difícil, ainda. Primeiro, os R$ 291 milhões de economia não guardam relação com salários nem com despesas diretas dos deputados. É um cálculo baseado no corte de investimentos (obras), gastos de manutenção e despesas com pessoal.

Segundo, a reestruturação anunciada não reduziu em um centavo o custo do deputado. A Câmara limitou-se a reunir todos os extras (verba indenizatória, inclusive) numa cota única variável entre R$ 23 mil e R$ 34 mil, dependendo do Estado de origem do deputado, cujo destino é do livre arbítrio do parlamentar.

Se quiser gastar tudo em besteira, pode. Se alguém contestar, o argumento será a flexibilidade da regra, sem especificações precisas.

Em terceiro lugar, a discussão sobre aumento de salários vai esbarrar no "efeito cascata" sobre as Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. A lei vincula os salários dos deputados estaduais e vereadores a um porcentual do recebido pelos federais e deixa ao critério das Assembleias e das Câmaras Municipais o valor dos extras.

Muito bem. Tanto para desvincular quanto para limitar as mordomias, a Câmara não pode impor regras aos Estados e municípios. Terá de contar com a boa vontade de gente que, além de não estar sob o fogo da pressão da opinião pública nacional, ainda detém influência vital sobre a sobrevivência política das excelências federais.

A nova política

José Arthur Giannotti
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / Mais!


Crise econômica abre espaço para questionar legitimidade das instituições políticas

P ara entender a crise atual do sistema capitalista de produção convém insistir no seu caráter automático. A crise se aninha na natureza da ação socioeconômica que repõe o capital.

Os agentes operam no mercado imaginando que suas ações sempre serão contrabalançadas por ações alheias, atuam graças à mediação do dinheiro que, por si mesmo, aparece como se tivesse a virtude de transformar mercadoria em preço e preço em comprador.

Dada essa equação, a economia cresceria indefinidamente. A crise revela a perversidade desse processo e recoloca a questão do Estado nesse movimento de reposição.

Mas qual Estado?

Se deixarmos de lado esse automatismo, simplesmente iremos procurar agentes responsáveis pela crise, como se todos eles não tivessem culpa no cartório.

O desafio não é encontrar novos mecanismos de mercado, mais sadios e consistentes, mas instituir órgãos reguladores do funcionamento dos vários mercados capazes de legitimar seu funcionamento, isto é, assegurar que funcionem em vista do bem-estar e do bem-ser da população.

Ilusão em xeque

A crise revela o caráter social do capital e indica como ele precisa ser reestruturado de um ponto de vista político.

Mas política radical. Em que sentido? Está posta em xeque a ilusão de que a luta política deva recorrer a um fundamento comum consensual, como se o ser humano fosse naturalmente social e atuasse a partir dessa sociabilidade primeira.

Basta um olhar crítico sobre a política internacional contemporânea para que se perceba que os conflitos, por serem tão radicais, podem ser identificados com um confronto de civilizações. Não é assim que vejo, pois as populações querem participar de uma forma de vida pós-industrial.

Assim sendo, o consenso, a legitimidade das decisões, passa a ser construído e resulta do esforço de cada parte em vista de manter a si mesma segundo o que pretende ser, mas reconhecendo a possibilidade de persuadir e de ser persuadida.Hoje a legitimidade se faz construindo instituições legitimadoras.

Neste início de maio se realizou em Grenoble [França] um fórum reunindo mais de cem pesquisadores para discutir a democracia em nível mundial.

Foi organizado por Pierre Rosanvallon, que acaba de publicar "La Légitimité Démocratique" [A Legitimidade Democrática], um excelente livro, e conta com a participação importante de Claude Lefort.

Todos sublinhando que a democracia é sistema aberto, sempre se reinventando, mas que, nos dias de hoje, somente se torna legítima na medida em que se associa a instituições capazes de se tornarem imparciais diante de conflitos, refletir sobre seus efeitos e não perder contato com as várias populações interessadas. É preciso ir além do bom funcionamento dos procedimentos eleitorais, reconhecer o caráter global das políticas econômicas e a necessidade de políticas sociais compensatórias.

Crise evidente

Note-se que não são apenas os franceses que estão colocando essas questões -elas se impõem na Alemanha, na Inglaterra, nos EUA. Enquanto eles discutem os desafios de uma democracia pós-eleitoral, assistimos à perda de legitimidade de nosso processo eleitoral, enfim, do sistema de representação. Nosso Estado cresce sem que seja nem mesmo posta a questão do caráter democrático de suas decisões.

A crise no Legislativo é mais evidente.

Quando seus membros se confessam imorais, quando arrombam os cofres públicos, quando propõem novas regulamentações que não passam de máscaras para manter antigos privilégios, estão simplesmente evidenciando e velando a crise sistêmica no processo de representação e de legitimação.

Não é de hoje que saliento a necessidade de pensar a moralidade pública no contexto de inventar novos parâmetros, por conseguinte, de quebrar até mesmo antigas regras morais para que novas se estabeleçam.

Nunca imaginei, entretanto, que políticos viessem confessar sem pejo que pouco lhes importa o lado moral de suas ações, visto que, mesmo se mostrando sem caráter, continuam a receber o voto popular. Há melhor prova da ilegitimidade do sistema? Nessa mistura entre o público e o privado, não é o caráter democrático da instituição que está sendo posto em xeque? O popular nem sempre é democrático, isso já sabemos por experiência própria.

Se não há preocupação com a democracia interna, menos ainda se pensa nas dificuldades de estabelecer um sistema democrático controlando os mercados. Já que nos contentaremos com um Estado grande (ou inchado?), importa-nos apenas o controle externo que permita nosso crescimento.

Por aqui o importante é fazer de conta que se é eficaz, seja lá em qual domínio. Onde estão, porém, as transformações das burocracias do Estado que tragam para o mundo essa ideologia da eficácia?

Diante das pressões da mídia e da insatisfação popular, o Legislativo requenta propostas de reforma política. Mas não vejo em nenhuma delas uma preocupação de aprofundar a democracia, de melhorar o sistema representativo a partir dos obstáculos e dos erros do jogo de poder atual.

Lista fechada

Em tese, a proposta de eleições em lista fechada reforça o sistema partidário. Mas hoje não equivale a reforçar a corrupta burocracia partidária? Em contrapartida, o simples voto nominal não liquidaria uma possível estruturação dos partidos? Não há espaço para discutir a fundo todas as propostas, mas creio que uma análise superficial mostra que, ao invés de visar o aprofundamento do sistema democrático, tratam sobretudo de mudar no detalhe e no imaginário para que o essencial não seja mudado.

O processo de representação nasce nos municípios. A Constituição de 1988 fez a loucura de transformá-los em órgãos federativos; depois de criados, se mantêm, mesmo quando são organicamente deficitários e inadimplentes. Grande maioria deles está nessa situação.

Precisam, então, para subsistir, de ajudas externas, estaduais, principalmente federais. É o primeiro passo do toma lá dá cá. Formam assim a matéria-prima da corrupção política do país. Não é à toa que não se fale disso.

José Arthur Giannotti é professor emérito da USP e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.

A reforma agrária bifocal

José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S.PAULO / ALIÁS

Se o número de entidades que falam em nome da demanda popular por reforma agrária passar das 89 recentemente listadas por pesquisadora da Unesp, provavelmente não haverá trabalhadores rurais sem terra em número suficiente para tanta organização política falando e pleiteando em nome deles. Estamos em face de um curioso fenômeno histórico e político, raro, senão único, na história das lutas agrárias que acompanharam a crise do antigo regime e o nascimento e expansão do capitalismo nos últimos dois séculos. É o da lentidão e da demora na suposta desagregação da velha ordem latifundista e na superação de suas sobrevivências, entre nós. Porque reforma agrária é isso: a remoção e superação dos arcaísmos que na tradição fundiária travam o desenvolvimento da economia moderna. Ou, então, nosso impasse agrário é de outra natureza, de mera disputa de interesses partidários, o que se pode suspeitar com base na proliferação de agentes de reivindicação, sem a coerência ideológica que nos diga que estamos, de fato, em face de um impasse histórico. Não é a história que está em jogo e sim o poder.

As lutas agrárias têm sido expressões autodefensivas e conservadoras das vítimas da desagregação do velho regime e de suas injustiças sociais. Tornaram-se uma força involuntariamente auxiliar do surgimento e disseminação de uma nova ordem econômica, social e política baseada no lucro (e não na renda fundiária), na igualdade jurídica de seus membros (e não na desigualdade de nascimento das pessoas) e na democracia representativa (e não na dominação patrimonial e pessoal).

As lutas agrárias, ainda que motivadas pela resistência às iniquidades de uma ordem social adventícia, baseada na coisa e não na pessoa, de algum modo têm contribuído para aperfeiçoar essa mesma ordem, nela introduzindo, como observou E. P. Thompson, em relação à sociedade inglesa, um pressuposto moral regulador e humanizador da racionalidade da produção e do lucro. T. H. Marshall, o introdutor da sociologia na Universidade de Cambridge, fez estudos pioneiros sobre o mesmo tema, constatando que foram esses setores historicamente retrógrados da sociedade contemporânea que, sem expressamente pretendê-lo, asseguraram o nascimento dos direitos sociais, civilizando o que parecia caminhar para a incivilidade da coisificação plena e absoluta do ser humano.

Esse desencontro profundo entre a motivação imediata e a ação dos movim, eentos sociais, de um lado seus resultados históricos, de outro, tem sido característico das lutas sociais dos pobres na sociedade contemporânea, mesmo quando já não esteja em jogo a demolição de uma ordem social e política pretérita. Nem por isso esses movimentos deixam de ter uma indiscutível importância histórica na faxina que promovem, em nome de valores da tradição conservadora, nos resíduos de arcaísmos que tolhem o desenvolvimento econômico e social.

No entanto, também eles se perdem na contradição que os move e desfigura. Uma coisa é o elenco de suas modestas demandas materiais, outra coisa é o que com elas fazem os grupos de mediação interpretativa que as traduzem em política partidária e política de Estado. O sem-terra de referência do Ministério de Desenvolvimento Agrário e do Incra, como o do próprio MST, é irreal e mero instrumento de demandas completamente estranhas às dos que carecem de terra para trabalhar e de trabalho para sobreviver. Sem dúvida, pode haver algum grau de coincidência entre o que precisam uns e o que querem outros, aqueles que tutelam a formatação política das carências sociais. Mas pode haver distanciamentos e rupturas.

Nesse plano, a multiplicação do número de organizações que falam em nome dos que poderiam ser beneficiados pela reforma agrária, e a ideologização tanto do MST quanto da Pastoral da Terra, nos indicam uma crise nos indevidamente chamados movimentos sociais. A crise se enuncia na palavra do agente de pastoral da terra que, entrevistado por este jornal, define a reforma agrária do governo do PT, de cuja ascensão a CPT tem sido uma das responsáveis, como reforma agrária cínica. O padre que emitiu esse juízo tem suas ponderáveis razões. Mas não sei que outra palavra empregar para definir a conduta partidária dos que, estando em desacordo com a política agrária de Lula e do PT, ainda assim os consideram os únicos capazes de realizar as aspirações dos pobres da terra quando eles próprios estão dizendo exatamente o contrário.

Se o regime militar pensou a reforma agrária como instrumento do Estado para acalmar os nervos dos trabalhadores rurais, é evidente que o governo Lula vai na direção oposta, mas não necessariamente melhor. Desde o início do primeiro mandato ele considera a reforma agrária um recurso tópico para amenizar a pobreza rural e urbana, um modo de aplacar o apetite dos famintos. É o que se vê agora na extensão do Bolsa-Família aos residentes dos acampamentos de pressão do MST, e de outras entidades, em favor de mais desapropriações e mais assentamentos. Reforma agrária, aliás, em declínio notório no governo petista, como acusam e confirmam com dados MST e CPT.


Com essa medida, o Ministério do Desenvolvimento Social anexa os sem-terra aos moradores de rua e aos remanescentes de quilombos. Reconceitua-os como sem destino, em exata oposição à ideologia, tanto do MST quanto da CPT, de que os desvalidos da terra são vítimas de uma injustiça social histórica. Como os proletários de Lenin, seriam também eles portadores de uma alternativa social e política que os faria agentes privilegiados da transformação social.

Sujeitos do futuro e não do passado. Um governo que, no agrário, optou em termos absolutos pelo heroísmo do agronegócio não poderia deixar de fazê-lo em face de uma servil luta pela reforma agrária, alienada e incapaz de reconhecer-se na possibilidade do agronegócio alternativo e popular, fundado no capital social dos que, privados de terra, não foram privados de um saber ancestral criativo e produtivo.


*Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Autor, entre outros livros, de A Sociabilidade do Homem Simples

PT vai retomar ''satanização'' das privatizações

Ana Paula Scinocca
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

PSDB e DEM se preparam para estratégia petista de colar pecha de "neoliberais" em candidatos da oposição

A oposição teve na semana passada uma amostra do que vai ter de enfrentar na campanha eleitoral do ano que vem, na sucessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O governo e o PT vão ressuscitar o discurso da "satanização" das privatizações e pespegar nos candidatos do PSDB e do DEM a pecha de "neoliberais". A estratégia foi adotada abertamente pelo ministro Paulo Bernardo (Planejamento) e pelos sindicatos e movimentos sociais a pretexto de combater a CPI da Petrobrás e defender a estatal do petróleo.

Diante desse discurso de apelo político forte, de programas sociais que se espalharam por todas as regiões e de uma popularidade inédita do presidente (acima de 70%), que será o cabo eleitoral número um da eleição, a oposição começa a estudar as brechas por onde vai fazer campanha. Uma das estratégias, diz o líder do PSDB no Senado, Arthur Virgílio (AM), é "expor e denunciar o aparelhamento partidário das instituições, como nunca antes aconteceu neste País". No caso específico da Petrobrás, ele diz que "o PSDB vai propor a estatização da empresa".

Virgílio refere-se ao fato de a estatal, uma das maiores empresas do mundo, ter tido a administração fatiada entre os partidos da base aliada de apoio ao Planalto. Das 80 diretorias, gerências e assessorias graduadas da Petrobrás e suas subsidiárias, 17 foram entregues ao PT e a sindicalistas ligados ao partido, duas ao PMDB e duas ao PP. "O PSDB não vai privatizar a empresa, mas vai livrá-la dos interesses privados do PT, aliados, sindicatos e ONGs e devolvê-la à administração pública", afirmou o senador.

A Comissão Parlamentar de Inquérito da Petrobrás foi criada a partir de um requerimento do senador tucano Álvaro Dias (PR). Para o ministro Bernardo, a oposição quer "desmoralizar a empresa" para privatizá-la no futuro.

Quatro dias depois da declaração, numa manifestação, no centro do Rio, militantes da CUT, do MST e da UNE, que sempre defenderam investigações por meio de CPIs, gritaram palavras de ordem de apoio à pré-candidata do governo, a ministra Dilma Rousseff (Casa Civil), e criticaram a comissão e o pré-candidato tucano José Serra (SP). Os slogans tratavam a empresa como "orgulho do País". "Sai José Serra, larga a Petrobrás, patrimônio da Nação", dizia outro refrão.

Na campanha de 2006, Lula acusou o adversário, Geraldo Alckmin (PSDB), de querer vender estatais, à semelhança do que foi feito no governo FHC. Nem as concessões de serviços públicos defendeu, como nos casos de rodovias - o que, logo depois da posse no segundo mandato, também fez.

Contra o maniqueísmo que associa o PT com exclusividade aos pobres e à distribuição de renda, a oposição ensaia dividir a paternidade dos programas sociais que começaram no governo Fernando Henrique (1995-2002) como Rede de Proteção Social e se transformaram no governo Lula em Bolsa Família. "É evidente que tem que se reivindicar a paternidade. Isso é reivindicar a verdade", diz o líder do DEM no Senado, José Agripino Maia (RN).

"A tarefa não será nada fácil", prevê o cientista político e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Marco Antônio Carvalho Teixeira, reforçando que a chave da popularidade de Lula são os programas sociais. "Então, não adianta mesmo ser contra (os programas)."

Para o presidente do PSDB, senador Sérgio Guerra (PE), há, na política social, duas brechas para crítica: "A política de saúde do governo é calamitosa e a da educação está um caos".

A outra vulnerabilidade forte enxergada pela oposição está no Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), coordenado pela ministra Dilma Rousseff. "O PAC não é projeto. Não passa de campanha. Vamos demonstrar que muitas promessas não foram cumpridas e as obras entregues foram malfeitas", afirma Guerra.

Congresso estadual reforça divisão do PMDB paulista

Ricardo Brandt
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Sem consenso, líderes do partido começam a discutir a eleição presidencial de 2010

A disputa entre o PMDB que apoia o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o que apoia o governador de São Paulo, José Serra (PSDB), por conta da corrida sucessória de 2010, teve ontem em São Paulo sua primeira prévia. Dois dos principais líderes da legenda estiveram lado a lado no primeiro congresso estadual do partido, realizado na Assembleia, e deixaram claro que a briga vai até o último round. De um lado do ringue estava o presidente da Câmara, Michel Temer (SP), alinhado ao governo federal. Do outro, o ex-governador paulista Orestes Quércia, presidente estadual da sigla e defensor da candidatura Serra, do PSDB, à Presidência da República.

O primeiro a chegar foi Quércia, que rasgou elogios ao PSDB de Serra e ao aliado DEM. Maior liderança do partido no Estado de São Paulo, Quércia deixou claro que o acordo envolvendo deputados e senadores com o governo Lula não encontra espaço entre os paulistas. "Nós aqui, em São Paulo, temos restrições imensas ao governo do PT nacional", afirmou Quércia.

"Nós não queremos a continuidade do PT. Queremos mudança, e essa mudança poderá vir com a candidatura do Serra pelo PSDB", argumentou o ex-governador, ressaltando que tanto o PSDB no Estado como o DEM na prefeitura paulistana estão à frente de governos "desenvolvimentistas". "É uma aliança importante para nós do PMDB, porque hoje o Estado e a cidade são canteiros de obra."

O apoio a Serra em 2010 faz parte de um acordo entre Quércia e o DEM, de Jorge Bornhausen, feichado em 2008, durante a disputa pela Prefeitura de São Paulo. Na ocasião, o PMDB se aliou ao DEM, com respaldo de Serra, para reeleger o prefeito Gilberto Kassab. Em troca, o ex-governador teve como garantia o apoio das duas legendas à sua candidatura ao Senado em 2010.

Mostrando que desde já embarcou no grupo da oposição ao governo Lula, Quércia atacou não só o governo federal, mas também a pré-candidata da situação, a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT). "A dona Dilma, se quiser ser mãe do PAC, vai ser difícil. Porque não existe o PAC, é uma ilusão", disse Quércia referindo-se ao Programa de Aceleração do Crescimento.

Para o ex-governador, Lula distribui dinheiro para governar. "É um governo que adotou estratégia de distribuir dinheiro através do salário-família, do mensalão e do empreguismo. Não tem ninguém do PT sem emprego. Até dinheiro para invadir terra o governo vai dar."

Temer chegou alguns minutos depois e evitou o embate direto, mas deixou claro que a posição do PMDB de Quércia é apenas uma linha de defesa dentro da sigla. "Vamos ouvir todo esse pessoal, prefeitos, vereadores e lideranças para saber qual rumo vamos tomar em 2010.

Precisamos de três ou quatro pontos para definir propostas para o PMDB, seja para um candidatura própria, seja para uma aliança", afirmou. Ele não quis comentar a aliança do partido com o PSDB, mas lembrou que a definição final sobre a disputa sucessória se dará em Brasília.

"Vamos ouvir o partido. Sou presidente do PMDB há muito tempo e sempre decidimos em convenção nacional. O que a convenção decide é o rumo que nós tomamos."

CPI

Temer negou ontem que exista acordo ou tratativas para que a CPI da Petrobrás seja amenizada caso o governo conceda postos dentro da diretoria da estatal a membros do seu partido. "É inteiramente falso. A CPI não tem nada a ver com pleito nenhum do PMDB."

Terceiro mandato fragiliza república, afirma Ayres Britto

Felipe Seligman
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Presidente do TSE diz que hipótese é risco, pois "quanto mais se prorroga o mandato", mais o país "se distancia da república e se reaproxima da monarquia"

A ideia de terceiro mandato é um risco para o Brasil, pois "fragiliza" o sistema republicano e "reaproxima" o país da monarquia. É como pensa o presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ministro Carlos Ayres Britto.

Em entrevista à Folha ele, que também é ministro do Supremo Tribunal Federal, afirmou: "A república postula a temporalidade e a possibilidade de alternância de poder. Quanto mais se prorroga o mandato, mais [o país] se distancia da república e se reaproxima da monarquia".

Não é assim, no entanto, que pensa o deputado federal Jackson Barreto (PMDB-SE), que pretende apresentar até a próxima sexta-feira a proposta de emenda constitucional que prevê um referendo sobre a possibilidade de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva concorrer a um novo mandato.

A emenda prevê a realização de um referendo em setembro, para valer já para a eleição de 2010, como revelou a Folha no último domingo. Barreto tem pelo menos 178 assinaturas de deputados (16 delas de oposicionistas), número já superior ao mínimo definido pelo regimento da Câmara para protocolar a proposta.

Para Ayres Britto, porém, o conteúdo desse projeto não se "concilia" com a república. "Dizer que é constitucional o terceiro mandato é dizer que o quarto também é. E não tem como evitar dizer que é constitucional o quinto mandato, fragilizando a ideia de república."

O próprio presidente Lula também afirma que não discute a hipótese de disputar um terceiro mandato.

Ayres Britto também disse que, se for aprovado o projeto de lei apresentado pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) para reduzir de um ano para seis meses o prazo mínimo de filiação partidária antes das eleições de 2010, o TSE irá criar mecanismos para agilizar os processos contra os infiéis.

Avalia-se que um deputado, por exemplo, que mudar de partido nos últimos seis meses de mandato para concorrer por outro partido nas eleições seguintes ficará imune à cassação por infidelidade partidária, já que o TSE não conseguiria, em tão pouco tempo, julgar o caso.

"Mudar de partido um ano ou seis meses antes das eleições leva e levará à perda de mandato.

Se esse projeto vier a ser aprovado, o TSE irá criar mecanismos de ultra-agilização do processo de perda de mandato por infidelidade", afirmou ele.

Para Ayres Britto, a ideia de reduzir o prazo alteraria uma lógica -"saudável"- de formar o quadro partidário antes de definido o quadro político nacional que prevalecerá nas eleições, o que não seria adequado

Entidades contra CPI recebem de estatal

Rubens Valente e Ana Flor
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Nos últimos 3 anos, Petrobras injetou R$ 12 mi em projetos de CUT, UNE e ABI, que protestaram contra investigação

Empresa afirma que ações financiadas dão visibilidade à marca; entidades dizem que ataque a CPI tem foco em seu conteúdo partidário


Entidades que promoveram uma passeata na última quinta-feira, no centro do Rio de Janeiro, contrária à instalação da CPI da Petrobras, no Senado, -e que anunciam uma onda de manifestações no país- tiveram projetos financiados pela estatal no valor de R$ 12 milhões entre 2006 e 2009.

Realizado por representantes da CUT (Central Única dos Trabalhadores), da UNE (União Nacional dos Estudantes) e da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), o ato de quinta-feira "em defesa da Petrobras" reuniu entre 2.500 e 3.000 pessoas, segundo cálculo da Polícia Militar. O ato foi apoiado por militantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e de partidos de esquerda.

Lideradas pela FUP (Federação Única dos Petroleiros), filiada à CUT, as entidades prometem uma série de manifestações contra a CPI. O próximo, segundo a CUT, deverá ocorrer na terça-feira, em Natal (RN).

O presidente da CUT, Artur Henrique, divulgou nota oficial para condenar a CPI e dizer o que considera a "insistência da oposição em tentar paralisar a Petrobras, que responde por mais de 10% do PIB nacional".

Ao longo dos últimos três anos, a Petrobras apoiou com R$ 11,9 milhões projetos desenvolvidos por CUT, UNE e ABI.

O grosso dos recursos foi para a CUT -R$ 10,6 milhões em quatro projetos: alfabetização de trabalhadores, comemoração do 1º de Maio e dois anos do projeto CUT Cidadã, nos anos de 2007 e 2008. A Força Sindical e a UGT (União Geral dos Trabalhadores) também receberam patrocínios para suas festas do Dia do Trabalho.

O Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), ligado à CUT e sindicatos, recebeu mais R$ 650 mil da petroleira.

Outro lado

Em nota enviada à Folha, a Petrobras informou que os projetos apoiados pela empresa dão visibilidade à marca e dão retorno positivo.

Referindo-se às comemorações do 1º de Maio, financiadas em parte pela petroleira em São Paulo, a Petrobras afirmou que "os eventos citados concentram milhares de pessoas e geram grande repercussão em São Paulo, o maior mercado consumidor brasileiro e dos produtos da Petrobras".

"Além de dar visibilidade à marca e gerar retorno positivo de imagem, vários desses projetos, como o da CUT Cidadã, possuem importantes ações de cidadania. Estas ações atendem a milhares de pessoas em diversas regiões da cidade. No caso da CUT Cidadã, cerca de 6.000 voluntários levam informação, saúde, consciência ecológica, educação, acesso à documentação e uma série de outras atividades para a formação da cidadania e o cumprimento de seus direitos universais", afirmou a Petrobras, na nota.

O presidente da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), Maurício Azedo, afirmou: "A ABI tem uma posição histórica vinculada à Petrobras desde sua criação. A campanha "O petróleo é nosso" foi lançada no auditório da ABI em 4 de abril de 1948. A defesa que a ABI faz não é algo recente ou vinculado a patrocínios. O mesmo evento que a Petrobras patrocinou teve apoio de Rede Globo, Furnas, Bradesco e Odebrecht; todos independeram de contrapartida nossa. Nosso ataque à CPI tem base em seu conteúdo partidário visível".

A presidente da UNE, Lúcia Stumpf, afirmou que os projetos financiados pela empresa petroleira reuniram mais de 15 mil jovens estudantes interessados em arte e cultura. "A sociedade brasileira precisa defender esse patrimônio, uma empresa importante que também financia a cultura, a educação", disse a dirigente.

Procurada no final da tarde da sexta-feira, a CUT informou que seus dirigentes participavam de um congresso sindical naquele momento e não poderiam falar com a reportagem. A assessoria da entidade afirmou que todos os convênios foram fechados "sempre dentro do que está previsto em lei".

Manual para se vigiar a CPI da Petrobras

Elio Gaspari
DEU EM O GLOBO


Quem quiser acompanhar a CPI da Petrobras precisa se acautelar. O melhor negócio do mundo para o comissariado da empresa será a exibição de meia dúzia de escândalos pirotécnicos.

Aqui vai um manual de sobrevivência para os curiosos: 1) Discutir a política de patrocínios culturais servirá apenas para desfazer a cena do crime. O senador Álvaro Dias diz que quer investigar os contratos de duas ONGs dirigidas por petistas que receberam R$ 2,96 milhões para organizar festas em 44 cidades baianas.

Perda de tempo. A Polícia Federal e o Ministério Público estão cuidando do assunto, e essas duas instituições são mais confiáveis que as CPIs do Congresso. Admitindo-se que toda a política de patrocínios da Petrobras estivesse corrompida, os custos da empresa caberiam na rebarba de uma plataforma de R$ 6 bilhões e ainda sobraria muito dinheiro. (O comissariado não diz quanto gasta em cultura, mas pode-se chutar que a cifra está nuns R$ 300 milhões.) 2) Discutir sobrepreços inferiores a 10% do valor orçado é denúncia vazia. Diferenças desse tamanho podem ocorrer nas melhores empresas.

Sobrepreço bonito é o da refinaria planejada para o Rio de Janeiro. Em 2006, quando Nosso Guia lançou sua pedra fundamental, ela estava orçada em R$ 7 bilhões. Atualmente está estimada em R$ 26 bilhões. O mesmo acontece com a Abreu e Lima, em Pernambuco.

Ela nasceu custando R$ 5 bilhões, pulou para R$ 8 bilhões e, em março, empreiteiras e fornecedores pediam R$ 22 bilhões. No meio do caminho sumiu o sócio venezuelano. Se o comissário Sergio Gabrielli trabalhasse com variações desse tipo na iniciativa privada, já teria sido mandado para a direção de uma ONG de capoeira. Para evitar dispersão de esforços, pode-se também estabelecer um piso de R$ 100 milhões para qualquer investigação mais aprofundada. Assunto não haverá de faltar.

No mundo das astúcias conceituais pode-se até deixar de lado o drible que Gabrielli e o doutor Almir Barbaça quiseram dar na Receita Federal. Mais intrigante será a investigação junto a fornecedores e empresários atraídos para sociedades com a Petrobras.

Em tese, esse é um bom negócio. Na prática, diversos parceiros surpreenderam-se ao ver que as revisões orçamentárias da estatal geralmente dobravam as despesas. (Em alguns casos os sócios preferiram cair fora.) A Petrobras não é uma empresa corrupta, mas uma estatal onde há espertalhões. O melhor acervo para a sua defesa está no corpo técnico da companhia.

Contratos com ONGs mostram falha no controle da Petrobras

Dimmi Amora e Maiá Menezes
Rio e Aracaju
DEU EM O GLOBO

A Petrobras repassou R$ 609 milhões, sem licitação, para financiar 1.100 contratos com ONGs, patrocínios, festas e congressos nos últimos 12 meses. Só com organizações da sociedade civil, foram 230 convênios de R$ 83 milhões. Análise de amostra destes contratos revela que falta controle dos recursos repassados: entre os beneficiados há desde entidades cujo endereço não existe até outras que pararam de funcionar ou são ligadas a políticos aliados do governo. A Associação Comunitária Carlos Pontes, beneficiada com R$ 317 mil, pertence a um suplente de vereador em Duque de Caxias que, na última eleição, foi autuado por distribuição de cestas básicas no local. Nos repasses a estados e municípios, petistas são os principais beneficiados com verba de projetos para a infância: 35% do total previsto para este ano. A Petrobras diz que os repasses obedecem a uma seleção e que não há critério partidário nos contratos com prefeituras.

Investimentos sem retorno garantido

Em um ano, Petrobras repassou R$ 609 milhões, sem licitação, para entidades; fiscalização tem falhas

Até duas semanas atrás, uma casa pequena na Pavuna, bairro pobre na Zona Norte do Rio, ocupava crianças após o horário escolar com atividades e cursos. No portão, uma placa mostra que o projeto tinha um poderoso padrinho: a Petrobras. A maior empresa do país, de acordo com seu site, tem em vigor dois contratos somando R$ 1,1 milhão com a Organização Brasileira de Recuperação e Amparo Infantil (Obrai), que deveria estar beneficiando 150 crianças na região. Mas, sob a placa, o portão está trancado. Há 15 dias, ninguém aparece no local. Só os alunos que, segundo os vizinhos, voltam para casa frustrados.

A análise de uma amostra dos cerca de 230 contratos entre a Petrobras e organizações da sociedade civil (ONGs e Oscips) nos últimos 12 meses, disponíveis no site da empresa, mostra que a estatal está usando seu dinheiro em apoio a projetos que estão longe de realizar a transformação social pretendida. Eles somam gastos de R$ 83 milhões, sem licitação. Além dos contratos com ONGs, convênios para patrocínios, festas, congressos, entre outros, chegam a 1.100, que somam R$ 609 milhões. O GLOBO identificou, entre os maiores beneficiados pelos recursos, ONGs ligadas a petistas, ao MST e até a um centro social de vereadores. Dos 20 maiores contratos do gênero, quatro foram feitos com entidades ligadas ao partido (e dez são com entidades de universidades ou do governo).

Para a Petrobras, o contrato com a Obrai destinase “a ampliar o atendimento educacional, nutricional e sociocultural” de 150 crianças. A ONG tem acordo com a empresa desde 2006, sendo que dois contratos estão em vigor. Cristina de Souza, vizinha do prédio, conta que o projeto já havia sido interrompido outras duas vezes no pouco mais de um ano em que esteve ali. E que era comum, quando estava funcionando, que a entidade fechasse por alguns dias sem avisar os pais e alunos, que davam de cara na porta.

— Eles cuidavam bem de umas 30 crianças por turno. Mas não sei por que pararam. A dona do prédio está cobrando aluguel atrasado deles há três meses — disse Cristina.

O investimento da Petrobras nessas entidades também pode estar se revertendo em benefício para políticos. Uma das beneficiadas é a Associação Comunitária Carlos Pontes (ACP), de Carlos Pontes, suplente de vereador em Duque de Caxias. Na eleição passada, ele teve cestas básicas apreendidas no local. Eduardo Pontes, filho de Carlos, coordena o projeto que, segundo ele, é realizado em sete comunidades há um ano, com contrato de R$ 317 mil. Mas, afirma, os 22 funcionários do projeto terão uma festa de despedida neste domingo: — Não sabemos se a Petrobras vai renovar o contrato. Mas muitos vão continuar o trabalho, que já existia antes, porque eram voluntários.

Petista diz que paga por ser do partido

O Instituto Viver de Proteção Social, criado pelo vereador de Aracaju Robson Viana (PT) e dirigido por seu irmão, César Viana, tem um contrato de R$ 240 mil em vigor com a Petrobras.

Os recursos financeiros seriam para o projeto “Inclusão social através do esporte e lazer”. Mas, mesmo com a existência do contrato, César Viana nega que tenha recebido dinheiro da estatal.

Em Aracaju, outro projeto beneficiado é o “Missão Criança” do Instituto Recriando, criado pela mulher do governador Marcelo Déda (PT), Eliane Aquino. Em 2006, o instituto recebeu R$ 593 mil. E em julho de 2008 teve novo contrato de mais R$ 451 mil. Na ONG, a informação é que Eliane está oficialmente afastada da direção.

Outra beneficiada, com valor de R$ 1,1 milhão, é a Organização Brasileira Para o Desenvolvimento de Ações Sociais (Obras). A ONG realiza um projeto de inclusão social na Vila Cruzeiro, favela na Zona Norte do Rio, com quatro cursos para 600 jovens ao ano, segundo Frederico Boquimpani, coordenador do programa. Ela já havia sido beneficiada com uma emenda parlamentar do deputado licenciado e hoje ministro da Igualdade Racial, Edson Santos, de R$ 500 mil. O endereço oficial da entidade é o de um ex-funcionário e ex-doador de campanha do deputado, e não há registro de que ali funcione a Obras.

Já o Centro de Articulações de Populações Marginalizadas (Ceap) recebeu R$ 1,9 milhão para o projeto “Camélia da Liberdade” e é dirigido há 20 anos por Ivanir dos Santos, ex-candidato a deputado pelo PT. Ivanir afirmou que o partido não abriu as portas para ele na Petrobras: — Pago um ônus por ser petista.

A Fundação Centro de Referência, que recebeu R$ 1,5 milhão para o projeto “Quilombola Venha Ler”, é dirigida pela petista mineira Cleide Hilda de Lima. Ela disse que desde 2006 tenta realizar o projeto com a Petrobras e que sua ligação com o PT não tem relação com a entidade. A Cooperativa Mista Agropecuária de Vitória da Conquista, que recebeu R$ 984 mil para o “Desenvolvimento Solidário”, é presidida pelo petista Izaltiene Rodrigues Gomes. Ele afirmou que o projeto passou por todas as análises da Petrobras e que ser do MST e do PT em nada influenciou.

Da Capo

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

A questão palestina ocupou parte importante do noticiário internacional dos últimos dias. Desta vez, apenas na esfera retórica e política, sem banhos de sangue como tem acontecido.

Primeiro foi a visita do papa Bento XVI ao Oriente Médio onde apelou para a criação de um estado palestino. A questão voltou às manchetes dias depois durante a visita do novo premiê israelense, Benjamin Netanyahu, ao presidente dos EUA, Barack Obama.

Ficou evidente uma rara discordância entre os dois aliados, justamente a propósito da criação de um estado palestino como passo crucial para o estabelecimento da paz na região. Obama, sua equipe de assessores (da qual fazem parte judeus) e o Departamento de estado comandado por Hillary Clinton deixaram clara a necessidade de uma drástica reversão na política de assentamentos israelenses em territórios consignados à Autoridade Palestina. Muitos impasses criados pela decisão da ONU em partilhar a Palestina em dois estados foram razoavelmente superados: Israel mantém fronteiras abertas e relações diplomáticas regulares com adversários de algumas guerras (Egito e Jordânia) enquanto outros estados preferem canais informais até que se resolva a questão definitivamente

A questão palestina, porém, mantém-se irresolvida há 62 anos e arrasta-se num andamento de adágio – surda, dolorosa, pungente. A acachapante vitória da direita e dos partidos religiosos nas últimas eleições israelenses trouxe um dado novo: pela primeira vez desde os acordos de Oslo, o Estado de Israel assume de forma ostensiva um veto à criação do estado palestino.

Para entender o absurdo desta intransigência, é indispensável adotar a notação musical italiana, Da Capo (voltar ao início da partitura para executá-la na sua integridade). Indispensável retornar a novembro de 1947 quando a ONU, então presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha, decidiu partilhar a Palestina em dois estados, um árabe, outro judeu.

A maioria da comunidade judaica mundial e, sobretudo, aquela que vivia na Palestina, aceitou o plano internacional. Vibrou quando foi adotada Resolução 181 que consumava a divisão. Foi um poderoso movimento de amplo espectro político, verdadeira frente popular, onde se aliavam os sionistas-socialistas (liderados por David Ben-Gurion) e os sionistas-gerais, de centro.

A oposição, minoritária e pacífica, vinha da extrema-esquerda judaica (sionista e não sionista) que preferia a solução do estado binacional árabe-judaico. A resistência irredentista e quase sempre violenta contra os acordos internacionais e contra a partilha da Palestina partiu das facções do sionismo dito "revisionista", de direita, das quais o atual primeiro-ministro "Bibi" Netanyahu é legítimo herdeiro. Os religiosos eram antissionistas, condicionavam o restabelecimento de um reino judaico na Terra de Israel à vinda do Messias. A exceção era um pequeno grupo religioso-trabalhista que Ben-Gurion fez questão de integrar no primeiro governo proclamado em 14 de Maio de 1948. Estava certo sob o ponto de vista político: para legitimar-se, o novo estado além de democrático deveria ser de união nacional. Errou ao não precaver-se diante do perigo de um estado teocrático,

Da Capo, voltando ao início: imperioso registrar que a partilha da Palestina em dois estados decidida pela ONU foi impedida de completar-se porque o Estado de Israel foi atacado no dia seguinte à sua criação pelos exércitos regulares do Egito, Transjordânia (mais tarde, Jordânia), Síria, Líbano e Iraque. Não pretendiam estabelecer um estado árabe ou estado palestino, queriam tão-somente impedir a criação do Estado de Israel. Nas guerras seguintes (1956, 1967 e 1973) mudou apenas a formulação tática: criado o estado era preciso varrê-lo do mapa. Em nenhuma destas guerras empunhou-se a bandeira da criação de um estado palestino.

Agora, ao recusar frontalmente o conceito de um território e dois estados, a direita e os religiosos israelenses entram na máquina do tempo para aliar-se à cegueira e à brutalidade daqueles que enfrentaram o consenso internacional.

Da Capo não é apenas uma notação musical para evitar partituras extensas é também uma forma criativa de olhar o mundo.

»Alberto Dines é jornalista

China-Brasil, relação assimétrica

Rubens Ricupero
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Se quisermos equilibrar a qualidade da balança vendendo manufaturas, é preciso um câmbio favorável

O FATO de que 97% das exportações chinesas para o Brasil são manufaturados, enquanto o grosso das nossas vendas à China é constituído por soja em grão e minério de ferro, caracteriza um dos mais puros exemplos do que se costumava chamar outrora de relação assimétrica norte-sul ou simplesmente colonial.

Por outro lado, a circunstância notável de que neste início de ano as vendas brasileiras a Pequim aumentaram 66%, no momento em que caíam mais de 15% para o resto do mundo, indica que não temos motivo a não ser nos regozijarmos por ainda termos um grande comprador para compensar o colapso dos outros.

Sem entrar na polêmica acerca da alegada redução na escala da recente visita presidencial à China, devo dizer que os resultados me pareceram bastante razoáveis. Se for verdade que a decepção com o tratamento chinês acarretou encolhimento nas expectativas, também isso representa saldo positivo.

Nada pior, com efeito, do que o estardalhaço do anúncio, por ocasião da primeira visita a Pequim do atual presidente, de megainvestimentos jamais concretizados. Ou a retórica excessiva a respeito de parcerias estratégicas com país que, obviamente e com boas razões, não nos considera como iguais em poder estratégico ou força econômica.

É preciso que governo e imprensa aprendam a lidar com visitas presidenciais de modo sóbrio e realista. Com a China, a Índia, os africanos e outros, a troca de visitas tornou-se rotina há 25 anos, desde o estabelecimento do regime civil e a normalização das relações com todos os países.

Nenhuma delas foi ou será "transcendental", como dizem nossos vizinhos. Manda o realismo que as relações com a China sejam tratadas pelo que já são, que é muito, sem necessidade de exageros. De tudo o que o gigante asiático significa para nós e os demais exportadores de produtos oriundos de recursos naturais, o principal é sua função de fonte extraordinária de demanda de matérias-primas.

O panorama desses produtos parecia condenado ao chamado "declínio secular das cotações". Encerrado o ciclo de expansão rápida do pós-guerra, as economias industrializadas maduras da Europa e do Japão davam a impressão de saturação na demanda por matérias-primas ou apenas cresciam de modo vegetativo. Os EUA são autossuficientes ou grandes exportadores de alimentos e alguns minérios.

A emergência de uma baleia gigante disposta a engolir descomunais cardumes de minérios e alimentos transformou os mercados de commodities e reverteu a tendência declinante. A firmeza da demanda e, em parte, dos preços, mesmo durante a atual crise, mostra que o real fator decisivo para a valorização das commodities não era o aquecimento da economia mundial, mas sim a China. Esperemos que, não sendo eterna, essa demanda seja infinita enquanto dure.

Se quisermos equilibrar a qualidade da balança vendendo manufaturas aos frios e pragmáticos chineses (ou aos japoneses e europeus), temos de seguir o exemplo chinês. A primeira condição é câmbio favorável. Sem isso, é melhor esquecer. Quanto ao amor próprio e os sonhos de grandeza, conviria meditar as palavras de Joaquim Nabuco em seu diário: "Não se fica grande por dar pulos. Não podemos parecer grandes, senão o sendo. O Japão não precisou pedir que o reconhecessem grande potência, desde que mostrou sê-lo".

Rubens Ricupero, 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.

Sensação melhor

Panorama Econômico :: Míriam Leitão
DEU EM O GLOBO

Respira-se um ar melhor: o dólar e a inflação caíram, o desemprego ficou estável, alguns setores reagiram. Acabou a crise? Na última semana, o Japão anunciou queda do PIB no 1º trimestre de 15,2%, a Alemanha, de 14,4%, o México, de 21%. A Vale cortou quase 40% do investimento. O governo reduziu novamente a previsão de crescimento. A Inglaterra ganhou perspectiva negativa das agências de risco.

Passou o pânico, que era o pior elemento desta crise. Havia um risco explosivo e uma trajetória de queda imprevisível, como acontece em todo ataque de pânico.

O que se vive agora é o longo, lento e difícil desenrolar da crise que já engoliu 2009. Mas nada mudou profundamente: os bancos americanos ainda têm ativos podres, o mundo continua em recessão, o comércio internacional encolhe.

Como disse a capa da penúltima revista “The Economist”, “Três trilhões depois...”.

Pois é: depois de toda essa montanha de dinheiro, ainda não se tem o fim do problema. Na sextafeira, o dólar bateu o ponto mais baixo em cinco meses frente a uma cesta de moedas por causa dos temores do crescimento da dívida americana. Quando a crise for enfim superada, ficarão a ressaca, a inundação monetária e a farra fiscal dos países ricos. O relaxamento fiscal e monetário extremo desses países pode provocar várias distorções na economia mundial, de fragilidade cambial à inflação.

Mas as bolsas subiram em vários países, algumas commodities se valorizaram e, principalmente, há uma sensação de que este não é o fim do mundo, nem o fim do capitalismo. Psicologicamente, o mundo melhorou, ainda que, lentamente, as estatísticas vão mostrando o tamanho do estrago.

Em agosto do ano passado, o governo brasileiro avisou que para ser comedido reduziria de 5% para 4,5% a previsão de crescimento do PIB para 2009, que seria incluída na Lei Orçamentária.

Em novembro, depois que a crise já estava instalada no Brasil, a previsão foi reduzida para 4%. O Congresso fez o favor de reduzir mais um pouco a previsão, que estava destituída de conhecimento da realidade.

Em janeiro, o governo fez novo corte no prognóstico, para 2%. Na última semana, falou algo entre 0,7% e 1%. O mercado prevê um número negativo: -0,49%.

O que há de comum entre Alemanha, Japão e México é que os três dependem fortemente do comércio internacional, e ele continua com queda forte em relação ao ano passado. Na verdade, esses três países não são os únicos. O que aconteceu nos últimos anos de globalização mudou estruturalmente as economias do mundo inteiro.

Segundo a Unctad, de 1995 a 2007, as economias em desenvolvimento aumentaram seu grau de exposição ao comércio internacional da seguinte ordem: as exportações representavam um quarto das economias dos países e passou a representar, em média, a metade. A Unctad prevê uma queda de 9% do volume das exportações dos países em desenvolvimento, mas diz que em valor a queda será maior.

As importações americanas caíram 30% neste primeiro trimestre. O México, que é “americano-dependente” explícito, sentiu o baque mais que todos. A queda de 21,5% do PIB no primeiro trimestre é a maior desde a grande crise do peso, em 1995. A queda da Alemanha é a maior desde 1970. O secretário-geral da OCDE, Angel Gurría, disse que não se chegou ainda ao fundo do poço, mas quando chegar, a economia americana sairá mais rapidamente que a europeia.

O Japão, que arrastouse por uma década na recessão, já provou ao mundo que entra rapidamente nas crises, mas demora a sair delas.
O número brasileiro do PIB do primeiro trimestre, quando sair em 9 de junho, parecerá bem mais palatável do que esses e até melhor do que os 6,1% de queda dos Estados Unidos, mas é pura convenção estatística.

Eles apuram o resultado do PIB e depois anualizam o dado. O Brasil faz a conta na comparação com o mesmo período do ano anterior e com o trimestre anterior.

Assim, a nossa queda parecerá bem diferente da queda alheia, mas não será tão diferente assim.

As previsões para o PIB do primeiro trimestre no Brasil estão negativas. Pelos cálculos da Gap Asset, queda de 1,4% na comparação com o trimestre anterior; para a Tendências Consultoria, -2%; para a MB Associados, queda de 2,3%. Essas previsões, anualizadas da maneira que outros países fazem a conta, dariam resultados entre -5,6% e -8,8%.

Há sim a esperança de que o país saia mais rapidamente da crise. Mas o tombo aqui nesses dois últimos trimestres, o último de 2008 e o primeiro deste ano, nos colocou na lista dos países em recessão.

Dos Brics, perdemos para China e Índia, que estão mantendo taxas de crescimento de 6% e 5% — os únicos países do mundo, aliás — mas ganhamos, felizmente, da Rússia, que pode ter uma recessão perto de 7% em 2009.

Portanto, qualquer comemoração agora é precipitada.

Esta é uma crise diferente das outras na natureza, na extensão, na duração.

Os economistas têm tateado no escuro, às vezes fazendo previsões baseadas em experiências do passado, que são de um mundo menos complexo. A incerteza é a marca desses tempos.

É melhor respeitar a crise e ir procurando a saída dela com segurança.

De Mário para Tio Pio. De Tio Pio para Mário

Ubiratan Brasil
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2

Livro traz cartas trocadas entre Mário de Andrade e Pio Corrêa, seu maior interlocutor

O escritor Mário de Andrade (1893-1945) instaurou na palavra o seu império - e na correspondência um canal vital para compartilhar sentimentos, alegrias e ansiedades. Ao longo de sua carreira literária, o autor de Macunaíma trocou um impressionante volume de cartas com pintores, pesquisadores, jornalistas e, principalmente, escritores, esparramando-se em textos que muitas vezes pareciam poema em prosa. Os destinatários tanto eram iniciantes, que buscavam (e recebiam) valiosos conselhos, como artistas já seguros em sua arte, cujos contatos apontaram novos caminhos estéticos.

O volume Pio & Mário - Diálogos da Vida Inteira, lançamento da editora Ouro Sobre Azul em parceria com Edições Sesc SP (424 páginas, R$ 96), aponta para uma nova vertente na correspondência andradina. Se os livros já publicados trazem as cartas destinadas a notáveis como Manuel Bandeira, Cândido Portinari, Fernando Sabino, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Luís da Câmara Cascudo, entre outros, Pio & Mário reúne as confidências trocadas com um interlocutor conhecido por poucos, o fazendeiro Pio Lourenço Corrêa (1875-1957).

Homem de personalidade original, com um toque de excentricidade, Pio era um parente distante e proprietário da Chácara da Sapucaia, em Araraquara, na qual Mário buscava refúgio de sua rotina estafante. Foi ali, por exemplo, acomodado em um universo ordenado e protegido, que o autor escreveu Macunaíma em seis dias febris de inspiração. "Mas a obra não sofreu interferência do local", alerta o crítico Antonio Candido, também amigo de Pio Lourenço e autor do texto que traz traços biográficos do fazendeiro, presente no livro (leia entrevista na página 2).

"O impulso aconteceu lá", comenta ele, que vai participar do lançamento oficial da obra, amanhã, quando faz uma palestra, a partir das 20 horas, no Teatro Anchieta do Sesc Consolação.

Pio foi grande amigo do pai de Mário de Andrade e sua aproximação com o escritor aconteceu depois de dois momentos trágicos: a morte do irmão mais moço e do pai de Mário. Em carta a Manuel Bandeira, datada de 1931, o autor de Amar Verbo Intransitivo relata como foi o bom senso do fazendeiro que o salvou depois da primeira perda: tomado por uma séria depressão nervosa, ele foi deixado sozinho na fazenda, de onde saiu curado, dias depois.

"É esta a primeira vez que a mão amiga de Pio Lourenço intervém no seu destino", escreveu a pesquisadora Gilda de Mello Souza (1919-2005), autora de um detalhado estudo sobre ele, que era seu tio-avô - ela também era prima em segundo grau de Mário. "E a chácara transforma-se em seu vício, a sua Pasárgada, onde são satisfeitas a suas ?vontades rurais?."

Era o início de uma relação respeitosa e afetiva, em que o escritor passou a tratar o amigo de Tio Pio, ainda que tal parentesco não existisse. Embora distintos, o homem maduro do interior e o jovem intelectual urbano, que guardavam uma diferença de 18 anos nas idades, iniciaram uma improvável correspondência. E, ao contrário da grande maioria das cartas que Mário trocou com outros, aqui os detalhes de sua vida cotidiana estão em evidência.

O conjunto traz 105 cartas e bilhetes de Pio Lourenço e 84 cartas de Mário de Andrade, datadas de 1917 a 1945, quando o escritor morreu. Foi o mais longo período de correspondência trocada por Mário com seus vários missivistas. Um interlocutor culto, que não aceitava suas experiências com a língua portuguesa - detestou, por isso, Macunaíma, preferindo Amar Verbo Intransitivo.

''Pio discordava radicalmente do modernismo de Mário de Andrade''

Ubiratan Brasil
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2

Segundo o crítico Antonio Candido, o fazendeiro de Araraquara não aceitava as inovações literárias propostas pelo escritor

O crítico Antonio Candido ainda guarda recordações afetivas de Pio Lourenço Corrêa, fazendeiro que se tornou o principal interlocutor de Mário de Andrade - e também seu, mantendo um contato constante de 1944 até o ano da morte de Corrêa, 1957. "Foi um dos homens mais inteligentes e originais que conheci", comenta ele, em entrevista ao Estado, realizada por e-mail. "Apesar de ser 43 anos mais moço, fui amigo dele."

Na introdução escrita para Pio & Mário, em que revela traços biográficos do fazendeiro, o crítico o descreve como um homem pequeno, magro, de feições corretas, voz grave e bem empostada, a serviço de uma dicção perfeita. "Possuía grande senso de humor, se divertia com facilidade e era conservador incomparável", comenta.

Candido acompanhou o trabalho de sua mulher, Gilda de Mello e Souza, na reunião de todo material relativo a Corrêa, que era seu tio-avô paterno. A intenção da pesquisadora era escrever um estudo detalhado sobre o fazendeiro. A morte, no entanto, em 2005, a impediu de dar a redação final.

Quem foi Pio Lourenço Corrêa, com o qual Mário de Andrade manteve a mais longa troca de cartas?É bom esclarecer que não era tio de Mário de Andrade, embora este o trate assim o tempo todo na correspondência. Mário e os irmãos se acostumaram a este tratamento por imitação de um sobrinho de Pio Lourenço, com o qual conviveram em meninos. Mas era primo de sua mulher, Zulmira de Moraes Rocha. Pio Lourenço foi fazendeiro eficiente e homem muito culto, dedicado sobretudo aos estudos linguísticos. Como era um pouco maníaco, acabou tendo como preocupação central demonstrar sistematicamente que o nome da sua cidade significa "morada do sol", ou "cova onde nasce o sol", não "cova das araras". Neste sentido publicou um livro interessante: Monografia da Palavra Araraquara. Publicou também muitas dezenas de artigos sobre questões de linguística. Era extremamente conservador e, como se dizia, "sistemático", chegando a elaborar um modo de viver peculiar em sua chácara Sapucaia. Conhecia bem quatro línguas estrangeiras, pronunciando-as com perfeição, e tinha uma biblioteca de qualidade, que compreendia inclusive um setor de ciências naturais, das quais era amador.
Apesar de severo e autoritário, era sociável, hospitaleiro e tinha uma conversa encantadora, marcada pelo senso de humor. Era notável a firmeza inflexível do seu caráter. Foi um dos homens mais inteligentes e originais que conheci, num convívio que durou até a sua morte em 1957, porque, apesar de ser 43 anos mais moço, fui amigo dele.

Como as cartas de Mário a Pio abrem caminho para a compreensão das angústias do escritor?

Na introdução deste livro, Gilda de Mello e Souza sugere, a meu ver com razão, que as relações de ambos tiveram certo caráter de apoio do mais velho ao mais moço. Muitas delas mostram Mário inquieto e deprimido, despertando no amigo uma atitude de quem conforta e estimula. É provável que esta tenha sido a base da grande amizade deles. Gilda observa também que o pai de Mário morreu num momento em que as relações com o filho não estavam afinadas, o que deve ter gerado algum remorso neste. Então, Pio Lourenço avultou como amparo e abrigo, tanto mais quanto Mário via nele, segundo diz numa carta, semelhança com seu pai: a mesma severidade intransigente, a mesma retidão sem quebra, a mesma disciplina. Pio Lourenço, do seu lado, foi amigo do pai de Mário, Carlos Augusto de Andrade, do qual era 26 anos mais moço, e tinha por ele não apenas admiração, mas veneração. Lembro que invocava o seu nome com muita frequência a propósito de vários assuntos.

Houve influência de Pio sobre Macunaíma, escrito na sua chácara?

A resposta é negativa. Mário escreveu o livro na chácara porque o impulso ocorreu lá. O quarto do casal e o quarto de hóspedes ficavam lado a lado, com portas contíguas dando para um pequeno vestíbulo. Estas portas tinham a parte superior de vidro fosco rugoso, de modo que era possível saber, de um, se a luz do outro estava acesa. Dona Zulmira queria que o primo dormisse cedo para descansar; ele, então, a fim de não alertá-la, ia para o grande banheiro privativo do quarto, fechava a porta e escrevia até quando quisesse, numa pequena mesa encimada por um espelho oval. Foi assim que redigiu de jato o famoso livro, mas retocou-o em seguida, inclusive na fazenda do irmão de dona Zulmira, Cândido de Moraes Rocha, onde contava episódios aos filhos pequenos deste. A mais velha, Maria Elisa, que tinha uns 11 ou 12 anos, foi quem sugeriu que Venceslau Pietro Pietra morresse afogado num tacho de macarronada. Pio Lourenço discordava radicalmente do modernismo e da escrita de Mário, mas noutros setores podiam trocar ideias: fala popular, ditos, tradições paulistas, problemas de linguística. Numa carta vemos que gostou de Os Filhos da Candinha, cuja escrita lhe pareceu mais “normal”. A correspondência mostra que Mário discutia muita coisa com o amigo, do qual diferia intelectualmente. Mas se admiravam e eram unidos por um grande afeto.

E dá para não resmungar?

Ferreira Gullar
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / Ilustrada

Se não há nada de grave a apurar na administração da Petrobras, por que tanto medo?

DO MESMO modo que muitos outros brasileiros, vivo me perguntando o que fazer para salvar o Congresso Nacional e a qualidade de nossa democracia. Sim, porque é difícil sustentar uma democracia quando seus deputados e senadores parecem estar "se lixando" para a opinião pública e entendem que o Congresso é propriedade sua, seu feudo, de que cada um deles pode tirar as vantagens que quiser.

Os últimos escândalos, envolvendo até parlamentares respeitados por seu espírito público, mostram que a causa dessa decadência é mais complexa e profunda do que a fraqueza moral deste ou daquele parlamentar. Por isso a reforma política se torna imprescindível. Se não for a salvação do Congresso, poderá certamente dar início a uma mudança que se tornou urgente.

Os três pontos fundamentais da reforma são, como se sabe, o financiamento público da campanha eleitoral, o voto em lista e o voto distrital. Mas logo surgiram os argumentos contrários à reforma, sendo um deles o de que o voto em lista retira do eleitor o direito de escolher seus candidatos. Um sofisma, já que, pelas normas atuais, você vota em João e elege Pedro, desde que seu candidato não alcance determinado número de votos.

A vantagem do voto em lista está em que o partido assume a responsabilidade pelos nomes indicados e, por isso, se o deputado afirma que está se lixando para a opinião pública ou se envolve em falcatruas, nunca mais será indicado

candidato. Esse é um dado fundamental, uma vez que a situação lamentável do Congresso, hoje, decorre do baixo nível dos candidatos e consequentemente dos que são eleitos.
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Ao saber que a oposição pretendia criar uma CPI no Senado para apurar denúncias de irregularidades ocorridas na Petrobras, Lula saiu-se com esta: "Isso é, no mínimo, antipatriótico". E seu ministro das Comunicações, logo logo: "A oposição subestima o orgulho que a população tem da Petrobras". Mas quem constatou aquelas irregularidades foram o Tribunal de Contas da União, a Receita Federal e a Polícia Federal. Serão, os três, inimigos da pátria e do povo? Apurar irregularidades numa empresa da importância da Petrobras é zelar por ela e pelos direitos de seus acionistas.
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Mas algo, nesta CPI, assusta o governo. Se não há nada de grave a apurar na administração da empresa, por que tanto medo? As tentativas de desmoralizar a CPI, antes que comece a funcionar, chegam a ponto do ministro Paulo Bernardo afirmar, sem nenhum respeito à inteligência alheia, que o objetivo do PSDB é desmoralizar a Petrobras, para em 2010, chegando ao poder, privatizá-la. O mesmo argumento fajuto com que derrotaram o Alckmin, em 2006. Debaixo desse pirão, tem carne.
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Por unanimidade, o TSE inocentou Lula e Dilma da acusação de estarem fazendo campanha eleitoral, durante o encontro com mais de 3.000 prefeitos, em Brasília. O pior cego é o que não quer ver. Alguém ignora que Lula nunca desceu do palanque, desde 2002? Não está evidente que, depois da pesquisa que rejeitou a hipótese de um terceiro mandato, passou a arrastar Dilma para todos os palanques em todos os pontos do país? E ele diz abertamente que ela é sua candidata à sucessão, não diz? O que falta mais? É possível, agora, se a doença dela se agravar, que ele mude de ideia e passe a ser ele o seu próprio candidato. É esperar para ver.
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Num dos últimos jogos da seleção brasileira, ano passado, saiu num jornal a foto da nossa equipe de craques; dos 11 jogadores, nove eram negros ou mulatos e dois, brancos: Júlio César e Diego. Houve discriminação contra brancos? Claro que não: os que ali chegaram, chegaram pela qualidade do futebol, por sua competência, como, aliás, deve ser em todos os campos de atividade.
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O PSDB do Rio, que é oposição, encomendou uma pesquisa de opinião, nos seguintes termos: "É errado construir muros para limitar o crescimento das favelas porque trata o pobre de maneira injusta?". A maioria opinou contra os muros, claro. Se a pergunta fosse "É errado construir muros nas favelas para preservar a mata atlântica?", o resultado da pesquisa certamente seria outro. Pesquisas, que induzem à resposta que nos convém, não merecem crédito.
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E o ministro Carlos Minc na passeata pela liberação da maconha?! Não dá para crer. Qual é mesmo o benefício que o consumo da maconha traz à sociedade? Fumar, fuma quem quer. A proibição visa a impedir, dentro do possível, que os jovens adiram em massa a um vício que só lhes trará prejuízos. Além de "curtir um barato", o que mais ganham os maconheiros? Diz aí, Minc...

Com o destino conjugado no passado

Antonio Gonçalves Filho
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2

Em O Futuro da América, Simon Schama diz que Obama segue doutrina de Thomas Jefferson, mas enfrenta tradição bélica

Embora pareça uma daquelas irresistíveis placas de vidente que prometem revelar o destino a crédulos clientes, O Futuro da América (tradução de Carlos Eduardo Lins da Silva, Donaldson M. Garschagen e Rosaura Eichenberg), do historiador de origem inglesa Simon Schama, pode decepcionar os que esperam descobrir no livro o devir americano. Afinal, trata-se apenas de um ensaio histórico com associações idiossincráticas. Schama fez sua primeira viagem aos Estados Unidos em 1964. Conhece o país tanto quanto a obra de Rembrandt ou a obscura natureza de Robespierre, dois temas que também lhe são caros. Schama, que conversou com a reportagem do Estado sobre seu novo livro, é um obamista de primeira hora, que jamais escondeu sua simpatia pelo presidente Barack Obama, promotor, segundo ele, do reencontro da democracia americana com a moralidade.

Historiadores mais cautelosos poderão considerar esse diagnóstico excessivamente prematuro e o uso da palavra moralidade um tanto fora de propósito numa nação que já teve presidentes contraditórios como Thomas Jefferson - ao mesmo tempo avesso à escravidão e defensor da inferioridade racial dos negros. Jefferson considerava o tráfico de escravos uma depravação moral. Muitos republicanos e democratas também, mas mantêm imigrantes ilegais atrás do fogão, pagando a eles míseros salários. Após a morte de Jefferson, os americanos tiveram de esperar 40 anos para ver a escravidão acabar - mesmo assim, ao custo do banho de sangue promovido pela Guerra Civil. Talvez tenham de esperar outros 40 para ver o futuro que Schama já vê hoje. "Obama é a retomada de democracia americana, eleito pelas minorias, e tem um programa consistente para a aliviar a crise econômica, especialmente no campo da saúde", diz ele, defendendo a ideia de que os EUA conseguirão manter a hegemonia política e econômica que conquistaram.

Schama associa passado e futuro como se fossem um único tempo, no melhor estilo do físico Stephen Hawking. Na última palestra que fez no Brasil, em 2008, relacionou a Guernica de Picasso ao ataque às torres gêmeas, além de ver nas telas calcinadas do alemão Kiefer um aviso do apocalipse bíblico. Sua crença no artista visionário é imensa. No historiador como profeta, maior ainda. Schama tem vocação para babalaô da história. "É interessante essa sua observação, de que escrevo história política com os mesmos métodos que uso para contar a história da arte, porque é exatamente o que faço", admite ele, revelando que sempre parte de uma imagem-guia - no caso de O Futuro da América, o cemitério de Arlimngton - para escrever seus textos. O historiador, aliás, faz livros associados a séries de televisão - e ganha bem por isso, algo em torno de 3 milhões de libras por trabalho. O Futuro da América não é diferente. É a terceira experiência na área do catedrático.

Numa época em que privado e público se confundem, Schama decifrou a pedra de Roseta da nova historiografia: cruzou a história geral americana com a particular - a da família Meigs, tradicionalmente ligada à academia militar de West Point, da qual saíram presidentes (Eisenhower) e "heróis" americanos (Patton, entre eles). A primeira parte de O Futuro da América (um terço do livro) é quase que integralmente dedicada a investigar como a história do militarismo americano foi marcada pelo sobrenome Meigs, que ajudou a trocar o idealismo jeffersoniano pelo pragmatismo hamiltoniano de West Point, sedimentando o espírito bélico americano - embora Schama, um apaixonado pelos EUA, insista em dizer que a cultura americana não é guerreira. A esse propósito, vale lembrar a frase preferida de Patton: "Deus me perdoe, mas eu amo a guerra." A família Meigs, proprietária de escravos e construtora do Capitólio de Washington, poderia dizer o mesmo, a crer nos relatos de outros historiadores e biógrafos. "Não a escolhi por capricho, mas por ser uma dinastia que acompanha a história da América desde a Guerra Civil", justifica Schama.

Seu drama histórico, familiar, assim, é vendido como a história dos EUA, preparada para o formato de uma série de TV. Após investigar a origem da dicotômica filosofia americana - a América racional de Jefferson amalgamada às baionetas de Alexander Hamilton -, Schama afirma, na segunda parte de seu livro, que o futuro luminoso da América anunciado por Obama é apenas o passado americano. Ele vê nos eleitores do presidente a "negrona do Delta, filha de pastor", cantando um hino ensurdecedor. Barack foi eleito no interior da igrejas, defende Schama, e a igreja cristã foi a instituição progressista que determinou sua vitória. É difícil ver qualquer instituição religiosa digna desse adjetivo - a Igreja é e sempre foi essencialmente reacionária, ou não resistiria aos avanços da história.

Schama discorda. Considera que os estrangeiros têm uma visão errada da Igreja cristã americana como um braço forte da ultradireita - mais ligada aos televangelistas, e não à igreja evangélica do passado, testemunha do processo embrionário dos movimentos pelos direitos civis. "Obama não foi eleito por sua cor de pele, mas por defender as minorias, confrontar os fundamentalistas e não fugir de discussões polêmicas como o aborto", argumenta.

E como Obama pretende resgatar a reputação dos EUA após a intervenção no Iraque e episódios como o da prisão de Abu Ghraib e denúncias de tortura em Guantánamo? "Ele tem boa vontade e compromisso com a abertura, é muito sensível a respeito de problemas como esse, mas não pode admitir os fundamentalistas do Taleban, que negam voz às mulheres e perseguem as minorias." Obama e Michelle, lembra, são originários de uma classe social trabalhadora e cresceram graças à educação. Não vão abrir mão dela para fazer acordos espúrios com quem defende a ignorância. Otimista incurável, Schama espera ainda que os bilionários americanos do petróleo sigam todos o exemplo de T. Boone Pickens e se tornem "verdes" defensores da ecologia e dos moinhos de vento. Do jeito que são, é mais provável que fiquem, sim, verdes de raiva.